• Nenhum resultado encontrado

2.1 A CULTURA NO CONTEXTO DO ESTADO BRASILEIRO

2.1.7 O choque neoliberal de Collor e o desmonte da cultura

A estratégia de campanha que levou Fernando Collor à presidência acionava um amplo discurso de condenação do Estado como locus de corrupção e desmando. Para o enfrentamento dos ―problemas‖ apontados e sob o argumento do enxugamento da máquina administrativa e da racionalização da aplicação dos recursos, foram adotadas diversas medidas bombásticas, que também pautaram o tratamento dispensado para a

87 área da Cultura. Sob o efeito espetacular que caracterizou seu governo, Collor extinguiu o Ministério da Cultura junto com vários de seus órgãos16, sem nenhum debate público ou qualquer espécie de consulta prévia à sociedade. No esteio da política de terra arrasada, o presidente proferiu pesadas acusações ao meio cultural e ao uso da extinta Lei Sarney para justificar suas ações. Em meio a controvérsia estabelecida, uma carta da atriz Fernanda Montenegro em protesto contra medidas adotadas e declarações feitas pelo Presidente Collor e pelo seu Secretário da Cultura17, Ipojuca Pontes, dão a medida da reação:

É profundamente inquietante e ofensivo para a cultura brasileira que, ao determinar a suspensão da Lei Sarney e o fim da Embrafilme, o governo afirme, indistintamente, que tal procedimento se tornou necessário para a realização de uma limpeza na área cultural no que se refere à ação desonesta de igrejinhas, guetos culturais, grupos privilegiados, enfim, corruptos e sonegadores do erário público, que sob a égide da referida Lei teriam contribuído para a atual ruína econômica da nação [...] A cultura, senhor presidente, é uma área delicada. Este país respeitado não existirá sem que a criatividade de seu povo venha para o primeiro plano de atendimento civilizadamente. Em todas as áreas, artistas brasileiros criativos e honestos, com os quais eu convivo, comprovadamente, sempre fizeram tudo para ampliar, credenciar, embelezar e humanizar este imenso e difícil país. Esteja certa, senhor presidente, o ouro dos bandidos não está nas mãos dos que realmente produzem cultura neste Brasil. (MONTENEGRO In RITO, 1990, p.215-217).

A transcrição, na seção anterior e nessa seção, de trechos de cartas distintas da atriz Fernanda Montenegro, além de mostrar o posicionamento ético da artista, são documentos que auxiliam o entendimento das polêmicas mudanças perpetradas no contexto das políticas brasileiras de cultura em um período tão curto (1985 a 1991). Como o cerne ideológico da eleição de Collor era a introdução dos postulados neoliberais na gestão do Estado brasileiro, com a cultura não seria diferente. Durante o período entre 1990 e 1992, empreendeu-se uma ação de desmonte do aparato estatal, de modo a desobrigar o Estado de qualquer responsabilidade pelo fomento da cultura – com a extinção de algumas das mais importantes instituições culturais públicas do país, como a Funarte, e a drástica redução de recursos para a área –, a sociedade brasileira

16

Foram extintos a Fundação Nacional de Artes Cênicas – FUNDACEN; a Fundação do Cinema Brasileiro; a EMBRAFILME; a Fundação Nacional Pró-leitura; o Conselho Federal de Cultura; o Conselho Consultivo do SPHAN. A Fundação Pró-memória e o SPHAN foram transformados em Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural e a FUNARTE em Instituto Brasileiro de Arte e Cultura(IBAC). (CALABRE, 2007, p.94)

17

88 viu-se colocada diante de um falso dilema, segundo o qual haveria uma oposição insolúvel entre Estado e mercado em face das necessidades de custeio e fomento das artes e da cultura. Nos termos do que se acreditava na época como prioridade do Estado em face das eternas e infindáveis urgências da educação e da saúde, por exemplo, o dilema só poderia ser resolvido ―em favor do mercado, como se Estado e iniciativa privada fossem as únicas alternativas de seu financiamento e não pudessem, em nenhuma hipótese, combinar-se para custear a criação e a produção artística brasileira‖ (ARAÚJO, 2007, p.48).

