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3 2 As datas ou “chãos de terra”

A dinâmica da ocupação fundiária em São Luís deve ser compreendida como parte do processo de consolidação do território e de configuração da cidade, levando-se em conta a relação da câmara com a política de conquista e defesa do Maranhão. Sob a responsabilidade da municipalidade, a distribuição de terras na cidade também estaria inscrita numa política mais ampla que visava organizar o território do Maranhão, incentivar o povoamento da terra e consolidar a sua posse. O poder local teve um papel fundamental nesse sentido. Como destacou Helidacy Corrêa, a relação da Câmara de São Luís com a política de conquista e defesa da região data da sua efetivação em 1619, “a

364 A partir do que observa Cláudia Damasceno Fonseca para as Minas setecentistas, este território mais

amplo corresponderia a toda área sob a jurisdição camarária. FONSECA, Cláudia Damasceno. Urbs e Civitas, op. cit.

365 Como defendeu Certeau, o espaço é construído e significado por meio das práticas, as quais se exercem

sobre o lugar modificando-o. Ele é vivenciado e consumido pelas ações e movimentos dos sujeitos, em suma, “o espaço é um lugar praticado”. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, op. cit., p. 184.

partir do momento em que os camaristas recorreram ao título de conquistadores e não de

colonos para mostrar a sua vinculação com o monarca e com a terra”366.

A gestão camarária do acesso à terra dentro da cidade ia além dos terrenos aforados. Os camaristas também eram responsáveis por conceder chãos em “data e sesmaria”. Antonia da Mota e José Dervil Mantovani analisaram “cartas de datas” registradas pela Câmara de São Luís entre 1722 e 1824, correspondentes aos lotes “de terrenos urbanos distribuídos no núcleo inicial da cidade, hoje conhecido como centro histórico”. Os autores destacaram o lugar ocupado pela municipalidade no ordenamento da estrutura fundiária urbana, dada à importância da distribuição de terrenos como política que visava à fixação dos moradores367.

A partir da légua doada por Alexandre de Moura à Câmara, foi iniciada a organização do povoamento por meio da distribuição de terras em São Luís que, segundo Mota e Mantovani, ocorreu “conforme o rigor previsto na legislação das sesmarias”368.

Conforme já salientado, entretanto, as terras submetidas ao sistema sesmarial encontravam-se, geralmente, sob a jurisdição de governadores, capitães-mores ou ouvidores, e ficavam fora do termo das vilas e cidades. Os chãos situados dentro do termo de São Luís eram cedidos pela câmara e, portanto, não eram “sesmarias” propriamente ditas, embora fossem designados como data e sesmaria.

Na cidade de São Luís, as datas eram solicitadas e concedidas em “braças” (como eram estipuladas as medidas lineares pela legislação portuguesa), não sendo encontrada, entre as cartas analisadas, a expressão “braças em quadra”, também usada no período colonial. O terreno medido em braças corresponderia a “uma superfície que, embora reduzida quando comparada às que eram concedidas através do sistema sesmarial, permitia o cultivo de hortas e pequenas roças de subsistência”369.

Analisando a estrutura das “cartas de datas e sesmarias” registradas pelos camaristas de São Luís, nota-se que elas apresentavam algumas características semelhantes às disposições previstas pelo sistema de concessão das sesmarias. Por exemplo, as “datas” eram isentas de tributos (com exceção do dízimo) e poderiam ser

366 CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. Para o aumento da conquista e bom governo dos moradores, op. cit., p. 199.

367 Entre as várias atribuições das câmaras, as medidas que visavam ordenar o povoamento eram as mais

importantes, pois, “a fixação de povoadores constitui a providência prática mais imperiosa”, o que explica “a importância da distribuição de terras para a consolidação da posse do território para a metrópole”. MOTA, Antônia da Silva; MANTOVANI, José Dervil. São Luís do Maranhão no século XVIII, op. cit., pp. 12-13.

368 Ibidem, p. 15.

aproveitadas pelos herdeiros ascendentes ou descendentes. Além disso, o indivíduo poderia perder a posse sobre o terreno se não o cultivasse, beneficiasse e o mantivesse limpo, podendo ser cedido à outra pessoa370.

Tanto os terrenos designados como “terras do concelho” como os lotes concedidos em “data e sesmaria” pertenciam ao território da cidade – o espaço em que a municipalidade possuía “jurisdição legal, jurídica, militar, econômica e administrativa, com o poder de conceder terras para moradia e exploração, quer gratuitamente, quer através do ‘foro’, que era parte de seus rendimentos”371. Na documentação da Câmara de

São Luís, portanto, são registradas duas formas distintas de concessão de terras administradas pelos camaristas: o aforamento dos terrenos pertencentes ao patrimônio concelhio, e as cartas de “data e sesmaria” que, por sua vez, conferiam a posse ao requerente, sem a obrigação do pagamento de “pensão ou tributo a pessoa alguma, mais que o dízimo a Deus”372.

