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2 2 O rossio, a légua da Câmara e as terras do Concelho

O patrimônio fundiário das vilas e cidades, criadas pelos portugueses ao longo do período moderno, pôde assumir variadas denominações, notadamente, nos vários contextos espaciais da América portuguesa. Estes “chãos públicos” foram chamados de “rossio”, “bens do Concelho”, “sesmaria da Câmara”, entre outros. Provavelmente, as expressões “terras do Concelho” ou “terras da câmara”, correntes na documentação referente aos aforamentos em São Luís, tratar-se-iam de designações para a parcela de terra que constituía parte do patrimônio municipal. Em outras regiões, inclusive, as

mesmas expressões podiam ser usadas indistintamente “para designar uma parte ou a totalidade dos terrenos de utilidade pública”299.

De acordo com o dicionário de Raphael Bluteau, o rocio era “uma praça ou espécie de prado na Vila ou Cidade” ou “um lugar descoberto e patente às influências e orvalhos do céu”300. Portanto, o termo “rossio” ou “rocio” poderia definir outro tipo de

espaço, pois assim eram chamadas as praças públicas de várias cidades do império português. O “rossio” está ligado à ideia de espaços abertos que, a priori, poderiam estar localizados “na periferia imediata ou na entrada das povoações, e que acabaram sendo englobados no espaço urbano, que se estendeu progressivamente”301.

Essa definição corrobora a associação da ideia do rossio com a área situada nas imediações do núcleo da vila ou cidade como, por exemplo, a parcela de terra destinada a ser o patrimônio da Câmara de São Luís que estendia “ao longo da cidade” 302. Ao

discutir a formação da rede urbana no Brasil colonial, Nestor Goulart Reis Filho definiu o rossio como a área “demarcada junto aos núcleos urbanos, utilizada para atender ao crescimento das formações urbanas, para pastagens de animais de uso dos moradores e para o recolhimento de lenha por parte das pessoas de condições mais humildes”303.

Conforme o autor, portanto, o rossio atendia a uma série de demandas coletivas. De modo semelhante, ao analisar o secular processo de laicização sofrido pelo espaço de uso comum em São Paulo, Murilo Marx compreendeu o rossio como:

a concessão de uma gleba considerável, de uma sesmaria para a entidade que surgia [no caso, o município] gleba que, à diferença das sesmarias, entretanto, seria para eventual rendimento da municipalidade e gozo comum, afeita a outras exigências. Daí, por ser de uso coletivo, o nome logradouro público que frequentemente se dava ao rossio304.

Embora a demarcação pudesse não ser clara, compreende-se que se tratava de um espaço utilizado e ocupado pela população, no entorno do núcleo primordial de uma

299 Ao analisar a realidade das Minas, Cláudia Damasceno Fonseca destacou a variabilidade de designações

usadas para o terreno pertencente às câmaras. FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei,

op. cit., pp. 460-461.

300 No dicionário a definição encontra-se na palavra grafada com “c” (em “rossio” consta apenas “vide

rocio”). BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez & Latino, op. cit., vol. 7, p. 353.

301 FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei, op. cit., p. 461.

302 SILVEIRA, Simão Estácio da. Relação Summaria das Cousas do Maranhão. Dirigida aos pobres deste

Reino de Portugal. Revista Trimestral do Instituto do Ceará, 1905 [1624], p. 136.

303 REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana no Brasil (1500/1720). São

Paulo: Livraria Pioneira Editora da Universidade de São Paulo, 1968, p. 112.

povoação, o qual, todavia, pertencia à municipalidade. Como destacou Marx, a existência de um terreno de uso comunal estaria na origem do rossio.

Quando uma vila era fundada, além da escolha do local mais apropriado para erigir Igreja, Casa de Câmara e Cadeia, uma das principais medidas tomadas no sentido de organizá-la espacialmente era a demarcação do seu rossio305. Conforme Cláudia

Fonseca, a constituição dos rossios estava diretamente relacionada à formação do patrimônio fundiário municipal, isto é, o patrimônio da câmara ou “bens do Concelho”, proveniente de uma antiga tradição portuguesa que remonta à reconquista pelos cristãos dos territórios sob a ocupação muçulmana na Península Ibérica. Um dos privilégios dos

concelhos, circunscrições administrativas e territoriais autônomas que proliferaram a

partir do século XII, era o direito de “possuir uma sesmaria, um patrimônio fundiário administrado pela câmara” 306. Durante o período moderno, esta parcela de terra era

concedida pelo rei de Portugal, ou por um senhor laico ou eclesiástico.

Portanto, dentro do modelo português de organização municipal, o “rossio”, “sesmaria da câmara” ou “terras do Concelho”, compreendia as terras doadas às câmaras. Uma parte deste terreno poderia ser repartida em lotes destinados aos contratos de aforamento estabelecidos junto à instituição municipal, pois, às câmaras era outorgado este direito conforme as leis do reino. A câmara de Vila Rica, por exemplo, obteve as terras devolutas do entorno da povoação no ano de 1711, quando foi criada a vila, já que estava sem rossio ou terra “para criação de gados, como para arrendar e aforar aos moradores, para assim o dito senado ter alguma renda, para com ela poder acudir e reparar as obras do concelho, a que as câmaras são obrigadas”307.

O rossio era um atributo espacial próprio do modelo português de administração local, que foi transplantado para o mundo colonial. No que diz respeito às vilas fundadas na América portuguesa, a área correspondente ao patrimônio fundiário dos concelhos poderia variar de tamanho, assim como o meio usado para delimitá-la.

