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Constituyente Boliviano, em 21 de agosto de 2009

Fonte: Governo da Bolívia

O texto constitucional, promulgado em 2009, após um referendo, traz demandas da “agenda de outubro”, porém com ambiguidades que atenuam as reivindicações ou até mesmo as negam. Como retrata Xavier Albó:

A Constituição nasceu viva, mas frágil e com problemas respiratorios por isso teve que seguir internada e com cuidados intensivos. Ao cumprir seu primeiro ano, após novas tentativas falidas de afogar a criatura, com a ajuda de certa cirurgia plástica e cosméticos e sob o olhar protetor de galenos [médicos] da Unasul e Nações Unidas, ao final pôde sair à luz pública em fins de 2008. Foi então apropriada pela sociedade com um folgado 61

porcento de aprovação, e desde fevereiro de 2009 é nossa nova CPE [Constituição Política do Estado] (2012, p. 223).

Evo aceitou a exigência da medialuna de maior autonomia “como espaço de planejamento e gestão” aos departamentos. Sobre a reeleição, a Constituição pactuada manteve o artigo sobre a reeleição do presidente. Evo concordou que poderia se candidatar apenas para as eleições de 2009, ele não teria direito a ser candidato em 2014. Mostrava-se, assim, o interesse da oposição em voltar ao poder do Estado nesta data.

Em relação à questão indígena, o pacto de Unidade, de agosto de 2006, estabelecia a consulta prévia e obrigatória às organizações sociais do local para avaliar a extração de recursos naturais, sendo das nações indígenas e camponesas o domínio dos recursos não renováveis. A propriedade destes recursos seria dividida entre estes e o Estado. Evo recusou tanto a proposta de propriedade como a de uso exclusivo dos recursos renováveis. Já após algumas concessões das organizações indígenas, os constituintes do MAS aprovam um acordo em que se reconhece

a integralidade do território indígena originário e das comunidades que inclui o direito à terra, ao uso e aproveitamento exclusivo dos recursos naturais renováveis nas condições determinadas por Lei, a consulta prévia e informada e a participação nos benefícios pela exploração dos recursos naturais não renováveis que se encontram em seus territórios; a faculdade de aplicar suas normas próprias, administrados por suas estruturas de representação e definir seu desenvolvimento de acordo com seus critérios culturais e princípios de convivência harmônica com a natureza (apud SCHAVELZON, 2012, p. 188, tradução

nossa).

Esta seria a base do artigo 403 da Constituição, mas em outubro de 2008, nos acordos com a direita, agregou-se a frase “sem prejuízo dos direitos legitimamente adquiridos por terceiros” (SCHAVELZON, 2012, 188). Este elemento de anterioridade foi recorrente e acabou protegendo interesses de transnacionais, latifundiários e outros setores das classes proprietárias, no que diz respeito aos recursos naturais e à reforma agrária. Outra manobra foi trocar, por

futuras regulamentações, propostas definidas de proibição de transgênicos, controle social e obrigatoriedade de que os governantes e funcionários falem pelo menos uma das 36 línguas de povos originários reconhecidas na nova constituição.

No caso da Justiça Indígena, que abordaremos mais detalhadamente no subcapítulo 3.5, destacamos aqui a questão da formação do Tribunal Constitucional

Plurinacional ao qual cabe dirimir possíveis apelações de “constitucionalidade” em

pleitos entre a jurisdição indígena originário camponesa (IOC) e a ordinária. Na versão aprovada pelos constituintes em 2007, no artigo 198 determinava-se uma “representação paritária entre o sistema ordinário e o sistema IOC” (tradução

nossa). Após a negociação com a oposição, retirou-se a palavra paritária. O que

altera significativamente o que demandavam as organizações que compunham o Pacto de Unidade.

Quanto ao tamanho dos latifúndios, a definição foi postergada para um novo referendo para que a população se posicione se as propriedades devem ter 5 mil ou 10 mil hectares. Pelo acordo celebrado sob a ação da Unasul, os latifúndios existentes não seriam afetados. Ou seja, a lei e o resultado do referendo seriam apenas para evitar juridicamente a formação de novos latifúndios. Em nome da segurança jurídica, sobretudo aos investidores estrangeiros, foi retirada a caracterização de que a propriedade deveria ter uma função social.

A privatização da água que, segundo as cooperativas deveria ser enfrentada com a expropriação das empresas, só teve a substituição do nome de concessão por licença. Ou seja, a reivindicação da Guerra da Água não foi respondida, assim como a da Guerra do gás, presente no artigo constitucional que estabelecia que o Estado assumiria o controle e a direção sobre a exploração, industrialização, transporte e comercialização dos recursos naturais. Na revisão do Congresso, definiu-se que isto valeria apenas para recursos naturais ditos estratégicos e ainda permite a ação de empresas privadas e mistas, contratadas via entidades estatais, comunitárias ou cooperativas. Setores fundamentais dos serviços públicos como a saúde, educação e previdência, ficaram de fora da lei que proíbe a privatização.

