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A VIOLÊNCIA COMO PARADIGMA DA SEGURANÇA PÚBLICA

6. A CHAMADA “PRISÃO CAUTELAR”

6. A CHAMADA “PRISÃO CAUTELAR”

Definida como uma possibilidade legal para que a polícia mantivesse “suspeitos” presos, por um período estipulado (por um juiz), enquanto investigasse e procurasse provas que os incriminassem, essa alteração na legislação reivindicada sobretudo por segmentos policiais encontrou ferrenhos defensores e opositores e já ocupou as páginas da grande imprensa em outros momentos.

Também conhecida como “prisão provis ória”, ou “prisão temporária”, essa modalidade de detenção sempre foi praticada pelos policiais, ao arrepio da lei. Esse dado, bem conhecido, foi uma referência fundamental tanto nos argumentos dos seus defensores como dos seus opositores. Os policiais recorreram a ele para demonstrar a inviabilidade do desempenho das suas atividades sem esse recurso. Os seus defensores externos à instituição policial partiram desse dado real para alertar sobre o perigo dessa prática policial e para a necessidade de regulamentá-la e colocá-la sob o controle da autoridade judiciária. De acordo com esse ponto de vista, constatada a sua existência, não caberia julgá-la, mas regulamentá-la, evitando assim os “excessos.”[64]

Contrariamente, os seus opositores alertaram para o perigo de se atribuir ainda mais poder à uma instituição como a polícia, cujas dificuldades de adaptação às novas regras democráticas vinham sendo muito discutidas pela própria imprensa e vivenciadas pelo governo Montoro. Essas opiniões contrárias à prisão cautelar remeteram assim ao contexto no qual essa discussão foi retomada, bastante revelador dos problemas que envolvem a polícia paulista.

A origem desse debate se inscreveu num contexto de confronto entre delegados de polícia, apoiados por outros segmentos da corporação, e um promotor público, por sua vez apoiado por representantes do Poder Judiciário, a partir do caso de tortura e morte de um preso dentro do 50o.

Distrito Policial (Itaim Paulista, Zona Leste, São Paulo). Nomeado pelo Ministério Público para acompanhar o caso[65], esse promotor pediu o indiciamento de todos os delegados ligados àquele Distrito (quatro delegados plantonistas e um delegado geral), por abuso de autoridade, além de quatro investigadores, dois carcereiros e um inspetor de quarteirão, envolvidos com as sessões de tortura do preso.

Através da sua associa ção de classe, os delegados iniciaram um movimento de protesto que envolveu um abaixo assinado em que acusaram o promotor de “vedetismo sensacionalista”, uma “greve branca”, em que se comprometeram a cumprir estritamente a lei, ou seja, prender apenas em caso de “flagrante delito.” Declararam pretender com isso transferir parte da responsabilidade sobre a criminalidade crescente para o próprio Judiciário. Por fim, ameaçaram processar o promotor.

Reforçando essa atitude corporativa defensiva, os delegados sentiram-se apoiados pelo então delegado - corregedor, Cleto Marinho de Carvalho, encarregado do indiciamento dos envolvidos, que optou pelo indiciamento de dois delegados apenas, aquele que havia autorizado a prisão e o delegado - titular, responsável pelo 50o. Distrito.

Segundo Mingardi[66], esse episódio teria contribuído para minar o apoio do Ministério Público ao grupo que então comandava a Polícia Civil e se empenhava em transformá-la, construindo o que esse autor chama de “nova polícia.”[67]

Foi em meio a esse conflito, veiculado pelos jornais pesquisados, que o debate sobre a “prisão cautelar” foi retomado, garantindo espaço inclusive para amplas defesas dos pontos de vista divergentes através de editoriais.[68]

Inúmeras características assumidas por essa polêmica ao longo das p áginas dos jornais Folha de S.

Paulo e O Estado de S. Paulo conferiram-lhe um caráter emblemático às práticas e discursos

policiais.

