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OS POBRES CONTINUAM PERIGOSOS

1. Quebra quebras de março

CAPÍTULO 5

OS POBRES CONTINUAM PERIGOSOS

Estudamos conjuntamente os três movimentos populares violentos ocorridos em São Paulo durante a administra ção Montoro: o primeiro em 16 de março de 1983, o seguinte, iniciado em 4 de abril de 1983, mas cujas conseqüências apareceram na imprensa, com poucas interrupções, até o mês de julho de 1983, e o terceiro ocorrendo, de forma intermitente, entre os meses de setembro e novembro do mesmo ano.

Percebemos que, embora muito mais delimitado, tanto no tempo quanto no espaço, o primeiro “quebra - quebra” e, sobretudo, o tratamento a ele dado pelo governo do estado, já apontavam características e contradições que seriam reafirmadas no enfrentamento dos episódios seguintes. Esses elementos ajudaram a compreender o embate político que se travava naquele momento histórico em torno das institui ções de controle social, particularmente no Estado de São Paulo.

1. Quebra - quebras de março

Grande destaque foi dado ao quebra - quebra de ônibus ocorrido em São Paulo, por todos os órgãos da grande imprensa no dia seguinte à posse de Franco Montoro, em 16 de março de 1983. Reagindo ao boicote realizado por empresas particulares de transporte coletivo como forma de pressão pelo aumento das tarifas, em plena transição da administração estadual, a população mostrou toda a violência de sua indignação frente ao descaso com que vinha sendo tratada. Esses transportes coletivos representam, por um lado, um elemento indispensável à viabilização da atuação cotidiana da força de trabalho nas grandes cidades e, por outro lado, um espaço público de transição entre seu domínio particular, representado pela casa, e o domínio impessoal da rua, quando, segundo Da Matta, “a pessoa desaparece dando lugar ao indivíduo:”[1]

“Sendo assim, é enquanto ”passageiro” ou “transeunte”, isto é, enquanto um personagem desgarrado e individualizado do grupo prim ário, que parecemos estar mais sujeitos ao uso da violência contra o sistema... A violência, parece-me, nesses casos, como um modo de reintegração no sistema, não mais como um número ou um elemento indiferenciado (um indivíduo), mas como uma pessoa - com nome, honra e considera ção.”[2]

Quebra - quebras do mesmo tipo ocorridos na década de 70 causaram estarrecimento principalmente devido a uma impress ão generalizada de que “as massas urbanas estavam

completamente alijadas da vida política nacional.”[3] No primeiro caso agora estudado, ocorrido na cidade de São Paulo, em março de 1983, parte do desconserto de deveu a sua proximidade com a posse do novo governador Franco Montoro[4], ocorrida na véspera do primeiro quebra - quebra de ônibus.

Considerando os múltiplos significados adquiridos pelo voto no cenário político brasileiro, Sader oferece uma explicação para esse aparente contra - senso:

“Muitos, diante das urnas escolhem o que lhes pare ça melhor, sem significar por isso que depositem sua confiança de que seus problemas sejam resolvidos por aí. Outros, trocam o voto por promessas feitas e então não podem aceitar depois as argumentações sobre as dificuldades para cumprir o prometido.”[5]

Ainda que as razões da popula ção tenham sido reconhecidas nessa ocasião pela grande imprensa e pelos segmentos sociais que se utilizam das suas páginas para se expressar, a reação do novo governo estadual foi alvo de críticas variadas em seus diferentes aspectos.

O Estadão utilizou -se desses quebra - quebras de ônibus, e dos saques que viriam no mês seguinte, para intensificar sua campanha de oposição ao governo de Franco Montoro. Sua cobertura, em alguma medida mais reduzida que a da Folha, acabou por caracterizar-se como um manifesto veemente das opiniões do jornal frente a questões como segurança pública, cidadania, contrato social e democracia. Como fonte para o estudo da dinâmica dos quebra - quebras e do seu enfrentamento, no entanto, a cobertura da Folha revelou-se muito mais rica.

