• Nenhum resultado encontrado

A VIOLÊNCIA COMO PARADIGMA DA SEGURANÇA PÚBLICA

4. POLÊMICA SOBRE A ROTA

4.1. FOLHA DE S PAULO

Em janeiro de 1983, a Folha promoveu debates sobre as propostas do Governo Montoro para as áreas da Segurança e da Justiça. Nesses debates, a atuação da ROTA já aparecia no centro das preocupações dos participantes, chegando a ser alvo de propostas radicais que propunham a sua extinção. Falando pelo novo governo, José Carlos Dias anunciava então que a ROTA passaria por transformações, cuidando apenas dos casos especiais.[24]

No ano de 1983, a questão começou a ser discutida em matéria intitulada “Prisão de três da ROTA por assalto abala corporação”, assinada por Dácio Nitrine e Walmir Sallaro[25], na qual foram comentados os vários percalços enfrentados pela ROTA nos meses anteriores.

Polícia Militar de manter a unidade aquartelada, liberando-a apenas em casos especiais, em função da repercussão negativa causada pela divulgação do número de mortos em suas ações. Em seguida, atribuiu-se à prisão de três de seus policiais, por assalto, o desencadeamento de uma crise que ameaçava, segundo os jornalistas, “desestruturar a filosofia de trabalho de 13 anos.” Sem, no entanto, explicar qual seria esta filosofia, a matéria apenas lembrava o seu slogan: “A ROTA é reservada aos heróis.” Por último, recordava -se o “boato” atribu ído a assessores do Governo Montoro, de que a ROTA seria desativada.

Percebemos que essa matéria caracterizava-se por uma clara identifica ção entre o discurso jornalístico e o discurso policial, da própria ROTA, neste caso, veiculado por seus “oficiais.” O descontentamento permeava todo o seu conteúdo.

Com o anúncio do nome de Manoel Pedro Pimentel para a Secretaria de Seguran ça Pública, não encontramos nos primeiros pronunciamentos do novo secretário e do novo comandante da PM (anunciado logo em seguida), publicados pela Folha, referências diretas à ROTA. Indiretamente, no entanto, percebemos que em meio a declarações caracterizadas pela preocupação com a defesa dos Direitos Humanos, tônica do discurso do Governo Montoro, mesclavam-se passagens nas quais Pimentel se esforçava por valorizar a instituição policial:

“Temos certeza de que nas diversas carreiras da Polícia Civil e nas fileiras hierárquicas da Polícia Militar existe um forte idealismo e enormes reservas de civismo, prontos para se tornarem esplêndida realidade. ”[26]

Sobre as supostas mudanças, anunciadas por José Carlos Dias, nos primeiros discursos publicados encontramos apenas esta afirmação paradoxal do novo comandante da PM, coronel Newton Viana:

“Não haverá mudanças estruturais na Polícia Militar, mas só alteração de filosofia e método de trabalho.”[27]

Em função das limitações impostas por nossa fonte, não podemos concluir sobre a efetiva ausência de referências diretas à ROTA e as suas possíveis mudanças nos primeiros discursos do secretário Pimentel e do novo comandante da PM, uma vez que não há qualquer compromisso no sentido da publicação integral desses discursos por parte dos jornais, pelo contr ário, a seleção, sempre arbitr ária, de trechos desses discursos é um pressuposto constante. Inclusive a presen ça de declarações paradoxais como a citada logo acima, pode ser atribuída aos recortes sofridos, responsáveis, por perdas parciais de sentido ou mesmo por perigosas distorções.

De qualquer modo, esse aparente descompromisso do novo Secretário de Segurança Pública com mudanças efetivas na ROTA[28] parece ter influenciado a decis ão tomada pela Folha de desencadear uma campanha pela sua desativação imediata.[29] Tomando o cuidado de apoiar previamente as “diretrizes” gerais propostas por Pimentel, sobretudo quanto ao reforço do

policiamento ostensivo em toda a capital, seu editorial sentenciava:

“Para este jornal, os métodos de operação da ROTA são incapazes de conter a criminalidade; ao contrário, alimentam-na na prática habitual da violência, comportamento afinal seguido por outras unidades.”[30]

A resposta do Secretário Pimentel foi publicada pela Folha dois dias depois, sob o título: “Futuro Secretário diz que a ROTA será tropa de apoio”[31], na qual ele descartava qualquer possibilidade de desativação, mas confirmava sua permanência nos quartéis para atuar apenas em casos especiais.[32]

Na mesma matéria, o jornal incluiu opiniões favoráveis e contr árias à desativação da ROTA. Enquanto o então deputado federal pelo PT, Eduardo Suplicy, declarava-se favorável, o deputado estadual pelo PTB e coronel da PM, Sidney Palácios, defendia a permanência da ROTA “como está hoje”, justificando: “cada povo tem a polícia que merece”, e ainda: ”desativar a ROTA é um sonho dourado.” Evidenciava-se assim que, mesmo para seus defensores, tratava-se de um “mal necessário.”

A fase seguinte desta polêmica foi demarcada pela ênfase dada pela Folha à uma suposta mudança de atitude de Pimentel em relação à violência policial, detectada em seus pronunciamentos posteriores, veiculados pelo jornal.

Notícia intitulada “Imprensa torce imagem da ROTA, acusa Pimentel”, que mereceu espaço na primeira página do jornal[33], foi sucedida, logo no dia seguinte, por um editorial intitulado “Mudan ça de atitude”[34], no qual se lamentava o fato de o Secretário da Segurança estar se mostrando menos preocupado com mudanças e mais preocupado em apresentar como “normais ” os altos índices de violência policial que continuavam sendo registrados. O editorial lembrava ainda as inúmeras dificuldades inerentes ao cargo ocupado por Pimentel, como atenuantes à lamentada “mudança de atitude.” Quanto às acusações diretas feitas por ele em relação à imprensa, não havia qualquer menção, o que pode ser interpretado como uma tentativa de descaracterizar uma atitude meramente defensiva por parte da Folha.

A resposta do secretário foi publicada no dia seguinte, na forma modesta de “carta do leitor”, na qual ele procurava desmentir tal “mudança”, caracterizando-a como uma construção do próprio jornal.[35]

Durante os meses de abril e maio, notamos que o debate arrefeceu, e apenas uma referência foi registrada num fragmento do discurso do comandante da PM, Coronel Viana. Em matéria intitulada “ROTA continuará nas ruas, diz o novo comandante”[36], ele parecia contestar qualquer necessidade de mudança na ROTA: “marginal é marginal em qualquer governo... Excessos e irregularidades serão devidamente apurados.” Defendendo a manutenção de métodos e práticas policiais a despeito das mudanças políticas, o comandante revelava preocupante simpatia em relação à essas heranças da Ditadura, amenizada apenas pelo reconhecimento da necessidade de

apuração de “irregularidades”, a despeito da imprecis ão deste termo. Seu discurso revelava-se assim, dissonante em rela ção ao discurso da equipe de governo na qual estava inserido.

No início de junho, a polêmica foi retomada, impulsionada pela publicação de declara ções polêmicas atribuídas a Pimentel, em matéria mais uma vez assinada por Dácio Nitrine e Walmir Sallaro. A matéria tinha como título: “Pressionado, Pimentel ameaça ‘tirar a focinheira da polícia’”, publicado em primeira página:

“O policial da ROTA pode ser comparado a um cão feroz, ... preparado para matar.... Quando a gente permite que a PM mate, há reação violenta dos que acham que os Direitos Humanos foram desrespeitados e chegam a rezar missa pela alma dos marginais. Por outro lado, a popula ção reclama segurança e quer a ROTA na rua para matar marginal.”[37]

