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A geografia era dividida em três grandes campos de pesquisa: geografia física, biogeografia e antropogeografia. Segundo Moraes, “estas três vertentes da ciência geográfica foram concebidas como estudos sintéticos (que buscam relações entre fenômenos diversificados) e explicativos (capazes de gerar leis).”.74 A antropogeografia de Ratzel tinha três objetivos extensíssimos: analisar a ação ambiental sobre as sociedades; compreender a distribuição dos povos pelo planeta e estudar a formação dos territórios nacionais. Destas, a terceira temática, com enfoque no conceito de território, sua análise e aplicação, foi fundamental para a constituição da geografia política, da qual ele foi um dos fundadores.

Os dois primeiros temas da antropogeografia de Ratzel tiveram maior repercussão na etnologia. Diferentemente de Kant, que em seus estudos de antropologia e geografia associava a suposta multiplicidade racial às diferenças climáticas, para Ratzel, a diversidade de condições ambientais constituiria a explicação para a diversidade de povos. Ele aponta que a causa para o mau uso de material por Kant foi a influência que ele sofreu das conclusões

apressadas de Buffon.75 Apesar dessa crítica a Kant, seu conceito sobre a unidade indissolúvel do gênero humano, também disposto de forma bem mais eloquente em Herder e Ritter – duas de suas principais influências ao lado de Alexander von Humboldt e Auguste Comte (1798- 1857) – foi fundamental para a constituição do seu pensamento. O diálogo de Ratzel com Conte ocorre quanto à apreensão de um modelo científico. Moraes demonstra que a filiação de Ratzel ao positivismo de Comte é evidenciada no fato dele “professar o princípio da unidade do método científico, isto é, a ideia da existência de um único método comum a todas as ciências – as quais seriam, consequentemente, definidas por objetos próprios”.76

As influências de Alexander von Humboldt, todavia, não se restringem apenas à consideração sobre a terra enquanto unidade composta pela interconexão de todos os seres vivos e minerais. A própria constituição da geografia como disciplina autônoma e descritiva remete a Humboldt (e Ritter). Além disso, Ratzel era crítico de abordagens dedutivas e era tributário do modelo empírico-indutivo de Humboldt. Nesse sentido ele era “sem dúvida, materialista. Não transita em sua argumentação nenhum elemento de metafísica ou de subjetivismo”.77 Essa característica do seu pensamento o difere significativamente de Bastian. Este era um cientista natural, que via na etnologia um meio de fornecer material empírico para a psicologia, que se ocuparia em responder questões metafísicas através de uma análise científica do material etnográfico. Aquele era um geógrafo preocupado em compreender as múltiplas relações dos homens com o meio ambiente. A etnografia também faria um papel auxiliar na abordagem de Ratzel, já que ela abastecia sua análise com dados empíricos que pontuariam o meio pelo qual os homens eram influenciados pelas pressões da natureza ao redor do mundo. Ele articulava diversas disciplinas como a geografia, a etnologia e a história, mas o fim último de sua obra era postular uma teoria da história. Esta abarcava a geografia e etnografia, e, enquanto disciplina científica, tinha por objetivo fornecer explicações universais. Ele fazia, portanto, filosofia da história.

De acordo com o geógrafo, haveria quatro formas de influência da natureza sobre os homens:

75 RATZEL, Friedrich (1882/1891). “Geografia do Homem (Antropogeografia)”. In: MORAES, Antonio Carlos

Robert (Org.). Ratzel: Geografia. São Paulo: Editora Ática, 1990, 36-37.

76 MORAES, 1990b, p. 12. 77 MORAES, 1990b, p. 12.

1. Uma influência que se exerce sobre os indivíduos e produz nestes uma modificação profunda e duradoura; primeiramente ela age sobre o corpo e sobre o espírito do indivíduo e é por sua natureza fisiológica e psicológica [...]. 2. Uma influência que direciona, acelera ou obstaculiza a expansão das massas étnicas. Esta determina a direção da expansão, sua amplitude, a posição geográfica, os limites. 3. Uma influência mediata sobre a essência íntima de cada povo que se exerce impondo a ele condições geográficas que favorecem o seu isolamento e por isso a conservação e a reafirmação de determinadas características, ou facilitando a miscigenação com outros povos e portanto a perdas das próprias características. 4. Finalmente uma influência sobre a constituição social de cada povo que se exerce ao oferecer-lhe maior ou menor riqueza de dotes naturais, ao facilitar-lhe ou tornar-lhe difícil primeiramente a obtenção dos meios necessários à vida, e depois dos meios necessários ao exercício da indústria e do comércio e pois a obtenção da riqueza por meio da troca.78

