• Nenhum resultado encontrado

6. Concelho de Castelo de Vide

06.26. Chafurdão de Santa Marinha

CMP 335 / N 39º 24’ 35.5’’ / 7º 29’ 50.5’’ / Terreno / Casal (?)

De acordo com Conceição Rodrigues, seria um ponto de povoamento relacionado com a necrópole de Santa Marinha. Foi encontrada uma epígrafe funerária de um cluniense do século I d.C. A vegetação persistente não permitiu confirmar a presença no local.

Referência: Mendes de Almeida & Ferreira, 1967: 68 ‑69; Rodrigues, 1975: 177 ‑178.

Comentários gerais

Olhando para o quadro geral de Castelo de Vide uma primeira impressão pode ser esta: vindos do Tejo, entramos no domínio das grandes villae. Todavia, será assim?

Não querendo levar as leituras deterministas ao extremo, parece ‑me no entanto interessante regressar ao quadro geográfico. À medida que vamos progredindo de norte para sul, vamos deixando os relevos do Tejo e entrando progressivamente em dois espaços: a Serra de São Mamede, mas também os ricos solos agrícolas das freguesias de S. João Baptista e de Santa Maria da Devesa. E é precisamente aqui, nestes relevos menos pronunciados, que encontramos sítios como Tapada Grande, Mascarro, Vale da Bexiga, Tapada da Pedreira ou Vale da Manceba, que em tudo parecem villae. Saímos de uma paisagem mais agreste, com lugares que podemos interpretar como vicus, para as grandes estruturas fundiárias que associamos à paisagem do Alentejo romano.

No entanto, uma perspectiva crítica torna menos linear esta leitura. E analisar este ponto, por onde se iniciou a abordagem genérica, é estimulante, pois na realidade o feixe central do debate aplica ‑se, em sentido mais amplo, aos fenómenos interpretativos e conceptuais com que o estudo da paisagem romana usualmente lida, ou à maneira como todos os sítios de alguma dimensão são encaixados na categoria villa. Olhando com mais atenção, nos sítios referidos nada nos indica com particular precisão, ou grau de certeza, que efectivamente estamos perante villae. O indicador mais considerado está ausente: os pavimentos em mosaico, o opus tesselatum. A referência à tessela de quartzo leitoso em Vale da Manceba é extremamente duvidosa, pelas características petrológicas e de fractura desse material271. Apenas se regista em Mosteiros, um sítio que, como já

foi amplamente referido, mais do que uma villa poderá ter sido outra coisa e que, mais do que marcar a paisagem fundiária, marca certamente a geografia sagrada desta área tão rica, aliás, de conteúdos. Portanto, e regressando aos mosaicos, estão ausentes. Pisos em opus signinum (tanques?), em tijoleiras ou lajeados de granito são conhecidos, mas não em mosaico. Pinturas murais também ausentes. Cerâmica de importação, tais como paredes finas, ânforas, terra sigillata (com a excepção de Mosteiros) não se mencionam. Indicadores de monumentalidade são unicamente as colunas em granito (Tapada Grande, também com silhares, Tapada da Pedreira e Mascarro), mas como sabemos as colunas não indicam necessariamente a existência de uma villa. Indicam, sim, duas coisas: a verticalização de planos e/ou a existência de pórticos, geralmente associados a um peristilo doméstico, mas que podem na realidade pertencer a mais tipos de estruturas: fachada de um templo, galerias de um macellum, um edifício de vicus ou mansio, etc. Note ‑se que também existem indicadores de monumentalidade no povoado da Barragem da Póvoa (incluindo frisos decorativos) e esse sítio certamente não terá sido uma villa. Então esta posição poderá suscitar perplexidade, porque nas fichas individuais estes locais foram sendo constantemente apresentados como

villae. E, de facto, poderão tê ‑lo sido, mas o que agora pretendo defender é uma

postura mais relativista: na verdade, todos eles poderão ter sido villae, mas nada confirma que foram efectivamente villae, portanto, todos e cada um deles poderão

ter sido outro tipo de sítios. Esta situação alerta ‑nos para o modo como os lugares

são apressadamente classificados como aquilo que os investigadores pretendem que eles tenham sido, ou de acordo com os estereótipos conceptuais que têm em mente, mas a posição actual exige mais prudência272. Em resumo, em nenhum

deles se documentam os indicadores de gosto urbano que caracteriza o conceito‑ ‑villa. É verdade que os sítios mencionados já se enquadram em características

271 O conceito de “limada pelo uso numa das faces” é duvidoso face ao talhe que uma

tessela implicava.