Em entrevistas e matérias diversas, lideranças e personalidades da classe artística brasileira, como Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Caetano Veloso, Carla Camuratti, Ziraldo, João Ubaldo Ribeiro, dentre outros, afirmaram que Collor conseguiu arrasar a produção cultural e intelectual brasileira. Os cineastas, em coro, bradavam que a política cultural daquele governo conseguira reduzir a quase inexistência a produção de filmes entre 1990 e 1991. Pesquisas subsequentes sobre a produção cinematográfica nacional comprovam que, efetivamente, raros filmes foram produzidos num primeiro momento após o fechamento da Embrafilme. Por outro lado, a estatal de cinema era criticada, com regularidade, por ser um reduto de ineficiência e apadrinhamento. Ainda assim, para muitos, foi um golpe quase fatal no cinema nacional, que levaria muitos anos para começar a se recuperar.

O cineasta Ipojuca Pontes, primeiro titular da Secretaria de Cultura de Collor, publicou um texto sob o título emblemático de Cultura e Modernidade, onde a tônica do texto é a ênfase que o secretário dá a percepção do papel do Estado como intervencionista, ineficaz e ineficiente. Para Pontes, havia excesso de servidores e cargos, os gastos com a estrutura eram demasiados e os entraves burocráticos demarcavam a gestão e aplicação dos recursos públicos para cultura. Fundamentado nesse cenário de redução do ―desperdício‖ do dinheiro público é que se deu a extinção de 36% dos empregos e 46% dos cargos e funções comissionados, dentre outras medidas de corte de despesa.

Em face da drástica redução de recursos verificada na esfera federal, a política do Governo Collor estimulou o surgimento de legislações de incentivo à cultura no nível estadual e municipal. Lia Calabre (2007, p.94) ressalva que isso só se tornou possível porque, antes, a ―Constituição de 1988 forneceu aos municípios uma maior autonomia, delegando aos mesmos algumas responsabilidades. Essa nova conjuntura política contribuiu para a ampliação da ação dos governos locais sobre as atividades

89 culturais‖. Outro saldo do período decorre da introdução de uma visão sistêmica para o financiamento à cultura, através do Programa Nacional de Incentivo à Cultura (PRONAC). São contribuições – descentralização, municipalização e integração – que forneceram bases para as políticas culturais atuais.

Os Estados da Federação tiveram gastos crescentes de 1985 a 1992, o oposto do ocorrido com o Governo Federal que, em 1992, chegou ao seu pico mais baixo. O aumento no volume de gastos públicos com cultura só seria alcançado a partir de 1996, no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, quando atingiu, naquele ano, cerca de R$ 157 milhões de reais. Em 1988, por exemplo, esse índice não havia ultrapassado a cifra de 95 milhões, em 1990, não havia chegado a 17,5 milhões e, em 1994, alcançara somente 40 milhões.

Outro dado que marcaria a política cultural do Governo Collor foi criação, pelo então Secretário da Cultura da Presidência da República, Sérgio Paulo Rouanet, de um novo projeto de lei de incentivo fiscal para financiamento da cultura, que, após entrar em vigor, passou a ser chamada de Lei Rouanet, servindo de modelo para a política de incentivos fiscais para a cultura praticada desde então no Brasil, como destaca Albino Rubim (2007b, p.25)

A lógica das leis de incentivo torna-se componente vital do financiamento à cultura no Brasil. Esta nova lógica de financiamento – que privilegia o mercado, ainda que utilizando quase sempre dinheiro público – se expandiu para estados e municípios e para outras leis nacionais, a exemplo da Lei do Audiovisual (Governo Itamar Franco), a qual ampliou ainda mais a renúncia fiscal.

O impeachment de Fernando Collor promoveu a ascensão de Itamar Franco e permitiu o progressivo reestabelecimento do aparato institucional, com a recriação e reabilitação de organismos, como a FUNARTE, e a refundação do MinC. Na gestão Collor-Itamar, o funcionamento da Lei Rouanet não teve uma adesão expressiva. No período de 1992 a 1994, somente 72 empresas, em todo o país, investiram em cultura, com total ausência de apoio conferido por pessoas físicas. O funcionamento da Lei Rouanet nesse período foi muito precário, não tendo o seu volume de captação de recursos ultrapassado 6% dos quase 250 milhões de reais que o Estado disponibilizou como renúncia fiscal para o setor. De fato, a lei só viria a ―pegar‖, como se costuma

90 dizer na tradição brasileira, após as reformas introduzidas em 1995, pelo então ministro Francisco Weffort, já no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC).