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Paul Ehrenreich (ano desconhecido)

A área do Rio Doce, todavia, não apresentava essas características. As primeiras notícias de ocupação indígena do Rio Doce datam das primeiras décadas da época colonial.135 Ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII os Aimoré (ou Tapuia) e outros povos da região estiveram envolvidos em conflitos com colonizadores, foram aldeados por missionários jesuítas, submetidos a doenças e massacrados em “guerra justa”.136 Em suma, os índios do Rio Doce conheceram o colérico, ganancioso e ordinário tratamento das elites luso-brasileiras para com os povos indígenas em especial e às minorias em geral: fome, doença, roubo, violência e carnificinas. Quando o americanista chegou ao Rio Doce, a região já estava tão despovoada, que seus habitantes indígenas não representavam uma preocupação para as autoridades locais. Ele mesmo afirmou que foi estudar “os restos da população nativa [Urbevölkerung] dos

135 PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. “Os Botocudo e sua trajetória histórica”. In: CARNEIRO DA CUNHA,

Manuela (Org.). Índios na História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras / Secretaria Municipal da Cultura / FAPESP, 1992, p. 413.

territórios da costa leste”.137 Para o Império brasileiro, a pesquisa sobre os Botocudo não era nem de interesse científico, nem estratégico.

Os Botocudo já eram bem conhecidos pelo Estado brasileiro – Dom Pedro II inclusive já os visitara.138 Os etnólogos alemães também já tinham acesso a várias fontes de dados europeias sobre os Botocudo, sem contar com as brasileiras.139 O príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied percorreu diversas regiões do Brasil Colônia estudando flora e fauna e visitando seis povos indígenas. Ele se estabeleceu por aproximadamente três meses na região do Rio Doce e do Rio Pardo, empenhando um estudo etnográfico dos Botocudo. Na Alemanha os resultados de sua pesquisa, publicados em Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817 (“Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817”) só não foram mais notados do que a presença de Joachim Quäck (por volta de 1800-34), o acompanhante Botocudo que Maximilian zu Wied- Neuwied levou com ele para a Alemanha para ser seu mordomo pessoal.140 O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que entre 1816 e 1822 realizou uma expedição pelo Brasil, também deixou informações etnográficas sobre esse povo. Saint-Hilaire era membro da Academia Alemã Leopoldina dos cientistas naturais (Deutsche Akademie der

Naturforscher Leopoldina) e sócio-correspondente da Academia de Ciências da Prússia

(Preußische Akademie der Wissenschaften) e da Academia Bávara de Ciências (Bayerischen

Akademie der Wissenschaften). Além disso, os próprios Spix e Martius pesquisaram os

Botocudo. O próprio Ehrenreich afirma, referindo-se a Wied-Neuwied, Saint-Hilaire e Hartt, que sobre os Botocudo “apenas há notícias detalhadas a partir dos primeiros decênios deste século”.141

Assim, o interesse de Ehrenreich pelos Botocudo precisa ser compreendido em uma chave conceitual e epistemológica diferente. Ele não intencionava apreender os pensamentos elementares que dos povos indígenas para completar a estatística dos pensamentos primitivos de Bastian. Ele vinha estudar os povos indígenas “de acordo com os pontos de vista e do método da pesquisa antropológica e etnológica mais recente”.142 O interesse da etnologia pelos Botocudos ocorreria, de acordo com ele, porque eles apesar do longo contato com a sociedade

137 EHRENREICH, 1887, p. 1.

138 CARNEIRO DA CUNHA, 1992a, p. 140. 139 PARAÍSO, 1992, p. 429.

140 15 anos após sua chegada à Alemanha, Quäck faleceu em decorrência de uma inflamação no fígado. 141 EHRENREICH, 1887, p. 1.

envolvente teriam se mantido em seu nível cultural original. Eles se opuseram à influência europeia e se mantiveram “nas camadas inferiores da civilização [Gesittung]”.143 Além disso, a pesquisa de Ehrenreich estava mais alinhada com a ciência de Virchow do que com a de Bastian, e o antropólogo físico desejara que von den Steinen tivesse adquirido comprovação empírica acerca da diferença entre os crânios dolicocéfalos (alongados) dos Tupi e dos Jê dos crânios braquicéfalos (ovoides) dos Aruaque.144 Em outras palavras, Ehrenreich não queria coletar mitos, mas crânios. Ele não buscava comparar línguas, mas medidas. Von den Steinen estava interessado sobretudo em linguística, cultura material e mitologia, e ocasionalmente em antropologia física, Ehrenreich em antropologia física e linguística, e ocasionalmente em cultura material.