305 ENES, Thiago. De como administrar cidades e governar impérios: almotaçaria portuguesa, os mineiros e o poder (1745-1808). 2010. 302 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Instituto de Ciências

Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010, pp. 177-178.

306 No contexto da reconquista portuguesa, “o repovoamento do Reino e a consolidação das suas fronteiras

se devem, em grande parte, ao desenvolvimento dos poderes locais e à multiplicação dos concelhos a partir do século XII”. FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei, op. cit., p. 460.

307 A Câmara de Vila Rica recebeu “uma légua em quadra” como seu patrimônio fundiário. Conforme

destacou Fonseca, o governador Brás Baltazar foi autorizado pela coroa a conceder terras à todas as vilas já erigidas nas Minas, a fim de que as câmaras pudessem “suprir as despesas que atualmente costumam fazer os concelhos”. Ibidem, p. 464.

Enquanto a câmara de Salvador recebeu no século XVI três léguas ao longo do mar, o concelho do Rio de Janeiro recebeu no ano de 1565 apenas uma légua e meia de testada, embora, posteriormente, tenha aumentado a área do seu rossio para “duas léguas em quadra”. Precariamente delimitada, a área originalmente concedida como rossio da câmara de São Paulo em 1598, mediria cerca de “cinco tiros de besta ao redor da vila”. Os rossios das vilas mineiras, por sua vez, não possuíam uniformidade, podendo variar de “meia légua em quadra” a “duas léguas em quadra”. Já na região norte, a carta de doação e sesmaria passada pelo governador Francisco Coelho de Carvalho à Câmara de Belém do Grão-Pará, atendia aos pedidos dos vereadores concedendo-lhes “uma légua de terra ao redor desta cidade” em 1627308.

O Senado da Câmara de São Luís, por sua vez, recebeu do general Alexandre de Moura a doação de uma légua de terra como seu patrimônio no ano de 1615, quando iniciou efetivamente a ocupação portuguesa na Ilha309. Em 1624, o primeiro presidente

do Concelho, Simão Estácio da Silveira, destacou que a Câmara de São Luís lucrava “cem mil réis de renda de foros da légua de terra que se tomou ao longo da cidade” 310. Embora

seja difícil delimitá-la com exatidão, ela estendia-se “ao longo” da povoação, possivelmente, partindo das imediações do forte ou em algum ponto definido como “centro” da vila. Segundo César Marques, o terreno separava “da referida doação a beira- mar nos varadouros e portos desta cidade e de fronte na largura de quinze braças de preamar, onde chega a maré para conserto dos navios, que aqui vierem”311. Desta

descrição, pode-se inferir que a demarcação do terreno concedido à câmara distava cerca de quinze braças da preamar, isto é, do nível máximo da maré ou maré alta.

O terreno doado às municipalidades, também chamado de “rossio” e “légua do Concelho”, costumava ser demarcado a partir do centro geométrico da vila, no pelourinho ou na casa da câmara, “no coração da vila” 312. Embora seja difícil confirmar o local exato

308 Ver, respectivamente: RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador:

Câmara Municipal, 1996. SANTOS, Paulo Ferreira. Formação de Cidades no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Iphan, 2015; GLEZER, Raquel. Chão de terra, op. cit.; FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei, op. cit.; CHAMBOULEYRON, Rafael; FISCHER, Luly. “Uma légua de terra ao redor desta cidade”. Belém do Pará, seus chãos de terra e o patrimônio municipal. Camões.

Revista de Letras e Culturas Lusófonas, Lisboa, Portugal, vol. 25 (2016), pp. 27-32.

309 VIVEIROS, Jerônimo de. História do Comércio do Maranhão (1612-1895). São Luís: Associação

Comercial do Maranhão, 1954, p. 11. Uma légua equivaleria a 4, 828 Km, e a 3.000 braças.

310 SILVEIRA, Simão Estácio da. Relação Summaria das Cousas do Maranhão, op. cit., p. 136.

311 MARQUES, César Augusto. Diccionário histórico-geographico da província do Maranhão. Maranhão:

Typ. do Frias, 1870, p. 106.

da demarcação da légua da Câmara de São Luís, é provável que a doação se estendia a partir da região do forte, isto é, a partir do núcleo central da povoação.

Segundo o historiador Ananias Martins, a referida “doação ao município de seis quilômetros de terras, se estendia no sentido Oeste-Leste, do forte ao início do atual bairro do Anil, localização do Rio Cutim”313. Além de ressaltar a suposta dimensão do terreno,

a descrição confirmaria que a légua foi delimitada próximo à área fortificada da cidade (a oeste), dilatando-se em direção à região do rio Cutim (a leste), um dos mais importantes afluentes do rio Anil que, assim como o rio Bacanga, costeia a Ilha de São Luís. Na documentação camarária há registros sobre o concerto do “caminho do Cutim” ou “caminho e estrada do Cuty” indicando, possivelmente, uma área próxima às terras concelhias314.

É possível que as terras correspondentes aos patrimônios concelhios, inicialmente delimitadas e, posteriormente, confirmadas por carta régia, pudessem aumentar ao longo do tempo. As câmaras poderiam estender seu patrimônio ao pleitearem mais léguas junto à Coroa, possibilitando suprir a demanda por terrenos e, principalmente, aumentar as rendas municipais com os aforamentos. Esta área poderia se dilatar, todavia, ela não deve ser confundida com outro elemento inerente à organização espacial concelhia que, de acordo com o modelo português, era o termo.