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Na “vereação” do dia 3 de janeiro de 1693, com os demais oficiais da Câmara de São Luís e escrivão, o procurador do Concelho requereu que fosse lançado um pregão, ordenando a todos os lavradores “que lavram nas terras do Concelho se venham retificar seus foros por todo o mês de janeiro, com cominação de que não o fazendo sejam expulsos delas e condenados ao arbítrio dos oficiais da Câmara”285. Nas reuniões dos camaristas,

as chamadas “vereações”, os oficiais discutiam e deliberavam sobre uma série de questões que tocavam a administração da cidade e as demandas da população, entre as quais, a cobrança dos foros àqueles que usavam as terras pertencentes à Câmara. Em São Luís do

final do século XVII e início do século XVIII, o aforamento das chamadas “terras do Concelho” era uma das práticas de ocupação do espaço da cidade que, assim como a distribuição das cartas de “data e sesmaria”, denota o papel da instituição municipal na gestão do patrimônio fundiário.

Na documentação produzida pelas Câmaras coloniais, destacam-se questões como o controle sobre as atividades praticadas na área de jurisdição concelhia, a preocupação com o abastecimento da população e a manutenção dos vários espaços que compõem as cidades, além da relação, por vezes conflituosa, entre as posturas previstas pela administração local e as práticas dos “usuários da cidade”286. Além da construção de

ruas, casas e igrejas, e da manutenção de espaços públicos como prédios administrativos, estradas, caminhos, fontes e praças, a gestão fundiária das povoações também pertenceria ao campo de questões ligadas ao “urbanismo”287.

Ao analisar o desenvolvimento da rede urbana mineira durante o século XVIII, Cláudia Damasceno Fonseca defendeu que, outros aspectos ligados à materialidade das vilas mineiras, como “a gestão dos rossios e dos chãos foreiros”, devem ser considerados “urbanísticos”. Para o contexto setecentista, a autora sugere a compreensão do conceito de “urbanismo” conforme a definição de Bernard Lepetit, que o compreende como um conjunto de medidas de ordem técnica, jurídica e econômica que possibilitam “uma intervenção ou um desenvolvimento autônomo das cidades”288.

Embora o poder local se constituísse como representante do rei dentro dos municípios instalados no Império português, os municípios possuíam certa autonomia para se gestarem. De fato, era a partir da cidade ou vila e, precisamente, dos oficiais à frente da instância político-administrativa local, que várias medidas e intervenções eram realizadas, compreendendo diversas demandas relativas ao espaço público. A questão do acesso à terra dentro do território concelhio seria uma das mais importantes, já que estava diretamente relacionada ao povoamento e à sustentação do “bem comum” no âmbito do município. Deste modo, as formas de distribuição e acesso aos chãos urbanos podem ser

286 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 165. 287 Fonseca ressalta que, para além dos conflitos territoriais analisados por ela no tocante às Minas Gerais

do século XVIII, as questões ligadas à morfologia urbana e à estrutura fundiária das povoações coloniais pertencem à outra escala do fenômeno urbano, ver: FONSECA, Cláudia Damasceno. Urbs e Civitas, op.

cit., p. 90.

288 LEPETIT, Bernard. Pouvoir municipal et urbanisme (1650-1750): soucers et problématique. In: LIVET,

G; VOGLER, B. Pouvoir, ville et sociétéen Europe 1650-1750: actes du Colleque Internacional du CNRS. Paris: Ed. CNRS, 1981, p. 35 Citado por FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei, op. cit., p. 39.

consideradas como intervenções “urbanísticas”, pois, eram medidas que visavam o crescimento e desenvolvimento do espaço urbano.

O que poderia ser compreendido como “terreno urbano”? Em que sentido se distinguiria de um “terreno rural”? Por um lado, convém destacar que não se tratam de expressões coevas. Por outro, as relações estabelecidas pelos indivíduos com os espaços não correspondiam a tais definições que buscam enquadrar o espaço, como fixações que têm o poder de “metamorfosear o agir em legibilidade”289. Em outras palavras, as práticas

dos sujeitos confeririam permeabilidade às supostas barreiras entre um espaço considerado “urbano” e um espaço caracterizado como “rural”, de acordo com parâmetros atuais ou definições usadas na geografia, por exemplo.