A expedição, que se concentrou no Rio Doce e alguns de seus afluentes foi financiada com recursos próprios, e do ponto de vista operacional e logístico difere absolutamente da expedição de von den Steinen. Von den Steinen percorrera o Xingu acompanhado de um desenhista, outro cientista, um bando de homens armados e guias indígenas.145 Ehrenreich cursou o Rio Doce e seus afluentes a bordo de barcos acompanhado pelos diretores dos aldeamentos e alguns homens indígenas, parando nas localizações estratégicas para realizar seus estudos.146

Ele partiu da Alemanha na “primavera” de 1884 e chegou em 1 de outubro na cidade de Linhares.147 Ele fez pequenas excursões na região, inclusive com interesse zoológico. Em 5 de novembro ele partiu para o aldeamento de Mutum, na companhia do seu diretor. Ehrenreich permaneceu por aproximadamente 3 semanas no aldeamento. De lá ele partiu para o Rio Guandu (no Espírito Santo) para fazer uma visita aos Botocudo não aldeados. Ehrenreich voltou ao aldeamento de Mutum e lá fez uma excursão ao Rio Pancas para visitar outras “tribos”. Então retornou ao Rio Doce, depois à Linhares e à Vitória. Em 1 de fevereiro de 1885 ele deixou Vitória mais uma vez, com cinco semanas de atraso por conta das condições climáticas.148 Até meio de fevereiro ele permaneceu em Cachoeira de Itapemirim, aguardando a melhora do clima.

143 EHRENREICH, 1887, p. 2. 144 VIRCHOW, 1886, p. 234. 145 HEMPEL, 2015, p. 209.

146 EHRENREICH, Paul. “Reise auf dem Rio Doce”. Zeitschrift für Ethnologie. Berlim, v. 17, p. 62-65, p. 62-63,

1885a.

147 EHRENREICH, 1887, p. 1; EHRENREICH, 1885a, p. 62.

19 de fevereiro ele partiu em direção ao “interior”,onde ele visitou os índios Puri.149 Ele formou uma pequena coleção etnográfica e voltou ao Rio Doce e então ao aldeamento de Mutum, para se recuperar por uns dias. O americanista planejava retornar ao Rio Pancas, porque os resultados de sua pesquisa ali em dezembro do ano anterior não haviam sido satisfatórios. No entanto, ele foi impedido por causa da alta do rio. Então ele decidiu realizar uma expedição com fins mineralógicos e no início de abril ele retornou mais uma vez ao aldeamento de Mutum, onde permaneceu até dia 18, quando fez uma excursão de três dias ao Rio Pancas. No seu retorno a Mutum, uma carta o aguardava. Ela relatava que a casa em que ele hospedara em Vitória, e em que armazenava algumas coisas, pegou fogo. Os donos da pensão conseguiram salvar nada mais que as próprias vidas. O prejuízo do etnólogo não foi desprezível: roupas, mapas, anotações, uma pequena coleção zoológica e a metade dos seus estudos de língua Botocudo foram consumidos pelo fogo. Por isso ele pediu ao subdelegado de Guandu que completasse suas notas. Em fim de maio, Ehrenreich se despediu de Mutum e viajou ao Rio de Janeiro, onde embarcaria para a Amazônia. No início de julho, ele fez uma pequena viagem a Santos e a São Paulo, onde conheceu Couto de Magalhães (1837-98) e visitou a coleção etnográfica de Coronel Joaquim Sertório (1824-1910), que posteriormente se tornava o primeiro núcleo do Museu Paulista.150 No seu retorno ao Rio de Janeiro, ele recebeu o vocabulário Botocudo. No entanto, acometido por malária, ele precisou permanecer um tempo em repouso no Rio de Janeiro, até abandonar a expedição à Amazônia e retornar para a Alemanha.

Seus resultados nunca foram publicados em uma “monografia etnográfica”, que tivesse feito uso de todos os “materiais” à disposição.151 Ao invés disso, o etnólogo publicou vários artigos de tamanhos variados, separando a descrição da viagem dos resultados científicos. O artigo mais relevante, Ueber die Botocudos der brasilianischen Provinzen

Espiritu santo und Minas Geraes (“Sobre os Botocudos das províncias brasileiras Espírito

Santo e Minas Gerais”) não narra a sua expedição, como a monografia de von den Steinen. Trata-se de um texto sóbrio e impessoal, em que o cruzamento de fontes históricas e notas etnológicas e antropológicas visava apresentar uma contribuição aos “especialistas”, apesar das lacunas de seu texto, oriundas da curta permanência em campo. Von den Steinen escreveu um

149 EHRENREICH, 1885b, p. 310.Os Puri são falantes de língua pertencente ao tronco Macro-Jê.

150 EHRENREICH, Paul. “Die brasilianischen Wilden.” Zeitschrift für Ethnologie. Berlim, v. 17, p. 375-376,

1885c, p. 375.

livro destinado a um público mais amplo, Ehrenreich artigos para especialistas. O primeiro fez uso de recursos literários então em voga, mas que do ponto de vista da ciência eram desatualizados. O segundo expôs uma apresentação objetiva dos fatos científicos, ancorada na mais moderna narrativa científica, mas que na época atingiram apenas um ciclo restrito de especialistas e atualmente sequer isso. Os fatos científicos são produtos e produtores das narrativas da ciência.

A partir de uma crítica das fontes europeias e brasileiras, o americanista afirmou que o nome Engrekmung, que Wied-Neuwied atribuiu à autodenominação dos Botocudo, seria uma corruptela de Krakmun ou Kekmun, termos que lembram o nome Krenak, pelo qual os Borum se tornaram conhecidos a partir do século XX.152 O uso das fontes permitiu-lhe reconstruir as divisões populacionais dos Botocudo e as respectivas localizações de cada grupo, o fluxo migratório e a diminuição do território tradicional, suas organizações sociais e aspectos culturais. Entretanto, “uma descrição etnológica dos Aimoré precisa se sustentar em primeira linha evidentemente sobre a consideração das tribos nômades selvagens”.153 Para isso, ele se valeu de uma visita “curta, porém interessantíssima” aos Ńep-ńep no Rio Pancas, que lhe permitiu observar os costumes desses povos da natureza (Naturmenschen), isto é, primitivos.

Os dados antropológicos e linguísticos provêm dos Nāk-nenuk do aldeamento Mutum e dos Nak-erehä do Rio Guandu. Acerca dos Botocudo, ele afirmou que “a aparência física desses selvagens [...] absolutamente não é tão assustadora como se tende a aceitar frequentemente de acordo com as descrições e ilustrações dos antigos viajantes”.154 Ele está de acordo com a exposição de Maximilian zu Wied-Neuwied, para quem os Botocudo tinham uma boa estrutura corporal e uma constituição mais bela que a das demais etnias, eram fortes e musculosos.

Ele apresentou uma descrição antropológica bastante minuciosa, comparando as medidas de nove homens e cinco mulheres de faixas etárias variadas. Assim, ele nomeou as 14 pessoas medidas e apresentou os dados acerca da altura total; largura e altura dos ombros; altura dos cotovelos, punhos, dedo do meio, osso esterno, umbigo, pelve, fêmur, joelho e tornozelo;

152 EHRENREICH, 1887, p. 6; PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. “Krenak”. Povos Indígenas no Brasil. Instituto

Socioambiental. São Paulo, dezembro de 1998. Disponível em:

https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak#Nome_e_l.C3.ADngua. Acesso em 09.10.2018. Os Borun são um povo de língua Jê.

153 EHRENREICH, 1887, p. 14, ênfase original. 154 EHRENREICH, 1887, p. 14.

largura e comprimentos de mãos e pés, circunferência do peito. Ehrenreich também mediu especificamente as cabeças das pessoas: largura e altura; altura das orelhas; largura da testa; distância entre o início do cabelo e o queixo e entre o nariz e o queixo; distância entre os ossos zigomáticos (da bochecha), os ângulos da mandíbula, os cantos internos e externos dos olhos; altura, comprimento e largura do nariz e o comprimento da boca. Além disso, ele também registrou a cor do rosto, do corpo e da íris das pessoas. Não há registros sobre a aquisição desses dados, todavia, há descrição e análise das medições, ainda que estas sejam historicamente datadas para o cenário acadêmico. Analisando as medições e comparando-as com dados de outras áreas do mundo, ele sustentou que os Botocudo têm fisionomia do tipo proveniente do noroeste asiático e concluiu que “especialmente entre os jovens a expressão facial é aberta, livre e de bom caráter”, enquanto entre “indivíduos mais velhos não faltam fisionomias selvagens e sombrias”. Mas os Botocudo “apesar de sua vida nas florestas sinistras” são “decididamente alegres e conversadores, e amam de paixão a dança, o canto e a música europeia”.155 Tratando ainda de antropologia física, Ehrenreich mencionou as modificações corporais, como o uso de botoque e as pinturas tradicionais.

