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Comício multitudinário em Santa Cruz reivindica autonomia, em 15 de dezembro de

Fonte: La Razón

Salvador Schavelzon etnografou a Assembleia Constituinte e apresenta as tensões entre autodenominados camponeses e indígenas; assim como no entrecruzamento das inúmeras tradições de luta, desde os que se situam na matriz marxista (com suas variantes trotskistas, guevaristas, estalinistas, dentre outras) e no nacionalismo – correntes que disputaram os corações e mentes dos mineiros –,

passando decisivamente pelo indigenismo. Mesmo reconhecendo os limites do texto final, com suas ambiguidades e pactos com a oposição, o autor defende que, por meio da eleição de Evo Morales e da aprovação da Constituinte, os indígenas e camponeses chegam ao Estado e, metaforicamente, até mesmo a Pachamama (SCHAVELZON, 2012, p.47). Sue Iamamoto propõe uma outra divisão dos agrupamentos no interior da “situação”. Identifica entre os que estavam alinhados com o governo de Evo Morales três projetos: “indigenismo”, “nacionalismo” e “marxismo”. Justifica ser uma separação feita para tentar compreender as diferenças em meio a propostas que considera bastante parecidas.

O projeto indigenista aparecia de forma mais definida no documento do Ayra-CONAMAQ, embora aparecesse parcialmente no documento do MAS, CN-PI e MOP. Não encarnava as vertentes mais radicalizadas do indigenismo de contraposição entre nação indígena e nação boliviana. A via institucional da Assembleia Constituinte, segundo Iamamoto, levou ao isolamento do indigenismo “radical”, que se desenvolvia, sobretudo, no altiplano de La Paz. No interior da Constituinte, os setores indigenistas terão sua origem no altiplano sul e nas terras baixas, setores que em 2002 estiveram presentes na marcha pela Assembleia Constituinte. Prevalecerá a visão do Estado como “um ente com o qual se pode „pactuar‟ uma convivência mútua” (IAMAMOTO, 2011, p. 110). Defende o “bom governo” nos moldes do pacto colonial em que é exigido o respeito aos territórios e formas de governo dos povos originários.

As características nacionalistas fariam parte dos documentos do MAS, o MOP, ASP-Tapia, ASP-Vargas e MBL. Como nacionalismo, a pesquisadora considera a defesa das tarefas de desenvolvimento nacional a partir da nacionalização dos recursos naturais, industrialização, garantia de direitos sociais (saúde, educação, previdência, dentre outros). Apresenta elementos que ela considera como “fortemente antiimperialistas”. Seria uma continuidade com o nacionalismo outrora representado pelo MNR, nos marcos da Revolução Nacional de 1952. Defende também o fortalecimento da autoridade estatal, receando a instabilidade do governo. O MBL colocava como grande problema a ser resolvido pela Constituinte a reunificação entre o Estado e a sociedade boliviana.

Um terceiro projeto, com “acento” marxista, segundo Iamamoto (2011, p. 111) agruparia a CN-Pátria Insurgente, MCSFA e AS. O Estado seria visto como “tático” e questionaria o projeto do MAS de formar um governo “de todos”. Definia a classe dominante como adversária, em sua manifestação étnica, “antipátria” e, principalmente econômica. Por isso questiona o bloco masista por não defender o fim da propriedade privada e a expulsão das transnacionais. O sujeito nacional seria parcial: o proletariado urbano e rural. Incorporando “certo indigenismo”, como diz Sue, defenderia a maximização de um projeto popular por meio do fortalecimento das coletividades autogovernadas camponesas, indígenas e urbanas.

A predominância foi dos projetos nacionalista e indigenista, convergindo para a defesa do Estado plurinacional que descolonizaria o país, com desenvolvimento e bem-estar. Mesmo sem demostrar a existência de um agrupamento marxista, mas apenas algumas categorias e consignas mescladas sem muita consistência, Sue conclui que “o projeto „marxista‟ mais puro é minoritário e ganha pouco respaldo nos documentos gerais da situação durante a Assembleia Costituinte” (IAMAMOTO, 2011, p. 112). A explicação da pesquisadora é insuficiente, afirma que um projeto marxista não predominou, pois “o processo de síntese das diversas forças políticas que compunham a situação não ocorreu no interior da Constituinte mesma, mas de forma paralela e sem incluir de maneira orgânica movimentos urbano-populares ou sindicais operários” (IAMAMOTO, 2011, p. 112). Tem-se a impressão de que se a burocracia sindical da COB tivesse um maior peso a Constituinte teria outros rumos, sem considerar os limites estruturais desta forma de parlamento, e nem sob qual direção estaria o movimento operário e seus sindicatos e centrais, majoritariamente, neste momento. Dois episódios, um anterior e outro posterior à Constituinte, ajudam a revelar a política da direção da COB. Em 2005, em meio à crise que levou à renúncia de Mesa, a direção da COB se somou à proposta do MAS de novas eleições. Três anos depois, o MAS lançou uma Lei de Pensões baseada na capitalização individual. A greve de mineiros e professores convulsionou o país e enfrentou uma forte repressão do governo, com a morte de dois mineiros e centenas de feridos. No auge da radicalização, A COB aceitou uma trégua de 45 dias para o governo reelaborar a

lei. Como resultado desmobilizou as bases, o que permitiu que o governo demitisse as lideranças dos professores em Cochabamba, e a lei resultante mantevivesse a mesma base.