As petições e cartas de datas estão nos Livros de Registro disponíveis para pesquisa no site do Arquivo Público do Estado do Maranhão a partir do ano de 1710. A leitura da documentação permite observar que os chãos pedidos em “data e sesmaria” não são referidos como “terras do concelho” ou “terras da Câmara”, como os terrenos que geravam rendas à câmara. Infere-se que a relação do poder camarário com os lotes cedidos nas cartas de data era distinta da relação mantida com as terras submetidas aos aforamentos que, por sua vez, pertenciam à própria instituição municipal.

Situadas ou não na légua da câmara (seu patrimônio fundiário instituído ainda no início do século XVII) as “braças” distribuídas em data e sesmaria estavam dentro do espaço de jurisdição dos oficiais camarários. À medida que a cidade crescia e a demanda por terrenos devolutos aumentava, a área em que a câmara distribuía terras poderia se estender paulatinamente para além da sua sesmaria inicial. De qualquer modo, em São Luís, a concessão de datas de terra não gerava recursos à municipalidade.

370 Desde a Lei das Sesmarias (1375) de D. Fernando, o proprietário era compelido a aproveitar e lavrar as

suas terras dentro de um período, geralmente, estipulado em um ano. Caso contrário, elas poderiam ser revertidas à instituição que as concedeu. De acordo com Ruy Cirne Lima, as novas legislações promulgadas com D. Manuel e com D. Filipe II (Ordenações Manuelinas e Ordenações Filipinas) não provocaram grandes modificações na instituição das sesmarias que, em ambas, aparecem definidas como: “dadas de terras, casaes, ou pardieiros, que foram, ou são de alguns Senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são”. LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e

terras devolutas. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1954, pp. 13-21. 371 GLEZER, R. Chão de terra, op. cit., p. 58.

II. 4. A ocupação do espaço através das “cartas de data e sesmaria”

Conforme os Livros de Registro da Câmara de São Luís, a estrutura das cartas é composta inicialmente pela petição, isto é, pela solicitação do requerente, supostamente narrada pelo solicitante e registrada pelo escrivão. Em seguida, procedia-se ao deferimento acompanhado do termo de concessão dos oficiais camarários, o qual legitimava a aprovação do pedido e a posse por parte do requerente. Geralmente, era assim que acontecia, já que as solicitações dos moradores costumavam ser atendidas pelos camaristas. Comumente, nos “enunciados” dos registros já estava explícito o deferimento do pedido. Por exemplo, “Registro de uma petição e carta de data de dois chãos que se deram a Luís Lansarote Coelho”373.

As narrativas destes documentos seguiam certo padrão, contendo o nome do pleiteante, a sua ocupação e condição social, as justificativas por meio das quais solicitava o determinado chão, além da localização e das dimensões do terreno:

“Diz Manoel Teixeira oficial de carpinteiro desta cidade que ele comprou umas casas citas em seus chãos, e quintais, fronteiras as do capitão João Telles Vidigal. E em uma das ilhargas de sua casa da banda da [Sse] ficam duas braças de chão de sobras dos mais [arcos] que estão por beneficiar, e o suplicante é pobre, casado e com muitos filhos, e necessita das ditas duas braças de terra visto não estarem dadas para si e seus herdeiros para as cultivar, e beneficiar por estarem devolutos/Pede a Vossas Mercês senhores do Senado lhe façam mercê dar de data e sesmaria as ditas duas braças de chão de sobras que ficam junto as casas do suplicante como relata citados os [arcos] (...)”374.

Neste requerimento fica claro que o solicitante já ocupava chãos na cidade (onde estavam as casas que havia comprado), embora isto não o impossibilitasse de pleitear mais algumas braças. Duas braças de chão “de sobras” em uma das “ilhargas de sua casa”, isto é, em uma das laterais ou flancos dela, as quais se encontravam desocupadas e sem benfeitorias, o que por si só já justificava seu pedido, ainda mais por serem contíguas ao terreno de sua casa375. O oficial de carpinteiro teria alegado ser um homem pobre, casado

e que possuía muitos filhos. Recorrentemente, a condição social surgia como umas das principais justificativas usadas pelos pleiteantes, muitas vezes, reforçando um argumento essencial – a situação “devoluta” do terreno.