Em suma, o etnólogo não apenas repetiu um padrão bastante antigo quanto à aparência física dos ameríndios (fortes e belos) e ao caráter (bondosos e alegres), mas forneceu legitimidade científica para os relatos pretéritos. Além disso, ele reiterou a noção, em voga em sua época e também referida por von den Steinen, de que haveria camadas culturais e que os Botocudos ocupariam um dos estágios culturais “mais inferiores que podem ser encontrados em qualquer povo na terra”.156

Ehrenreich comparou os dados craniométricos obtidos entre os Botocudo com aqueles recolhidos pelos pesquisadores brasileiros Ladislau Neto, Lacerda e Peixoto. Além disso, ele levou para a Europa o crânio de Potetú, o grande atirador de flechas, que falecera havia poucos meses, além de outros quatro e conferiu todas as medidas.157 Dois crânios eram da região do Rio Pancas, de pessoas que haviam morrido havia aproximadamente dez anos. O estudo de crânios Botocudo não era exatamente inovador na antropologia alemã, mas era objeto de muito interesse. O primeiro crânio Botocudo fora levado para a Alemanha pelo príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied, com que ele presenteou Blumenbach, o cientista natural e

155 EHRENREICH, 1887, p. 19. 156 EHRENREICH, 1887, p. 22.

antropólogo, cujas teses eram debatidas por intelectuais como Goethe e Alexander von Humboldt. Hartt e Saint-Hilaire também adquiriram crânios Botocudo – apesar de Ehrenreich afirmar que o espécimen que Saint-Hilaire doou ao Museu de Paris era, na verdade, Tupi.

Virchow analisou a maioria dos crânios Botocudo e também quatro doados por Dom Pedro II para a Sociedade de Antropologia de Berlim em 1875. A investigação desses três crânios adultos e um infantil foi publicada por Virchow na Revista de Etnologia (Zeitschrift für

Ethnologie).158 Isso explica a relevância da pesquisa de Ehrenreich: ele foi o primeiro cientista a obter dados antropológicos in loco, levar crânios para a Alemanha e compará-los com os dados pretéritos. Na reunião da Sociedade de Antropologia, realizada em 21 de fevereiro de 1885, Virchow apresentou uma palestra sobre os crânios e esqueletos enviados por ele. A partir desses dados, ele afirmou haver diferenças fisiológicas entre os moradores de Mutum e os do Rio Pancas, mas ainda assim defendeu “a origem comum” desses povos.159 Para Virchow, apesar dessas distinções, tratava-se de uma “raça relativamente pura”.160

Uma das conclusões da análise comparativa de Ehrenreich está de acordo com a hipótese de Virchow, de que as diferenças entre os crânios “são de importância para a separação das tribos” do Brasil Central e Meridional.161 Com base na análise antropológica e linguística, Ehrenreich também concluiu que os Botocudo e os Puri são dois grupos diferentes, contrariando a tese de Martius.162

Existia, portanto, trânsito de material humano oriundo do Brasil pela rede de cientistas alemães. Por ela não circulavam apenas correspondências, livros e objetos, mas também crânios. Mais do que objetos destituídos de caracteres humanizados, os crânios tinham historicidadades próprias, e estas eram retomadas pelos cientistas quando de suas análises. Os crânios transmitiam a destinatários futuros ações recebidas por emitentes pretéritos, e além de intermediários de relações sociais, eles eram partes integrantes das redes sociocientíficas, pois eram causadores de reações de outros agentes – como de indígenas ou cientistas, distintas em sua essência, perante sua presença. Uma vez em circulação na rede e com potencial para causar efeitos, os crânios eram tanto agentes inter-relacionais, como também signos na fronteira entre

158 VIRCHOW, Rudolf. “Schädel und Skelette vom Rio Doce.” Zeitschrift für Ethnologie. Berlim, v. 17, p. 248-

254, 1885, p. 249.

159 VIRCHOW, 1885, p. 248. 160 VIRCHOW, 1885, p. 248. 161 EHRENREICH, 1887, p. 72. 162 EHRENREICH, 1885b, p. 310.

humanidade e objetividade e, assim, potencialmente embaçadores dos limites nas relações entre pessoas e coisas. Se é aceito que nas redes cosmológicas indígenas seres humanos e não- humanos relacionam-se profundamente, o mesmo para vale para as redes científicas.