O que é indiscutível é a predominância do movimento indígena/camponês neste processo. Desde 2004, as organizações indígenas e camponesas (CONAMAQ, CIDOB, CSUTCB, FNMCB-BS, CSCB) iniciaram a preparação para a Assembleia Constituinte, formando o Pacto de Unidade. A partir da aprovação da lei de convocatória da Constituinte, as reuniões das organizações integrantes do Pacto de Unidade tornaram-se mais frequentes. Aproximadamente metade dos constituintes do MAS eram vinculados às organizações do Pacto de Unidade. Às vésperas da abertura da Constituinte, um evento organizado no âmbito do Pacto de Unidade reuniu 400 representantes, incluindo os constituintes.

No dia seguinte já se inaugurava a flamante Assembleia Constituinte e já se lhe entregava oficialmente a Proposta Consensuada.

A segunda proposta, quase um ano depois (23 de maio de 2007) reflete a permanente interlocução entre os representantes deste Pacto de Unidade, que iam a Sucre de maneira rotativa, e os constituintes (ALBÓ, 2012, p. 224).

Adolfo Mendonza (apud IAMAMOTO, 2011, p. 112), senador pelo MAS, foi assessor do Pacto de Unidade e define esta frente como um movimento social cujo objetivo era a Assembleia Constituinte. Ele afirma que a maior parte das discussões promovidas nas comissões vinham de demandas oriundas do Pacto e não dos constituintes e das forças políticas que representavam. Afirma que esta era a verdadeira força dirigente do processo. O constituinte Raúl Prada Alcoreza afirma que o Pacto de Unidade guiou a Constituinte, mas que o aprofundamento dos debates foi inviabilizado pela tensão sob a qual o processo se desenvolveu, impedindo a discussão de novas propostas trazidas pelos constituintes. Foi constante a atuação da Representação Presidencial para a Assembleia Constituinte (REPAC), criada no primeiro mês do governo do MAS para preparar as discussões para a Assembleia. Inicialmente organizou fóruns, oficinas e seminários ao longo

do país. Forneceu “apoio técnico” para a Constituinte, produzindo informes e jornais que os constituintes levavam para suas bases (IAMAMOTO, 2011, p. 113). Juan Carlos Pinto, que dirigiu o Repac no final do processo constituinte, as primeiras sessões da Assembleia foram caóticas em que os constituintes traziam uma multiplicidade de demandas particulares das localidades. O que unificava os constituintes “sem elaborar muita teoria, (...) são os que estão a favor e os que estão contra Evo” (apud IAMAMOTO, 2011, p. 114).

Depois de muitos conflitos, a Constituição Plurinacional foi aprovada em 2008. O texto constitucional, promulgado em 2009, após um referendo, traz um reconhecimento das nacionalidades indígenas, da autonomia e organização territorial, do uso das línguas e práticas religiosas; protege a Coca como patrimônio cultural; limita os latifúndios, e inscreve novos direitos que contemplam questões de gênero, direitos humanos, sociais e restrições às privatizações. Quanto aos recursos naturais, a Constituição estabeleceu que deveriam passar às mãos do Estado.

O governo pactuou com a direita autonomista para garantir a aprovação do texto, segundo Linera esta era a última alternativa antes do caos e do avanço dos movimentos sociais sobre a propriedade. O vice-presidente chegou a ameaçar que a direita seria responsabilizada historicamente, caso não aceitasse o pacto com o MAS, por “ter asfixiado esse cenário e de ter provocado a emergência de forças sociais que questionarão de maneira radical o latifúndio, a propriedade da terra e as riquezas” (apud SCHALVEZON, 2012, p.278, tradução nossa). Apesar da disposição de conciliação do MAS, a direita continuou sabotando a Constituinte, assim, depois de demonstrações de racismo e violência política, a Assembleia passou a funcionar no Liceu Militar La Glorieta, com participação praticamente exclusiva do MAS.

A maioria que se trasladou para ali aprovou o texto “em geral” e contra o relógio, sem poder sequer lê-lo porque, de fora, a oposição sucrense continuava os fustigando. Já de noite os constituintes escaparam por sendas e voltaram a se reunir, desta vez em Oruro para fazer a aprovação “em detalhe” e lendo o

texto em outra sessão também maratônica, mas em território amigo e apoiados por mineiros e camponeses acampados nos arredores (ALBÓ, 2012, pp. 225-226, tradução nossa).

Foto 22 - Marcha em apoio a Evo e à Constituinte, em La Paz e, ao lado,