Mesmo assim, a atuação da polícia, nosso principal foco de interesse, foi caracterizada como “inerte” pelos dois jornais:

“E não se soube nem porque: a polícia apenas assistiu aos incêndios e aos quebra - quebras.”[6]

“A polícia impassível diante das chamas.”[7]

Inúmeros depoimentos de policiais corroboraram essa atitude, em geral tida como inexplic ável, ao menos num primeiro momento, para a Folha de S. Paulo, e atribuída à inexperiência, e aos equívocos políticos do governador, em O Estado de S. Paulo:

“Estamos assistindo de camarote.” Sargento da PM

“Estamos mantendo a ordem na medida do possível... Não há condi ções para efetuar detenções no meio dessa multidão e não é o caso de uma operação de choque.”

“Segundo um soldado da PM, a ordem era ‘apenas observar e acompanhar’, limitando -se a dar proteção ao trabalho dos bombeiros.”

“..., comandante do Tático Móvel na área, perguntado porque não impedia as depredações, disse que tinha muito pouca gente para conter aquela multidão e não podia contar com reforço.”

“Outro policial lembrou que o Tático Móvel da regi ão dispõe de apenas 6 viaturas para uma área de 700 Km2 , que inclui 5 DP’s.”[9]

Despreparo, carências materiais, nova filosofia de trabalho traduzida em “ordens superiores”, o que essas atitudes mal se preocupavam em encobrir era o boicote de setores da polícia à nova cúpula policial e às mudanças que ela vinha procurando introduzir. Fortes divergências internas à corpora ção policial emergiram nesses momentos de crise, e ganhariam evidência nas diversas reações da polícia aos saques e quebra - quebras iniciados em abril.

Estudando as mudanças introduzidas pelo governo Montoro no tratamento da questão policial, de um ponto de vista interno à Polícia Civil, Mingardi[10] encontrou evidências que apontam para a omissão deliberada da Polícia Militar na repress ão aos primeiros saques e quebra - quebras. Duas ordens de explicações para essa atitude foram fornecidas por diferentes membros do governo Montoro, da área da Seguran ça.[11]

Dois membros da cúpula policial, ligados à Polícia Civil, atribuíram a omissão da PM ao interesse do seu comando no aumento das desordens, fornecendo assim o pretexto para que o governo federal interviesse no Estado de São Paulo, acabando assim com as experiências democratizantes.[12] Tal postura, atribuída ao comando da PM, explicava-se pela escolha do Coronel Nilton Viana para esse cargo, ocorrida logo depois da posse de Pimentel na Secretaria da Segurança.

Inaugurando uma fase de difícil convivência entre um governo estadual eleito com um discurso democrático e um governo federal herdeiro da Ditadura e presidido por um militar, quando muitas regras tributárias do período anterior ainda estavam em vigor, a escolha do Coronel Viana buscou evitar mais um confronto na sensível área da Segurança Pública.[13] Uma vez que o Ministério do Exército ainda tinha o poder de vetar o nome do comandante escolhido, optou-se pelo nome considerado mais óbvio pelas forças militares, aquele que ocupava o segundo cargo mais importante na hierarquia da PM durante o governo anterior.

Embora essa estratégia política tivesse evitado um conflito inicial, ela implicou uma grande impermeabilidade da PM à nova filosofia de trabalho que o governo estadual procurava implementar na área policial, que se manifestou com radicalidade frente à situação de crise desencadeada pelos saques e quebra - quebras.

Uma outra possibilidade explicativa foi fornecida pelo Secretário Pimentel, que não identificava qualquer premeditação na atitude da PM, atribuindo a sua inércia ao temor que tanto oficiais como

soldados tinham de agir com rigor e não encontrar respaldo dentro do governo e da Secretaria de Segurança. Atribuindo as suspeitas levantadas sobre a PM a velhas rixas entre a Polícia Civil e a Militar, Pimentel atribuiu à “esquerda”, representada pelo Partido do Trabalhadores e pelo Partido Comunista, a responsabilidade pela premeditação dos saques e quebra - quebras.