O número de esqueletos inteiros disponíveis era bem menor do que o de crânios, mas Ehrenreich estudou um que Dom Pedro doara ao Museu de Paris. Ele levou dois para a Alemanha, tendo exumado ele mesmo um deles no aldeamento de Mutum.163 Este esqueleto supostamente era de um homem que falecera com aproximadamente cem anos de idade.164 O outro era proveniente do Rio Pancas. O desfecho de sua análise de antropologia comparada é de que não era possível ainda, mediante a falta de dados, afirmar conclusivamente a posição dos Botocudo no quadro geral de povos, no que tange a sua anatomia. Eles se difeririam da população que construiu os Sambaquis e se assemelharia aos Tupi, dos quais eles se diferem do ponto de vista etnológico. Ainda não havia para os povos Jê material tão consistente quanto os recolhidos pelo cientista natural dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) nas cavernas de Lagoa Santa. Outro fator que impelia a pesquisa de campo era que a questão Jê havia sido completamente reformulada por von den Steinen, que contatou um povo Jê isolado na bacia do Rio Xingu (os Suyá). As conexões linguísticas, arqueológicas, etnológicas, histórico-culturais e antropológicas entre as regiões do Xingu e do Rio Doce somente poderiam ser descobertas através do trabalho de campo.165

Além das medições corporais e dos dados craniométricos, Ehrenreich também se dedicou à fotografia. Ele não foi o primeiro cientista europeu a tirar fotografias antropológicas de populações não europeias no Brasil. Entre 1865 e 1866, Louis Agassiz compusera um álbum reunindo 200 imagens de escravos africanos no Brasil.166 Ehrenreich não foi também a primeira pessoa a fotografar ameríndios. Há imagens de índios Kaixana, Miranha e Ticuna que datam de 1868 e foram feitas seu conterrâneo Albert Frisch (1840-1918).167 Ao americanista também não

163 EHRENREICH, 1887, p. 75-76. 164 EHRENREICH, 1885a, p. 64. 165 EHRENREICH, 1887, p. 80-81.

166 MACHADO, Maria Helena P.T.. “Os rastros de Agassiz nas raças do Brasil: a formação da coleção fotográfica

brasileira”. In: MACHADO, Maria Helena P.T.; HUBER, Sasha. (T)races of Louis Agassiz: Photography,

Body and Science, yesterday and today / Rastros e raças de Louis Agassiz: Fotografia, Corpo e Ciência, ontem e hoje. São Paulo: Capacete Entretenimentos, 2010, p. 30.

167 KOHL, Frank Stephan. “Albert Fritsch and the first images of the Amazon to go around the world.” In: WOLFF,

Gregor (Org.). Explorers and Entrepreneurs behind the Camera. The Stories behind the Pictures and

Photographs from the Image Archive of the Ibero-American Institute. Berlim: Ibero-Amerikanisches Institut,

se devem as primeiras imagens dos Botocudo. Muito antes dele, retratos desse povo foram feitos e, particularmente na Alemanha, as ilustrações no livro do príncipe Wied-Neuwied se tornaram bastante conhecidas.168 Dele também não são provenientes as primeiras fotografias dos Botocudo. O pioneiro desse registro fotográfico foi Marc Ferrez (1843-1923), que em 1875 fez retratos de algumas pessoas provenientes de grupos da Bahia.169 Ele não foi nem o primeiro a fotografar os Botocudo do Espírito Santo. Alguns anos antes dele o fotógrafo alemão Albert Richard Dietze (1838-1906) fotografara um grupo aldeado.170

No entanto, a Paul Ehrenreich deve se dar o crédito de um feito notável: ele foi o primeiro etnólogo a tirar fotos de povos indígenas das terras baixas sul-americanas sem contato.171 Alegando dificuldades logísticas von den Steinen preferiu os desenhos de seu primo Wilhelm ao uso da câmera.172 Duas fotos de grupos Botocudo do Rio Pancas inauguraram assim a fotografia etnológica no Brasil (imagens 16 e 17). Ehrenreich tinha consciência da importância das fotografias dos Botocudo, logo que as enviou para serem exibidas em reunião da sociedade de antropologia quando ele ainda se encontrava no Brasil, frisou ter sido ele o primeiro registrar fotograficamente índios Botocudo “selvagens e completamente nus” e desqualificou as fotografias de Dietze por mostrarem índios com roupas europeias.173 Ele produzia assim uma competência de autoridade científica. Ela se distingue, todavia, daquela que James Clifford imputou a Malinowski. Clifford discute as transformações dos parâmetros metodológicos da etnologia, atribuindo a Malinowski a criação de um novo modelo de etnografia, “um novo e poderoso gênero literário e científico”, que sintetiza descrições culturais baseadas em trabalho de campo.174 A autoridade etnográfica incutida pelo etnólogo polonês para si baseava-se na validação dos seus pares e da opinião pública da metodologia de apreensão