373 Livro de Registro da Câmara de São Luís de 1710 a 1715, 2 de julho de 1710, fl. 12-12v. 374 Livro de Registro da Câmara de São Luís de 1710 a 1715, 5 de junho de 1710, fl. 4v. 375 Uma braça é o equivalente a 1, 8288 metros.

Era natural que um chão sem uso fosse cedido a quem solicitasse, contanto que o requerente se comprometesse em mantê-lo cultivado, limpo e beneficiado. Manoel Teixeira pedia para si e seus herdeiros, com a intenção de cultivá-los e construir casa, o que, do ponto de vista da instância municipal, eram condições fundamentais para o aproveitamento da “terra urbana” sob sua gestão.

Em junho de 1710 lhe foi concedida mercê “das ditas duas braças de chãos para que neles possa fazer casas, os quais possuirá, ele dito Manoel Teixeira, e gozará assim ele como seus herdeiros ascendentes e descendentes de hoje para todo o sempre”376. Fica

claro, portanto, que a “carta de data e sesmaria” constituía-se em um tipo de concessão que conferia o direito de posse ao solicitante. Esta posse detinha um caráter hereditário, embora pudesse ser revertida se o indivíduo não cumprisse os requisitos estipulados pela instância municipal377.

As petições e cartas de data e sesmaria possibilitam inferir sobre a direção do processo de ocupação fundiária em São Luís no início do setecentos, assim como verificar o tamanho dos lotes, as justificativas dos pleiteantes e demais aspectos relativos à posse da terra. Não constam, entretanto, disposições que permitissem verificar, quem sabe, que a distribuição de datas procurava “conformar o espaço urbano a um modelo previamente estabelecido”378. A documentação analisada não apresenta a adequação da distribuição de

datas ao traçado urbano como, por exemplo, que os lotes concedidos e a construção das casas deveriam obedecer a certos preceitos em benefício da forma das quadras ou disposição das ruas ou caminhos da cidade.

A despeito das concessões não expressarem preocupações de ordem morfológica, uma política de ocupação do solo pautada na concessão de datas de terra

376 Livro de Registro da Câmara de São Luís de 1710 a 1715, 5 de junho de 1710, fl. 5.

377 Para Fernando V. Aguiar Ribeiro, o conceito de concessão deve ser entendido como “a capacidade da

Câmara de oferecer terras em sua propriedade a seus moradores”. O autor lembrou que, enquanto concessão foi definida por Bluteau como “permissão, privilégio, doação”, doação foi designada como "acto publico,

em virtude do qual trespassa o donatário a quem quer a propriedade, ou o uso fruto dos seus bens, ou de uma parte deles”. Na perspectiva de Ribeiro, é necessário distinguir os dois, pois, esta última implicaria na

relação entre doador e donatário, como na doação das capitanias hereditárias, revertida por meio da compra. O mesmo não poderia ser dito no tocante às terras urbanas, que não incluiriam tais privilégios, já que aquele que as recebia poderia usar por um determinado tempo, sob o risco de serem revertidas à instituição que as distribuiu. O conceito de “doação”, por estar imbricado à noção de “benefício”, não seria apropriado ao tratamento da questão da terra urbana, mas sim o de “concessão”, “por reforçar a concepção de cessão de terras visando o povoamento e a produção agrícola”. RIBEIRO, Fernando V. Aguiar. Poder local e

patrimonialismo, op. cit., pp.6-7.

378 PEREIRA, Magnus R. de Mello. A forma e o podre: duas agendas da cidade de origem portuguesa nas idades Medieval e Moderna. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,

“não significa necessariamente uma ocupação aleatória do espaço urbano”379. Sob a

responsabilidade do poder municipal, a distribuição de datas buscava regular o acesso à terra dentro da cidade ou vila, organizando o povoamento e possibilitando o crescimento do espaço ocupado, construído e cultivado, ao passo em que diminuía a existência de terrenos devolutos, cheios de matos e sem benfeitorias. Em tese, o sistema de concessão de datas tinha a função de ordenar e legitimar o assentamento dos moradores nos “chãos” e “sobras” onde ergueriam suas casas, onde se ocupariam de seus ofícios ou manteriam pequenas hortas e roças de subsistência em seus quintais, mesmo que, frequentemente, a ocupação acontecesse antes da concessão dos títulos das terras, como será discutido.

Isto não quer dizer que, na medida do possível e do interesse do poder local, preocupações com as disposições das ruas, quadras, testadas e quintais vizinhos não existissem e não fossem eventualmente observadas em vistorias feitas pelos funcionários da Câmara, por exemplo, embora os deferimentos das solicitações de datas não privilegiem este aspecto.