Em primeiro lugar, destacamos a emergência dos discursos dos delegados:

“Estamos cumprindo o que sempre teríamos que fazer,... Mas nos colocamos na situação da popula ção e retiramos das ruas os estupradores, os assaltantes, e por incorrer num erro que beneficia a todos, somos os culpados. A partir de agora chega.” (grifo nosso)

delegado entrevistado[69]

“Dá a impressão de que a polícia é culpada de libertar um criminoso, mas infelizmente nós prendemos e a Justiça solta.”

outro delegado[70]

“Queremos encontrar um meio para que possamos trabalhar em paz, sem violência, e continuar ajudando a população, que é o interesse tanto da polícia quanto da Justiça.”

outro delegado[71]

“A sociedade será a maior prejudicada com o movimento, por que quando a polícia faz uma prisão para averiguação o faz com a intenção de defender a sociedade. Por exemplo: um estuprador, não foi preso em flagrante, mas nós o levamos até a delegacia onde ficará alguns dias para ser acareado com a vítima e o crime está elucidado.” (grifo nosso)

delegado tesoureiro da Associação dos Delegados[72]

“A violência é um problema pessoal.”

mesmo delegado, falando sobre a violência policial[73]

Evidencia-se nessas falas a imagem idílica que os delegados procuravam passar da instituição que representavam, reforçando hipótese acerca da importância da sua atuação autônoma, em defesa de interesses próprios. Pela defesa heróica da sociedade, têm se sacrificado, afrontando inclusive a lei, e expondo-se às conseqüências, por que “enquanto a polícia prende, a Justiça solta”, ou seja, a

Justiça nem sempre compartilha com a polícia do seu “nobre” propósito. Nesse contexto, onde a maioria dos policiais são heróis, a violência de alguns é reduzida a um “problema pessoal”, isentando-se, mais uma vez a institui ção policial. Fernandes chama a atenção para o perigo desse discurso, que preserva a institui ção, localizando a violência apenas no “elemento desviante”, propondo como solução a separação entre “o joio e o trigo”, e inviabilizando qualquer possibilidade de auto-crítica.[74]

Além disso, em duas das falas, o inimigo contra quem a “boa” sociedade precisa ser defendida era caracterizado - eram “estupradores e assaltantes.” Explorava -se assim o imaginário que a imprensa ajudou a construir[75], de que, graças à polícia, as nossas prisões estavam abarrotadas com esses “terr íveis delinqüentes.” Todas as pesquisas sobre a popula ção carcerária são unânimes em desmentir esse dado[76], descrevendo sempre a propensão dos presos à prática de crimes contra o patrim ônio.[77] Justificava-se assim, implicitamente, a violência e o arbítrio policial, através da exacerbação do perigo dos supostos delinqüentes.

Outra matéria, sobre a mesma polêmica, publicada pelo Estadão, comprovou essa contradi ção entre os delinqüentes imaginados e os delinqüentes reais, ao mostrar que durante a “greve branca” as celas do Deic, onde as Divisões de Captura costumavam recolher de 120 a 150 pessoas, “autores (supostos!) em sua maioria de furtos e roubos,” o n úmero de detidos caiu para 20.[78] Além de comprovar os dados dos pesquisadores sobre o perfil das pessoas presas em São Paulo, essa notícia apontava também para o que Paixão denominou de “lógica em uso” do policial, que vinha permeando essa polêmica desde o início:

“Ele trabalha armado de tipificações sobre indivíduos e atos que reduzem a complexidade do mundo criminoso, de informações geradas por informantes competentes deste mundo...; e o produto final desta atividade é tanto a categorização de criminosos em artigos do Código Penal (o inquérito) quanto a atualização e ampliação do seu “arquivo’ - o conhecimento acumulado e transmitido organizacionalmente sobre a natureza e a composição da clientela marginal, constantemente observada e onde possíveis autores de crimes serão identificados.”[79]

Esse debate sobre a prisão cautelar apontou vários indícios que enriqueceram essa discussão sobre a “lógica em uso” do policial, à medida que trouxeram ao conhecimento público a sua estratégia cotidiana: partir do suposto criminoso, e não do crime, no processo de investigação. Desse modo, a “clientela marginal” ficava sob constante observação e sujeita a essas detenções ilegais e arbitr árias.