272 Seis dos sítios do concelho – Mosteiros, Mascarro, Vale da Bexiga, Tapada da Pedreira, Vale da Manceba e Meada (designação de Tapada Grande) ‑ constam do inventário temático de J. ‑G. Gorges (1979).

paisagísticas e pedológicas diferentes: na realidade, em todos sente ‑se um ar de

família que tem a ver com a inserção nos cânones vitruvianos para a construção de

propriedades individuais e fundiárias em meio rural. Genericamente protegidos dos ventos a norte (à excepção de Tapada Grande), inseridos a meia ‑encosta, dominando férteis várzeas com recursos hídricos reforçados por fontes e poços, desfrutando de ampla visibilidade (por vezes de panorâmica amplíssima, apesar da implantação discreta), discernimos em todos eles o padrão característico deste tipo de lugares.

Independentemente do que poderão ter sido, o que se destaca nas evidências materiais é a fortíssima vinculação à exploração agro ‑pecuária do meio envolvente. Em alguns casos, presume ‑se a intensidade nessa dinâmica: o enorme peso de lagar da Tapada Grande é complementado com os vários pesos e mós depositados na actual casa agrícola de Monte do Doutor Eugénio e de Meada. O conjunto reforça‑ ‑se com a imponente barragem para fins de regadio e de intensiva prática agrícola, pois a sua implantação a montante do sítio impede que seja considerada como um espelho de água com fins ornamentais ou lúdicos. Nos diversos sítios registam ‑se pesos de lagar (Poço de Marvão, Tapada da Ameixoeira, Vale da Manceba), pesos de tear (Monte da Murela, Tapada da Pedreira e Tapada da Ribeira do Carvalho) e escórias (Vale da Manceba e Mascarro), além do forno e oficina de Mosteiros. Curiosamente, Vale da Bexiga está ausente destes indicadores o que, tendo em conta a precária intervenção no local, não é significativo. Também de notar que nos sítios onde temos pesos de lagar não há notícia de pesos de tear, sendo aliás que estes últimos parecem corresponder a locais arqueológicos de menor dimensão e, digamos, exuberância de conteúdos, configurando pequenos casais. E merece menção o caso de Mascarro, onde a intervenção possivelmente incidiu sobre uma das poucas pars rusticae de que temos conhecimento no Alto Alentejo, embora os dados não sejam claros pela interrupção de um projecto promissor.

Este panorama é exclusivo da metade sul do concelho, quando os relevos se aplanam e a paisagem se torna mais suave. Na metade norte, nos domínios de Póvoa e Meadas, o registo torna ‑se mais fragmentado e os sítios ainda mais difíceis de enquadrar conceptualmente. Os primeiros locais da listagem – Chão Salgado, Casão do Leandro, Casão do Inferno, Casão da Machouqueira, além de Poço de Marvão e Fonte da Beldroega – são desconcertantes: em meio de uma paisagem quase desértica temos volumosos materiais de construção empregues em casões agrícolas273 hoje semi ‑abandonados. Estes quatro sítios encontram‑

‑se hoje no meio de uma paisagem completamente despovoada e em grande parte de muito difícil acesso. Trata ‑se do terraço sobranceiro ao rio Sever, uma paisagem escalvada e desértica, muito ampla, de planalto cortado por pequenas

273 Porque de facto são apenas estruturas de apoio às actividades humanas desenvolvidas nesta paisagem sem que haja habitação permanente, não se tratando por isso de montes. Reforço este ponto também para indicar o isolamento deste território.

linhas de água que correm em meio aos sulcos do xisto. Zona de grande produção cerealífera até à década de oitenta do passado século, a prática agrícola foi rasgando a fina espessura de terra arável até ferir a rocha de base, criando o ar de paisagem lunar que hoje se contempla. E todavia, nesta paisagem estéril, encontramos nas construções solitárias e abandonadas, colunas e silhares cuja romanidade é indiscutível. Não se vislumbra qualquer ponto de proveniência; pelo seu porte e quantidade, descarto a hipótese de terem sido para aqui trazidos de longa distância, sobretudo se pensarmos que todas as construções onde os encontramos são irrelevantes casões agrícolas que não justificariam tal esforço construtivo. É possível que esteja nestas paragens uma villa de grande porte ainda por localizar. Um santuário, alcandorado sobre o rio, também é hipótese a considerar. Sobre este espaço, portanto, não há possibilidade de se tecerem grandes considerações. Digamos que há uma relação inversamente proporcional entre a invisibilidade dos presumíveis locais de proveniência e a magnitude dos blocos pétreos. Como é natural, depreende ‑se a necessidade de se encarar esta margem do Sever como uma extensa área (uma língua entre o rio e a ribeira de S. João) prioritária para a realização de prospecções de malha fina de modo a captar locais ainda por identificar.