Este trabalho não utiliza as expressões “terrenos urbanos”, “chãos urbanos” ou “terra urbana” como conceitos fechados, que distinguiriam geográfica, social, política ou economicamente uma determinada parcela de terra considerada “urbana” em contraponto à outra “rural”. Para simplificar, os terrenos urbanos serão compreendidos como aqueles que estavam sujeitos à administração do poder local, personificada no Concelho ou Senado da Câmara. Identificar a “terra urbana” a partir de um ponto de vista administrativo não deixa de ser uma maneira de “defini-la”, todavia, levar-se-á em conta que, tanto as determinações legais, quanto as práticas referentes ao solo sob o controle camarário não devem ser pensadas como rígidas.

Ao analisar a estrutura fundiária da cidade de São Paulo em meados do século XIX, a historiadora Raquel Glezer encontrou a distinção entre “terra urbana” e “terra rural” na legislação imperial. Conforme a autora, nos regulamentos relativos à Lei de Terras de 1850, encontrar-se-ia como marco referencial para a “terra urbana” a área delimitada pela “Décima Urbana”, que atualmente corresponderia ao perímetro urbano de São Paulo290. A área demarcada pela Décima se sobrepôs ao “termo” e ao “rossio” da

antiga vila, circunscrições territoriais bem mais antigas. Nesse sentido, para indicar o espaço físico correspondente à Décima Urbana, era necessário compreender o que poderia ser considerado “urbano” no mundo colonial, retomando a legislação portuguesa, bem

289 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, op. cit., p. 164.

290 Conforme Glezer, a Décima Urbana foi instituída em 1808, como um tributo cobrado sobre as

propriedades urbanas tendo, posteriormente, se transformado em “Imposto Predial”, além de ter sido identificada, ao longo do tempo, com a área ocupada nos núcleos urbanos. A autora destacou que a terras da Décima Urbana não eram obrigadas ao Registro instituído pela Lei de Terras de 1850, que abrangia as propriedades fundiárias rurais. GLEZER, Raquel. Chão de terra, op. cit., pp. 33-66.

como o funcionamento do sistema administrativo colonial no que competia à questão da terra.

Inicialmente, Glezer partiu da hipótese de que, na prática, não teria existido um tratamento diferenciado à “terra urbana”, quer seja em termos institucionais, consuetudinários ou legais. Entretanto, o exame de fontes históricas coloniais revelaria a existência de diversidades, notadamente na forma de obtenção da terra, enquanto propriedade “rural” (“sesmaria”) e “urbana” (“data de terra” ou “chão de terra”).

A sesmaria era obtida por ato real, ou através do donatário, loco-tenente, governador geral ou capitão-general, por meio da qual era concedido o direito de exploração isenta de foro, “pelo menos até o final do século XVII”, com a exigência de determinados pré-requisitos do requerente relativos à capital e sua situação social. As “datas de terra” ou “chãos de terra”, por sua vez, estavam submetidas à administração camarária. As câmaras municipais detinham um “termo” como seu território de jurisdição, e gozavam do poder de conceder terras aos moradores com ou sem a cobrança do “foro”291.

De acordo com Carmen Alveal, no início da colonização portuguesa, os capitães- donatários foram os primeiros a distribuir sesmarias no território americano, “fossem em áreas onde se iniciam os povoados, fossem em áreas mais remotas, com vistas à agricultura”. Porém, conforme as instâncias de poder local eram estabelecidas, a atribuição dos governadores é limitada a regular o que a autora chama de “sesmarias rurais”, isto é, “aquelas situadas fora dos termos de vilas, na medida em que fossem sendo criadas”292.