Quando deflagrou-se a “greve branca” dos delegados, além da lei ser efetivamente cumprida, os seus subordinados imobilizaram as atividades policiais, buscando assim demonstrar como a lei é um entrave efetivo ao “bom” desempenho das suas atividades. Através dos depoimentos divulgados pela imprensa, explicaram à popula ção que, por culpa da legislação e do Judiciário, a “boa sociedade” estava a mercê dos ‘terr íveis delinqüentes.”

Outra evidência dessa “lógica em uso” pelos policiais acabou passando de objeto central da imprensa para um terceiro ou quarto plano, aparentemente graças às estratégias empregadas pelos policiais, cuja eficiência transformou um caso que desnudava mais uma vez a violência e o arbítrio cotidianamente praticados no interior dos distritos policiais num libelo em defesa da própria instituição policial, heróica porém injusti çada. De vilões passaram à vítimas, a partir da estratégia discursiva: passaram da defesa ao ataque, quando procuraram opor a popula ção ao Poder Judiciário, apontado como novo vil ão. Aproveitaram a atenção conquistada para fazer reivindicações e retomaram o debate sobre a “prisão cautelar. ”

Nessa campanha contaram com uma ajuda mais efetiva do Estadão, tanto no que se refere à antagonização entre a população e o poder judiciário[80], quanto na divulgação dos estere ótipos policiais e na valorização desse seu “arquivo.” Sempre que o noticiário desse jornal se referiu ao homem morto em decorrência das torturas sofridas no 50o. DP, estopim dessa polêmica, o seu

nome apareceu precedido da designação “ladr ão”, embora pairasse sobre ele apenas uma suspeita. Mais uma vez o discurso do Estadão e o discurso policial foram coincidentes.[81]

Desse modo, numa demonstração de ousadia, quando os fatos divulgados apontavam para a necessidade de mais instrumentos de controle sobre a polícia, seus membros reivindicaram mais autonomia e liberdade de ação. Tudo isso com amplos espaços garantidos nas páginas dos jornais que acabaram por intercalar, da forma fragmentária que lhe é característica, indícios e pontos de vista tão variados. Qual a impressão causada sobre os leitores ? Na certa impressões diversas entre os leitores eventuais e aqueles que se debruçam cotidianamente sobre as suas páginas. Mas teria sido a identificação entre o discurso do Estadão e o discurso policial percebida pelos leitores, a despeito do editorial que apontava em sentido oposto ? Buscariam essas atitudes divergentes, inscritas nas páginas do mesmo jornal, atender aos interesses de segmentos tamb ém diversificados de leitores ?

À medida que as questões decorrentes do “estopim” representado pelo caso de tortura e morte dentro do distrito policial ganharam espaço, o próprio “estopim” perdeu seu papel central. Mesmo assim, nenhum dos dois jornais deixou de descrever as sessões de tortura, no mesmo dia 17 de setembro, reconstituídas a partir de laudo médico e das conclusões do promotor público:

“H. foi colocado em um pau - de - arara, recebendo socos, tapas, pontapés e golpes de um instrumento contundente. Recebeu também choques elétricos no ânus, no pênis e na região do escroto.” (essas sessões se repetiram, segundo seus companheiros de cela, por vários dias)[82]

Também foram publicados outros casos de mortes praticadas por policiais, ao longo de todo debate, além de um caso semelhante de tortura e morte de preso num outro distrito da Zona Leste, fato que sugeria que só as atividades mais visíveis da polícia é que estavam paralisadas[83], além de destacar um elemento central na “lógica em uso” pelos policiais, esquecida em certa altura da polêmica. Tratava -se da prática da tortura como método constituinte do processo de

desvendamento dos crimes, portanto, como recurso cotidiano supostamente necess ário ao policial que precisa “mostrar serviço.” Mas, como sugere Mingardi[84], a utilização da tortura como implemento da corrupção é fundamental à compreensão da sua prática recorrente, ainda que, em geral, sua importância seja menosprezada pelos pesquisadores[85] que limitam sua abordagem ao caráter de controle social a ela atribuído, através da intimidação dos segmentos despossuídos, reconhecidos como alvos prioritários dessa violência.