Dessa importante afirmação diversas consequências podem ser depreendidas. Ele buscava compreender as inúmeras formas de relação entre humanos e o ambiente, a multiplicidade de tipos de pressão que a natureza pode exercer sobre as sociedades, bem como verificar se a diversidade cultural se origina com as imposições dos ambientes. Enquanto explicação universalista, a sua teoria da história de postula não haver povos sem história. O geógrafo via na pressão da natureza sobre as condições físicas e intelectuais dos homens um condicionamento e não um determinismo absoluto. A influência do ambiente sobre os homens é duradoura, e, assim, transposta a gerações subsequentes. Além disso, as pressões ambientas são fatores condicionantes para as migrações, que aliadas às diversas respostas culturais ao manejo da natureza e à transferência das transformações culturais sofridas pelas populações, constituem motivos para a multiplicidade cultural. Na migração resultante das limitações sociais impostas pela natureza que se encontra o embrião da teoria etnológica que marcaria o cenário intelectual alemão por, ao menos, meio século: o difusionismo. Bens culturais – mitos, rituais, técnicas, cultura material, nomes etc. – viajariam com as populações migrantes, o que explicaria a presença de certos bens semelhantes em povos completamente afastados. Assim ele buscava responder a uma questão fundamental de sua época, com a qual os americanistas também se preocupariam algumas décadas depois: qual é a origem das culturas e como se explica a diversidade cultural?

A posição de Ratzel neste debate conflitava com a de Bastian. A partir de leituras dos mesmos autores – Herder, Alexander von Humboldt e Ritter – e observando o mesmo fenômeno cultural, de que bens culturais semelhantes surgiam entre povos separados no tempo

e no espaço – eles formularam hipóteses distintas. Na explicação difusionista de Ratzel – que os bens culturais se difundem pelos territórios em consequência das migrações – praticamente não há espaço para a invenção autônoma e nem para criatividade. Arco e flecha são representações ideais da tentativa da antropologia alemã do século XIX de buscar explicações sobre a origem dos bens culturais e as coincidências materiais. Arco e flecham eram usados na China antiga, entre mongóis, na Europa medieval, entre povos ameríndios e entre outros vários povos e assim, ambos publicaram textos debatendo especificamente o surgimento desses instrumentos e debatendo um com o outro.

Bastian tendia a considerar a importância da “invenção independente”, ou seja, que bens culturais são inventados em diferentes lugares independentemente da comunicação entre os povos. De acordo com Köpping, ele reconhecia seu próprio menosprezo pelas influências geográficas e pela migração e acatavam a difusão de bens culturais por extensas áreas. A difusão e a invenção independente não seriam, para ele, fenômenos mutuamente exclusivos.79 Na posição um tanto conciliadora de Bastian, para quem a geografia era causa suficiente (mas não final) para a criação de padrões mentais coletivos, o surgimento de bens culturais semelhantes em lugares distintos é fruto da transformação das disposições mentais inatas (os

Elementargedanken) em pensamentos culturais coletivos (Völkergedanken). A essência mental

comum a todas os humanos e a quantidade restrita (embora incalculável) de possibilidades de transformação explicaria os eventuais aparecimentos de bens culturais semelhantes ou mesmo iguais entre povos distintos.

Parte constituinte desse debate são duas linhas teóricos aparentemente semelhantes, mas de variado ordenamento interno: província geográfica para Bastian e território para Ratzel. Para Bastian, a apreensão da transformação dos pensamentos elementares em pensamentos étnicos é facilmente percebida na província geográfica (geographische Provinz). No entanto, a noção de província geográfica não se restringe a um território geograficamente singular. Ele sugeria haver uma espécie de fusão metafísica entre a província geográfica e as populações nativas. Em passagem obscura, mas elucidativa para um livro de linguagem confusa, lê-se que

[...] o areal histórico da raça ariana80 representaria uma província etnográfica (ou histórico-etnográfica), a qual subjacente a esse terreno da absorção das províncias

79 KÖPPING, 1983, p. 61.

geográficas (primariamente etnográficas), mal pode ser reconhecido nos apagamentos existentes aqui e ali (entre os lapões da Escandinávia, entre os bascos dos Pirineus, entre os habitantes do Valais, entre outros), Entre outras coisas apenas (pois com o implemento de um processo de desenvolvimento historicamente movido, a província topo-geográfica desaparece) homogeneidades semelhantes são lidadas por semitas81 crescidos de raízes endêmicas de variadas ramificações, de zonas sinológica e indológica (indonesa, indochinesa) e outras mais (para, por sua vez, [criar] centros internos de rotação singulares).82

A sua proposta, portanto, considerava haver uma fusão entre povo e território, de modo a ter efeito para o desenvolvimento das culturas humanas e de sua multiplicidade. Ratzel, por sua vez, afirmava, dentre as diversas caracterizações da noção de território, que este tinha efeitos políticos, sociais, culturais sobre as sociedades, e a longo prazo, evolucionistas, mas não metafísicos.