Temos ainda um caso específico. Trata ‑se da estrutura que conceptualmente pode ser considerada como um vicus na Barragem da Póvoa. Próximo da necrópole de Boa Morte, e rodeado de mais tardias sepulturas escavadas na rocha, apresenta um conjunto de características que o aproximam – até pela implantação junto a um actual regolfo de albufeira – do caso da barragem do Caia (Arronches). Trata ‑se de um modelo de povoamento disperso e polinucleado que raras vezes tem sido identificado no território alentejano. São vários os conteúdos de relevo, desde a referência a espaços de cariz produtivo (um lagar, embora não fique claro se é atribuído à época romana) à necessidade de conhecermos melhor as arquitecturas domésticas e a compartimentação interior destas pequenas habitações tão distante do modelo ‑villa. Permita ‑se‑ ‑me no entanto destacar a estrutura interpretada como um podium de templo sobranceiro ao encaixe de duas linhas de água. Poderia tratar ‑se de um ponto organizador do próprio povoado, um referente agregador da comunidade, mais um elemento constituinte desta geografia sagrada que na área Norte do Alto Alentejo apresenta tantos testemunhos. Neste campo, o concelho é terreno fértil para o conhecimento dos cultos e crenças religiosas e das suas estruturas enquadradoras. À semelhança do vizinho espaço de Nisa encontramos uma divindade indígena, Andaiecus, com duas especificidades: a menção a estruturas (ou seja, uma correspondência arqueológica) e a inferência sobre a formalização de um culto de carácter oracular. Ora, tal implicaria uma estrutura arqueológica de recepção e albergue dos cultuantes, ou seja, uma complexidade nos espaços que leva a que uma futura intervenção se possa revestir de grande interesse para a investigação. E é precisamente em complexidade estrutural que o sítio

de Mosteiros apresenta uma significativa valência. A profusão de espaços visíveis ou apenas perceptíveis não facilita a análise, o que é um pouco paradoxal, pois geralmente ocorre o processo inverso. A verdade é que muitas das estruturas são, digamos, de sinal contraditório, pois combinam interpretações residenciais, lúdicas, produtivas e sagradas. Todavia, independentemente deste aspecto e de um outro que reside nas dúvidas que ainda se poderão levantar sobre a proveniência da ara de

P. Carminius Macer (que a meu ver estão esclarecidas, mas ainda não definitivamente esclarecidas), penso que a dimensão simbólica e/ou sagrada do local (entendendo

esta diferença no facto de o sítio ser só um santuário ou também um santuário) é indubitável. Para além da monumentalidade das estruturas do topo há um padrão de implantação em altura que confere uma majestosa abrangência visual, que do ponto de vista simbólico é fortíssima. Mas a minha impressão não se funda apenas no ar de lugar, antes em dados concretos: a estrutura do topo apresenta um largo espelho de água rectangular (com uma meia ‑cana em relevo) que emoldura um

podium em alicerce de alvenaria pétrea, e a meio da encosta temos outra estrutura

onde se combinam a silharia granítica e um amplo e robusto aparelho de opus

signinum. O todo parece novamente configurar a plataforma de um podium

de dimensões muito superiores ao do topo. Quanto aos núcleos da base, onde se encontram as estruturas produtivas (forno, oficina de fundição), estruturas de armazenamento de água (tanque, fonte, poço) e elementos edificados, a análise é dificultada pelo facto de as percepções do cariz funcional dessas valências, e do modo como se articulavam entre si, ser ambíguo. Retomo o que escrevi na ficha individual: na base podemos entender o espaço como uma villa, mas à medida que vamos ascendendo o cariz sagrado reforça ‑se e o elemento mais doméstico associado a uma villa vai perdendo. Seja como for, na paisagem de Castelo de Vide o sítio de Mosteiros ganha forma por ser o local mais romano: do ponto de vista construtivo a variedade e qualidade de aparelhos e técnicas, e no campo material, a

terra sigillata e as lucernas, ou o exemplar caso da urna em chumbo.

Este ponto é relevante e merece atenção, pois nos diversos sítios listados vamos encontrando um, digamos, fácies identitário vinculado ao fundo indígena, embora se detecte, apesar dos frágeis dados disponíveis, uma ágil integração das inovações romanas. Se Mosteiros parece ser, por enquanto, um sítio com forte componente latina nas expressões construtivas e nos elementos da cultura material, os restantes sítios estão, como dizer?, com esta componente menos marcada.

Um último comentário para a evolução diacrónica. Uma significativa quantidade destes sítios encontra ‑se ocupado em períodos tardios. Para alem das necrópoles de Santo Amarinho e de Azinhaga da Boa Morte também nos locais de habitação encontramos essa expressão. Necropolização da pars rustica em Mascarro. Capiteis paleocristãos em Vale da Bexiga e Mosteiros. Evidente diacronia na Barragem de Póvoa e Meadas. E mais alguns dados soltos que deverão ser melhor avaliados, em especial na faixa ao longo do Sever. Portanto, para já, indícios de continuidade e de estabilidade.