Ainda que esse aspecto não deva ser negligenciado, a proposta do autor envolve a ampliação da compreensão do sentido da própria tortura policial, uma vez que ele não influencia diretamente a autodeterminação dos policiais torturadores, mas sim a percepção de que é uma pr ática necessária tanto ao bom desempenho profissional quanto à desejada complementação salarial, compensatória tanto dos seus baixos salários quanto dos constantes perigos pelos quais eles se sentem ameaçados. Tudo isso ao arrepio de qualquer legislação. Aponta-se assim para mais uma evidência da “lógica em uso“ dos policiais - a percepção da legislação como empecilho ao seu bom desempenho profissional -, sutilmente presente na expressão corrente “a polícia prende, a justi ça solta”, já mencionada.

Esse autor mostra ainda que, como parte integrante do processo, “que se inicia com a sele ção do suspeito e termina na entrega do preso à Justiça, ou então com o acerto que o liberta”[86], a prática da tortura dentro do distrito policial acabou por se especializar, obedecendo à regras quanto à escolha das suas vítimas e quanto aos seus próprios métodos de aplicação, que chegam a ser ensinados na Academia de Polícia, como revela essa fala registrada por Mingardi durante uma aula, já anteriormente citada:

“Só pendurar vagabundo, não primário. Nesse caso dar uns choquinhos no tornozelo. Aconteceu alguma coisa com prim ário, tá no veneno.”[87]

Como indica a fala do delegado - professor, essas regras visam apenas a proteção do policial - torturador e de seus superiores, coniventes, envolvendo o desenvolvimento de estratégias de tortura sem marcas ou seqüelas. A utilização do famoso “pau - de - arara”, em geral complementada com choques elétricos em diferentes partes do corpo, parece ser o recurso mais freqüente, por sua perversa eficiência, tanto na extração da confissão da vítima, quanto no acobertamento do torturador, pelas poucas marcas físicas deixadas, ainda que por vezes, cheguem a causar a morte.

Em matéria de 13 de março de 1983, a Folha de S. Paulo publicou uma foto mostrando um “pau - de - arara” (Foto 10) , porém sem fazer menção a qualquer vítima ou torturador, ou mesmo a qualquer identificação do local onde ele teria sido encontrado e fotografado, caracterizando assim uma atitude híbrida por parte do jornal, misto de denúncia, ameaça e até, conivência. Mesmo assim, foi possível identificar na foto signos icônicos atestando cuidados especiais para se evitar hematomas, como os panos utilizados para enrolar pulsos e tornozelos, antes de atá-los com as

cordas também retratadas. A legenda trazia informações variadas sobre o “aparelho”, como seu nome, sua função e sobre a posição do torturado (“de cabeça para baixo”), acrescentando que sua presença era comum nas delegacias.[88]

Ainda segundo Mingardi[89], também existem policiais que espancam indiscriminadamente os detidos nos distritos, sendo porém as principais vítimas de sindicâncias internas, embora isso em geral não implique a aplicação de puni ções. Enfatizando as distinções entre as pr áticas típicas da Polícia Civil e da Militar, a partir da adoção de uma ótica interna à própria Polícia Civil, esse autor comenta que os espancamentos ocorridos na rua, com testemunhas, são típicos dos militares, cujas motivações particulares seriam diferenciadas. Além do recorrente controle social inerente ao próprio caráter exemplar da violência praticada, esses policiais agiriam em função de impulsos “emocionais ”, como necessidade de auto-afirmação, de demonstração de poder e de intimidação [90], implicando em que muitos “detidos” cheguem machucados ao distrito policial.[91]