Os americanistas alemães também se ocuparam com a discussão que opunha a difusão de bens culturais à invenção independente deles. Esse debate foi transmitido aos americanistas através de Karl von den Steinen, que trabalhou sob direção de Bastian em Berlim e com quem ele discutia a relação entre os Völkergedanken (ou “visão de mundo”) e geografia.83 Os americanistas inclusive contribuíram com uma terceira hipótese para este problema teórico.

Outra herança que os americanistas obtiveram deles foi a terminologia. Bastian propôs uma divisão dualista da humanidade, acatada e empregada por Ratzel: os Naturvölker, “povos naturais”, e os Kulturvölker, “os povos culturais”.84 Ainda que frequentemente estes conceitos sejam traduzidos como oposições, respectivamente, por “aborígenes” e “civilizados”; o termo Naturvolk foi cunhado por Herder em 1774 para ser uma alternativa ao termo “selvagem” (Wild).85 Eles não fundamentaram essa distinção em valores morais intrínsecos, mas na suposta capacidade de exercer domínio técnico sobre as intempéries da natureza. Para Ratzel, os Naturvölker vivem sob a ditadura da natureza, enquanto o progressivo domínio da natureza permitiu aos Kulturvölker gozar de maior liberdade.86 Segundo Bastian, por outro lado,

81 Neste sentido: populações de línguas semitas do oriente médio.

82 BASTIAN, Adolf. Ethnische Elementargedanken in der Lehre vom Menschen. Berlin: Weidmannsche

Buchhandlung, 1895, p. 187-188.

83 KÖPPING, 1983, p. 61. 84 KÖPPING, 1983, p. 63.

85 HERDER, Johann Gottfried von (1774b). “Älteste Urkunde des Menschengeschlechts. Eine nach Jahrhunderten

enthüllte heilige Geschichte”. In: MÜLLER, Johann Georg (Org.). Johann Gottfried von Herder’s sämmtliche

Werke zur Religion und Theologie. Tübingen: J.B. Gotta’sche Buchhandlung, 1806, p. 83. 86 KÖPPING, 1983, p. 63.

um maior controle sobre as forças da natureza implica em maior capacidade de gerar transformações e os ambientes alterados pela cultura, exercem influência sobre as culturas promovendo modificações. Esse dualismo foi largamente empregado na etnologia e na antropologia alemãs e assumiu características que variavam de acordo com os autores. Para o antropólogo físico Felix von Luschan (1854-1924), por exemplo, Naturvölker eram povos desprovidos de cultura.87 Ao menos para a primeira geração de americanistas alemães, o termo

Naturvölker também foi empregado para se referir aos povos indígenas do Brasil.

O terceiro intelectual em comando na etnologia alemã no final do século XIX foi Rudolf Virchow (1821-1902). Ele (imagem 3) estudou medicina em Berlim, onde apresentou uma tese de doutorado sobre patologias humanas em 1843. Ele trabalhou em Würzburg até 1856, onde desenvolveu seus conhecidos estudos sobre patologia celular. Em seu retorno a Berlim, obteve a vaga de professor de anatomia patológica na Universidade, além de trabalhar no hospital Charité na mesma cidade. Ele era particularmente ativo nos campos de higiene, cuidados médicos e medicina preventiva. Seu amplo leque de investigação o levou a pesquisar também nas áreas de arqueologia, etnologia, pré-história, mas sobretudo antropologia física.88 Além de atuar na área de ciências médicas (e como político, ocupando cargos na administração municipal de Berlim e no parlamento imperial, o Reichstag), Virchow foi o maior antropólogo físico alemão de sua época, “intelectualmente, ideologicamente e institucionalmente”, nas palavras de Massin.89 Suas pesquisas de antropologia física concentraram-se em craniologia, biometria, antropometria, estudo de padrões de cor de cabelo e de pele e como empirista convicto, chegou a qualificar a evolução das espécies proposta por Charles Darwin (1809-82) como hipótese sem comprovação.90 Segundo Benoit Massin, a antropologia física alemã exerceu considerável influência sobre a vida intelectual europeia, apesar da pequena quantidade de antropólogos dedicados exclusivamente ao estudo biológico da espécie humana e do baixo grau de institucionalização.91

87 MASSIN, 1996, p. 97. 88 MASSIN, 1996, p. 82. 89 MASSIN, 1996, p. 83. 90 MASSIN, 1996, p. 83. 91 MASSIN, 1996, p. 83ss.