Contrariava, desse modo, as opini ões de seus próprios subordinados[14] que não viam qualquer premeditação naquelas manifestações violentas, isentando de responsabilidade a PM. Além disso, transferiu parte da culpa aos novos métodos, menos violentos, que o governo procurava implantar, em função da desadaptação dos policiais. Pimentel reforçava, portanto, os in úmeros indícios já apontados quanto ao seu descompasso político com a equipe de governo.

No dia seguinte a esses quebra - quebras, os dois jornais pesquisados deram destaque às declarações de Pimentel ameaçando usar a força contra novas depredações. Não justificava, no entanto, as atitudes anteriores da polícia. Reforçava-se assim a tese de que a condição de recém - empossada da nova equipe era mais um elemento determinante da passividade da polícia, como sugeriu a própria imprensa.

As declarações de Pimentel foram alvo da crítica veiculada pela grande imprensa, justamente dos representantes dos partidos e segmentos que não haviam interpretado como omissa a atitude do governo estadual frente a essa crise, ou mesmo daqueles que vinham sendo acusados de conivência com aqueles acontecimentos, como foi o caso de deputados do PT. Caracteriza-se então um quadro de diferencia ção crítica em relação ao conjunto das atitudes do governo estadual frente aos quebra - quebras, confirmando a diversificação interna da equipe de Franco Montoro, já detectada nesta pesquisa.

Mas se o governo Montoro parecia ter sido pego de surpresa pela fúria popular, o acompanhamento do notici ário da Folha de S. Paulo e do O Estado de S. Paulo revelou que determinados segmentos sociais vinham manifestando fortes preocupações frente à iminente eclosão de conflitos sociais, considerados previsíveis em função do quadro de recessão econômica cada vez mais grave.

Em matéria publicada pela Folha em 23 de janeiro de 1983, os empresários paulistas manifestaram apreensão frente a tais manifestações populares previstas para o mês de março, agravada pelo temor de que o novo governo estadual do PMDB, declaradamente democrático, adotasse um postura tolerante e não garantisse o seu patrimônio nesses casos de ameaça:

“Embora a ascensão de parte das esquerdas ao poder possibilite o surgimento de novos pólos moderadores e o contato dessas novas autoridades com as lideranças sindicais favoreça a solução dos conflitos através do diálogo, evitando-se o choque violento, mesmo assim, a concentra ção da polícia política em órgãos federais é bem vinda e encarada como garantia.”[15]

A despeito do perigo das generalizações contidas em expressões como “o empresariado paulista”, os temores a eles atribuídos na reportagem de Jomar Moraes refletiam as velhas concepções

políticas e sociais que ainda caracterizavam ao menos alguns dos seus segmentos, tais como a indiferenciação entre classes trabalhadoras e “classes perigosas”[16], e a defesa de seu “patrim ônio” acima de qualquer coisa, inclusive em detrimento das liberdades políticas, que acabam sugerindo uma perigosa preferência pela ditadura. Nesse sentido, são esclarecedoras as observações de Cardoso acerca da ideologia neoliberal compartilhada por esses empresários:

“A concepção liberal da sociedade está ligada ao chamado ‘novo liberalismo’, que propõe a condução das massas por uma elite política e que é caracterizado ainda pela perda progressiva dos aspectos mais ‘democráticos’ do liberalismo clássico e até pela aceitação no limite de um ‘Estado forte’, nas situações de perigo de sobreviv ência da democracia.”[17]

Além disso, esse discurso em torno dos temores dos empresários parecia ser tributário da noção de que a responsabilidade pública era atributo único do estado. Como bem demonstrou Paoli, esta noção está filiada à trajetória histórica das classes trabalhadoras brasileiras rumo à cidadania:

“Assim, a matriz da cidadania popular do Brasil moderno se fez através da imposição da dimensão de uma ‘democracia social’ por um poder centralizado que incorporou as reivindica ções operárias, mas tirou-lhes a condição de atores coletivos em espaço próprio de luta. ... o Estado assume por esta via a função pública da defesa da moderna comunidade do trabalho contra as atrasadas minorias privilegiadas. Ungidos pelo poder, os trabalhadores são responsabilidade do Estado e por essa via se tornam cidadãos.”[18]

De acordo com essa perspectiva, os quebra - quebras e os saques poderiam ser interpretados como um questionamento, por parte das classes populares, do desempenho do estado na sua função tutelar, com todas as obrigações sociais a ela inerentes. Suspensas durante o período de exceção representado pela Ditadura Militar, essa tutela estaria sendo agora reivindicada como um direito legítimo.