O exemplo mais contundente dos limites do processo constituinte, porém, se deu com algo que estava garantido pela nova Constituição, mas não foi cumprido pelo governo. A tentativa de construção da rodovia Território Indígena Parque Nacional Isiboro Secure (TIPNIS), por parte do governo de Evo Morales, sem consulta às comunidades indígenas viola a nova constituição e trouxe questionamentos ao processo de “descolonização”, pois o governo reprimiu os protestos e marchas multitudinárias, atribuiu as ações indígenas à influência das Organizações Não Governamentais (ONGs) e da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e caracterizou os dirigentes como traidores por serem contra o desenvolvimento (EL DEBER, 2011).

Vejamos a seguir, mais detidamente, alguns dos momentos em que o governo do MAS que se denominava o governo dos Movimento Sociais, encabeçado por um presidente indígena, esteve em conflito com o movimento indígena. As questões que desencadearam tais tensões tratavam justamente do cumprimento da recém aprovada Constituição.

3.2.1 Confrontos entre o governo e o movimento indígena

Mesmo com todas as promessas de nacionalização e industrialização do gás, a Bolívia não conseguiu, sob o governo Evo Morales, modificar o seu papel na divisão internacional do trabalho, segue como um país exportador de matérias primas. A via adotada para realizar esta mudança, a Constituinte, não poderia resultar na ruptura com o saque imperialista para que se pudesse desenvolver as forças produtivas nacionais. Nos anos seguintes à promulgação da Constituição, desnudou-se a inviabilidade da convivência harmônica entre todos tipos de propriedade e, consequentemente, das classes e nações correspondentes a cada uma delas. No contexto internacional, Evo encontrou um momento de alta do preço das matérias primas, sustentado principalmente pelas altas taxas de crescimento chinês. Como assinala Boaventura de Sousa Santos, a máxima exploração dos recursos naturais aparecia como uma oportunidade histórica imperdível para repartir os

excedentes e promover o desenvolvimento. No entanto, o governo Morales não apontou para a ruptura com o atraso semicolonial. O máximo que fez foi alterar os contratos de concessão com as multinacionais extrativistas para obter uma repertição mais favorável ao país. Tal excedente, porém, não foi aplicado em avanços na infraestrutura (SOUSA SANTOS, 2012, p. 29). Com uma nova justificativa nacionalista, o extrativismo permaneceu central na economia do país.

O apoio social ao neoextrativismo proveio, como era de se esperar, dos setores que tradicionalmente ganharam com ele e agora viram seus lucros crescerem sem a necessidade de suportar o peso político das lutas sociais que suscitou (SOUSA SANTOS, 2012, p. 30, tradução nossa).

Apesar da retórica anti-imperialista e de algumas medidas de choque com o governo norteamericano, Boaventura considera que o anti-imperialismo de Rafael Correa e Evo Morales é bastante atípico.

[...] contraditoriamente (ou não) permite adotar, no plano interno, o neoextrativismo como parte integrante do modelo neoliberal de desenvolvimento e permite lucros fabulosos às empresas multinacionais, muitas delas norte-americanas (2012, p. 32,

tradução nossa).

As populações indígenas que já se mobilizavam historicamente contra os efeitos da política extrativista passaram a resistir às medidas governamentais, a resposta do Estado, assim como sua matriz econômica, permaneceu como antes: violenta repressão. Boventura apresenta os custos sociais do neoextrativismo conforme as denúncias das comunidades indígenas na Bolívia e Equador.

As populações conhecem bem estes custos: ocupação de suas terras sem consulta prévia, contaminação de suas águas, destruição ambiental, violação grotesca dos direitos da Mãe Terra mediante a exploração mineira a céu aberto, reforço da presença das igrejas (aproveitando-se da desorientação e desesperança das populações), assassinatos de dirigentes, deslocamentos massivos de população e seu reassentamento sem nenhum respeito por suas

reivindicações, seus territórios sagrados, seus ancestrais (SOUSA SANTOS, 2012, p. 30, tradução nossa).

É neste contexto que compreendemos a luta contra a construção da rodovia que cortaria do Território Indígena Parque Isiboro Secure (TIPNIS). Raúl Prada considera que estavam em lados opostos, no conflito, o projeto de 2000 a 2005 plasmado na Constituição, impulsionado pela CONAMAQ e CIDOB e, do outro lado, o governo, seu aparato, as transnacionais e o governo brasileiro, a serviço de grandes empreiteiras que fariam a obra (PRADA ALCOREZA, 2012, p. 417). A principal marcha indígena, que percorreu o país entre agosto e outubro de 2011, enfrentou repressão de sindicatos camponeses e do Estado. O presidente da CSTUB alinhado ao governo justificou se apoio à construção da rodovia: “[…] não queremos que os indígenas vivam mais como selvagens” (EL DIARIO, 2011,

tradução nossa). A marcha foi recebida em La Paz em um ato com cerca de um

milhão de pessoas.