Excetuando as terras que ficavam dentro do termo de uma vila ou cidade, as demais continuavam sendo concedidas por meio de governadores ou capitães-generais (concessões que, posteriormente, deveriam ser confirmadas pelo poder régio)293. Tratava-

se de doações impreterivelmente relacionadas à exploração da terra. De modo que, é possível distinguir a sesmaria “clássica” da “data de chão” (ou “data e sesmaria”), por

291 GLEZER, Raquel. Chão de terra, op. cit., pp. 57-58.

292 ALVEAL, Carmen M. Oliveira. Converting land into property in the Portuguese Atlantic World, 16th - 18th century. 2007. Thesis (Doctor of Philosophy) – John Hopkins University, Baltimore, 2007, p. 142.

293 No tocante às áreas ultramarinas, o pedido de uma sesmaria partia do interessado que, para isso,

“encaminhava uma petição ao capitão do donatário, no caso da Madeira e dos Açores, ou ao capitão- donatário e, posteriormente, ao governador e capitão-general da capitania, no caso da América portuguesa e de Angola”. O requerente deveria explicitar os motivos pelos quais pedia as terras, assim como a localização delas. Se a solicitação fosse deferida pela autoridade colonial, após o parecer do provedor, o deferimento era registrado na capitania (ficando explícito o prazo para a efetivação do cultivo) e, posteriormente, deveria ser enviado a Lisboa para o registro nas instâncias metropolitanas. Ibidem, p. 113.

meio dos agentes envolvidos na concessão, das diferentes dimensões dos lotes, mas, também, das justificativas dos pedidos:

As dimensões das concessões eram diversas, como também eram as razões alegadas nos pedidos. Para ‘sesmaria’ a justificativa do pedido incluía a alegação de bens para exploração, braços para o trabalho, animais e instrumento para tal, ou mesmo no fato de já estar explorando a terra. Para a ‘data de terra’ o pedido baseava-se na necessidade, na pobreza, no morar na vila, na troca de serviços com a Câmara, etc. As dimensões delas também eram absolutamente distintas. As ‘sesmarias’ podiam ser de tamanho variado, mas nos primórdios da colonização abrangiam de uma a três léguas, simples ou em quadra, mas os ‘chãos de terra’ eram dados ou cedidos graciosamente em braças294.

A “sesmaria” definiria um lote de terra bem maior, cuja concessão pela Coroa estava diretamente relacionada à capacidade de o requerente explorar a terra doada. Enquanto que as “datas” definiriam terrenos menores, cedidos pelas Câmaras aos moradores que requeressem ou “necessitassem” de chãos.

A distinção ajuda a compreender os limites, no tocante à administração fundiária, entre o campo de atuação das Câmaras e das demais autoridades coloniais, por exemplo. Além disso, sugere que as terras concedidas por meio da instância municipal podem ser consideradas “urbanas”, em tese, devido ao fato de corresponderem a terrenos localizados no espaço de influência do Concelho ou Câmara, a principal instituição administrativa local instaurada nos núcleos coloniais.

Compreende-se, portanto, que o espaço de influência das Câmaras corresponderia à área do entorno do núcleo primordial da cidade ou vila, tratar-se-ia do “termo” que, no geral para a América portuguesa, era de seis léguas em quadra295.

Considerando a área do termo, as câmaras faziam concessões de terra com dimensões relativamente menores do que as sesmarias296.

294 GLEZER, Raquel. Chão de terra, op. cit., p. 58.

295 ALVEAL, Carmen M. Oliveira. Converting land into property in the Portuguese Atlantic World, op. cit., p. 141. A expressão “em quadra” era uma das principais formas usadas pelos portugueses para indicar

uma medida de superfície. Para delimitar a área de uma légua em quadra, por exemplo, deveria ser escolhido um centro geométrico a partir do qual “se percorria a distância de meia légua (a metade do lado do quadrado) em direção a cada um dos pontos cardeais”. Quando esse sistema de medição era realmente praticado, na extremidade de cada légua percorrida costumava-se cravar um marco de pedra ou de madeira. FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei, op. cit., p. 465.