Ainda que nossa ênfase nesta pesquisa resida na atuação policial frente à essas situaçõ es de crise, não deixamos de notar alguns indícios fornecidos pela grande imprensa sobre a composição da multidão envolvida e sobre a dinâmica dos quebra - quebras.

Nesse sentido, consideramos que as descrições da imprensa que informavam sobre seu início nas primeiras horas da manhã, sua localização em certos bairros da periferia (Grajaú e Parque São Paulo, na zona sul de São Paulo), e suas causas imediatas na superlotação e no atraso dos ônibus de uma empresa particular, estavam caracterizando claramente os atores da história como trabalhadores. O que não significa que esses foram os únicos atores, uma vez que, como nos propõem Moisés e Alier[19], os quebra - quebras devem ser compreendidos de forma dinâmica, comportando portanto inúmeras redefiniçõ es no seu decorrer. Assim, as descrições de fatos ocorridos já no período da tarde, na estrada do Bororé, ainda que trouxessem implícitas intenções

desses jornais de desqualificar tais movimentos sociais, puderam ser compreendidas sob essa ótica dinâmica:

“Duas horas da tarde, estrada do Bororé - mais de 500 pessoas apreciam um espetáculo insólito: 20 ou 30 rapazes, entre 10 e 18 anos, e um velho, de 61, acabam de depredar um ônibus e começam a incendiá-lo, enquanto policiais militares de duas viaturas do Tático Móvel observam a agitação impassíveis.

Havia temor de uma explosão, mas o velho G. tranqüilizava a atenta platéia, avisando que “diesel não explode”.

O ônibus já estava todo envolvido pelas chamas, quando A. G. começou a dar uma entrevista para emissora de TV: `Nesse ônibus quem botou fogo fui eu. Assumo toda a responsabilidade`, dizia, orgulhoso, incentivado por algumas doses de cachaça e pela impassibilidade da polícia.”[20]

Mas outras respostas também foram dadas pelo governo do estado às manifestações. No dia seguinte, quando a calma se restabelecera de forma aparentemente tão espontânea quanto explodira a violência popular do dia anterior, o secretário dos Transportes, Get úlio Hanashiro, iniciou negociações com as empresas que participaram do boicote dos ônibus[21] e elas logo prometeram “suspender o boicote. ”[22] No dia 19 de março, a Folha anunciou o reajuste das passagens de ônibus.[23]

2. Saques e quebra - quebras de abril

Como procuramos mostrar, frente ao primeiro quebra - quebra de ônibus ocorrido durante o governo Montoro, no dia seguinte a sua posse, as vozes registradas pela imprensa, que incluíram as opini ões dos dois jornais pesquisados, reconheceram unanimemente a justeza deste protesto, embora não reconhecessem os mesmos atributos na sua forma. Se considerarmos que os movimentos sociais expressam necessidades comuns não reconhecidas socialmente e conflitos até agora ignorados pelo conjunto da sociedade e pelo estado[24], esse reconhecimento inicial sugere que algo novo estava acontecendo no interior dessa sociedade, ainda que a posterior revis ão de tal posição apontasse para os seus estreitos limites.

Frente às novas manifestações violentas traduzidas em saques a estabelecimentos comerciais, destruição de carros, de orelh ões e de outros equipamentos públicos, ganharam espaço as críticas indignadas e desqualificações, como se a amplitude temporal e espacial desses novos acontecimentos alertassem para o real perigo desses atos de indisciplina da popula ção.

Indo além, tanto a atitude inicial, compreensiva, quanto a sua revisão, caracterizada pelo clamor por repressão, remeteram ao novo contexto político dos primeiros anos da década de 80. Percorria -se, então, o longo percurso político, da Ditadura a uma fase mais democrática da História