Dando prosseguimento à mesma reportagem, na página nove, a publicação da entrevista do secretário e dos comentários dos jornalistas foi acompanhada de uma foto grande, cujos significantes reforçavam os atributos de violência e ameaça inerentes a esse batalhão especial criado durante a Ditadura Militar, fortemente militarizado. Foto e título, publicadas na parte superior da página, sempre merecedoras da atenção especial do leitor, ou mesmo da atenção exclusiva de alguns, reforçavam-se, desempenhando papel central na campanha do jornal contra a “mudança de atitude” de Pimentel e a favor da extinção da ROTA (Foto 3 ).

Todos os elementos icônicos presentes na foto (exceto aqueles ligados ao seu espaço) estão associados à idéia de treinamento policial, remetendo à violência e mesmo à morte, uma vez que todos os policiais retratados em posição de tiro apontavam em direção aos órgãos vitais dos seres humanos.[38] O jornal consegue assim evidenciar, através das contradições presentes nessa reportagem, composta por foto e texto escrito, a contradi ção inerente à posição do governo estadual frente ao debate sobre a ROTA, caracterizada pela insistência em pretensas mudanças na “filosofia” de trabalho de um batalhão cujo treinamento pauta-se pela violência.

Opini ões ditas de “senso comum”, por vezes preconceituosas e, outras vezes reveladoras, a partir de uma leitura mais complexa, das contradições que permeiam o cotidiano da população pobre nos bairros da periferia, pareciam ser amplamente partilhadas pelo Secretário da Segurança, nesse momento. Sua identificação com a concepção distorcida de que os “direitos humanos” defendidos por setores da Igreja Católica e por algumas entidades civis seriam apenas os dos “bandidos”, é um bom exemplo disso.

As repercussões destas afirmações foram publicadas pela Folha, nos dias seguintes, e partiram tanto do pr óprio jornal (em editorial), como da Igreja Católica, através do Arcebispo da Arquidiocese de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, incluindo explicações do próprio Pimentel dirigidas ao comando da Polícia Militar, em tom de desculpas.[39]

Foto 3

Folha de S. Paulo , 2 de junho de 1983, p. 9

No final de julho, esse debate retornaria à primeira página da Folha, com o título: “Revoltados, taxistas pedem a volta da ROTA.”[40] E no dia 3 de agosto, novo título, com jeito de resposta: “ROTA voltará à periferia”[41], seguida de matéria em que o Secretário Pimentel informava sobre processo de reciclagem concluído por este batalhão. Publicada em primeira página, essa matéria vinha acompanhada de uma foto de grandes dimensões que continha inúmeros significantes icônicos reveladores do caráter contraditório das rela ções entre povo e polícia, mesmo quando se tratava de um segmento simpático à instituição policial e aos seus métodos, como era o caso dos taxistas[42] (Foto 4 ).

Tanto as grades de ferro, quanto a arma de cano longo nas mãos do suposto policial, e mesmo a distância que separa o grupo (identificado como de taxistas) dos dois policiais retratados (um civil e um militar), apontam para características contraditórias como: proteção e controle; proteção e violência; aproximação e repressão.

Mas a aparente oposição entre as duas categorias profissionais - policiais, de um lado, e taxistas, de outro - contradizia o conteúdo da mensagem escrita, na qual taxistas reivindicavam a volta de um dos batalhões mais violentos da polícia e eram atendidos. Se a foto sugeria separação e mesmo oposição, a linguagem escrita atestava união e valorização recíproca.

Embora recusando uma hierarquização entre os dois tipos de linguagem, partimos do pressuposto de que a imagem fotográfica atesta a ocorr ência de determinado episódio, sem chegar, no entanto, a explicá-lo.[43] Desse modo, o caráter complementar e contraditório das duas mensagens reforça a complexidade que caracteriza as relações entre povo e polícia.

Foto 4

Folha de S. Paulo , 3 de agosto de 1983, primeira página