296 Segundo Carmen Alveal, as sesmarias coloniais caracterizavam-se por sua extensa dimensão territorial.

Ainda no século XVII, era corrente que elas medissem em torno de 20 léguas, “uma vez que as limitações foram estabelecidas somente na última década do mesmo século”, restrições que estavam ligadas à capacidade de produção das terras cedidas em sesmarias. ALVEAL, Carmen M. Oliveira. Converting land

A diferenciação entre “sesmarias” e “datas de terra” leva em consideração os atores envolvidos nas duas formas de concessão, as características gerais de ambas, assim como as diferentes justificativas utilizadas pelos requerentes. As datas de terras, porém, também poderiam ser chamadas de “sesmarias”, como será observado no caso de São Luís – embora estivessem submetidas à instância municipal e não aos governadores e capitães-gerais como as terras concedidas fora da área de domínio concelhio.

No que diz respeito à gestão fundiária de São Luís entre os séculos XVII e XVIII, havia diferenças entre os terrenos concedidos por meio do aforamento e aqueles que eram cedidos em “data e sesmaria”. De acordo com Glezer, em geral, as concessões de datas poderiam ser feitas com ou sem a cobrança do foro297. Entretanto, na documentação

produzida pela Câmara de São Luís verifica-se que a obrigação deste pagamento valia apenas para as “terras do Concelho” ou “terras da Câmara”, e não para os lotes referidos como “datas” que eram concedidos pela Câmara em nome do rei. Nas “cartas de data e sesmaria” fica claro que a única obrigação imposta ao requerente era o dízimo, pois, em São Luís, esta concessão encontrava-se isenta de qualquer tributo, como será demonstrado através das cartas registradas no início do século XVIII.

De qualquer forma, os terrenos aforados ou cedidos pelo poder local estavam situados no espaço de influência dos Concelhos. Para além da manutenção dos lugares públicos, o papel da instituição municipal no ordenamento do espaço físico das vilas e cidades também estava ligado à gestão fundiária e, consequentemente, ao processo de povoamento dos núcleos urbanos coloniais.

Espaços vazios e terrenos incultos não condiziam com a ideia de “urbanidade” que, possivelmente, conduziria o esforço de transformar um simples aglomerado em um núcleo relativamente povoado e organizado, mesmo em condições precárias. Em Bluteau, a ideia de “urbanidade” definiria os modos daqueles que vivem em cidade, “em diferença da rusticidade, e grosseria dos que vivem nas Aldeas, e no campo”. Para além do caráter “comportamental”, a própria concepção espacial de “cidade” como uma “multidão de casas, distribuídas em ruas e praças” que são “habitadas de homens que vivem em sociedade”, não condiz com a existência de terrenos desocupados e devolutos298.

297 GLEZER, Raquel. Chão de terra, op. cit., p. 58.

298A palavra “urbanidade” é derivada do termo em latim urbs que, por sua vez, significa cidade e urbanidade. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino. Lisboa Occidental: Patriarcal Officina

Conceitualmente falando, tanto a ideia de “urbanidade” como a própria noção de “cidade” se relacionariam a um espaço ocupado.

A tarefa de organizar a distribuição de terras na cidade também estaria inscrita nos valores de “bem comum” do “povo” e da “República”, geralmente evocados em todas as deliberações por parte do Senado da Câmara de São Luís. Isto porque, em última instância, o gerenciamento fundiário deveria contribuir para a diminuição de chãos devolutos e cheios de matos na cidade e, consequentemente, de indivíduos errantes, desprovidos de um lote de terra para construir casas e estabelecer cultivos de subsistência. Mesmo considerando-se a mobilidade espacial, característica da sociedade colonial de um modo geral, havia a preocupação em fixar a população na medida do possível e, no que diz respeito ao meio urbano, promover o crescimento e o desenvolvimento da cidade.

A questão do acesso à terra é uma dimensão importante da espacialidade das relações sociais em São Luís, que permite observar as determinações legais, as práticas e as tensões que permearam a ocupação fundiária da cidade. Por um lado, o “espaço urbano” colonial será compreendido como a área de influência do Senado da Câmara, por outro, o território da cidade incorporava terrenos destinados às roças e lavouras dos moradores. Antes de analisar as formas de concessão e ocupação da terra praticadas em São Luís, é necessário compreender minimamente qual era o espaço que estava sob a influência do poder local.