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A interface da cultura com a dimensão social está centrada sobre como a cultura conforma a sociedade, constitui papéis, estabelece relações e torna possível a percepção das diferenças pelo seu viés.

A dimensão social é a que torna a cultura indissociável à ideia da construção da cidadania, como conjunto de práticas sociais que oferecem a experiência da inclusão e do pertencimento. Em uma sociedade marcada pela expansão da violência urbana e pela deterioração das regras de convívio e de sociabilidade, a cultura tem se constituído em lugar preferencial para a realização da cidadania.

Ao longo do século XX, têm proliferado iniciativas as mais diversas sobre como a ação cultural alcança incontestável poder de transformação social. São projetos que utilizam perspectivas como a arte-educação, por exemplo, para retirar crianças e adolescentes de situações de risco, para melhorar a autoestima desses jovens e de suas comunidades através de programas socioeducativos que ajudam a enfrentar problemas como violência, miséria, marginalidade e exclusão.

A análise do fenômeno da crescente instrumentalização da cultura pelo seu emprego e alcance social, contudo, não se dá sem críticas, como já ressalvado no início desse capítulo pela contestação que Teixeira Coelho (2008) faz acerca da lógica de uso da cultura. Entretanto, a força com que emergem pautas como cidadania cultural, democratização cultural, direitos culturais, fazem com que esta agenda seja alçada a um

53 lugar destacado, merecedor de um estudo sistemático e estruturado de compreensão. Por serem temas que tem forte componente político, serão reiterados e mais profundamente analisados no próximo capítulo dessa tese, o que não invalida que sejam preliminarmente evocados para melhor elucidar a dimensão social da cultura.

Desde as últimas décadas do século XX, a discussão política da cultura tem requisitado que o Estado amplie a ideia da incorporação do direito à cultura aos direitos do cidadão, constituindo a ideia de cidadania cultural. A inserção progressiva da maioria da população na esfera cultural ainda é marcada pela esfera do consumo, como, aliás, é pensamento corrente em alguns círculos do pensamento econômico – os teóricos de Harvard liderados por Samuel Huntington em A Cultura Importa: os valores que definem o progresso humano, sustentam a noção de que a conquista da cidadania se dá e é majoritariamente definida pela aquisição da capacidade de consumir (HARRISON e HUNTINGTON, 2002).

Mesmo se referindo às coletividades, os direitos culturais ainda são particularizados como direitos individuais, como estabelecem os tratados internacionais. Em decorrência de tal contraditório, esses direitos não são jurisdicionados plenamente como o são os direitos econômicos. Para agravar ainda mais o quadro, a aplicação dos direitos culturais varia de acordo com os contextos culturais de cada lugar, submetendo- se ao entendimento local dos direitos à cidadania, sejam eles políticos, civis ou humanos. Leonardo Brant (2009, p.25) ratifica tal postulado quando adverte que:

Culturas não são universais, modos de vida também não. Não por acaso, os direitos e liberdades culturais sejam os menos discutidos, celebrados e garantidos como parte indivisível dos direitos humanos. Costumo defini-los como quinta categoria desses direitos, pois seguem esquecidos, logo após os civis, políticos, econômicos e sociais, estes mais nobres, senão em efetividade, pelo menos e visibilidade.

O artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, estabelece que ―toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos benefícios que deles resultam‖. Para BRANT (2009, p.25), ―o principal instrumento balizador das relações internacionais do pós-guerra ainda sobrevive, mas traz consigo uma série de limitações‖. Na Constituição Brasileira em vigor, resultado da Assembleia

54 Nacional Constituinte de 1988, o direito à cultura é destacado pelo ―Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais‖ (BRASIL, 1988).

Fica evidente nos dois documentos, advindos de marcos temporais tão distintos, que o direito à cultura tem sua percepção limitada à esfera da fruição e do gozo. Esse dado pode ser percebido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, quando são colocados num mesmo patamar os direitos de ―participar livremente da vida cultural‖ e de ―gozar das artes‖, considerando-os análogos. Na Constituição Federal, essa limitação também pode ser notada quando se destaca o ―acesso às fontes da cultura nacional‖, dando a entender que a cultura é produzida por fontes determinadas, às quais todos devem ter acesso, porém, apenas como desfrutadores e/ou consumidores.

É uma perspectiva que perpassa o conjunto da sociedade. Quando se examina a maneira como a cultura é tratada pelos meios de comunicação, encontram-se vários exemplos de como persiste o enfoque dado aos temas culturais e artísticos como atividades secundárias, de caráter complementar. Cultura ainda é preferencialmente tema de segundos cadernos, de noticiabilidade de entretenimento e lazer, entendida como situações de suspensão momentânea e transitória da realidade, de alívio das coisas sérias da vida, algo acessório do qual se usufrui para sair da rotina.

É preciso contrapor-se a esta perspectiva estreita. Além de consumidores, os cidadãos também são (ou podem ser) criadores e/ou produtores, afinal um dos objetivos do direito à cultura é que o conceito já estabelecido de ―cultura para todos‖ se consorcie a perspectiva da ―cultura de todos e por todos‖. Yúdice (2004, p.41) dilata essa formulação conceitual, quando afirma

Os direitos culturais incluem a liberdade de se engajar na atividade cultural, falar a língua de sua escolha, ensinar sua língua e cultura aos seus filhos, identificar-se com as comunidades culturais de sua escolha, descobrir toda uma variedade de culturas que compreendem o patrimônio mundial, adquirir conhecimento dos direitos humanos, ter uma educação, não deixar representar-se sem consentimento ou ter seu espaço cultural utilizado para publicidade, e ganhar respaldo público para salvaguardar esses direitos.

Por sua vez, Marilena Chauí (1995) advoga que o direito à cultura requer que a relação entre estado e cultura tenha maior participação do cidadão. Chauí, tendo por

55 base sua experiência como Secretária da Cultura da cidade de São Paulo (1988-1992), propõe que os direitos culturais fossem discriminados em quatro categorias:

Direito de acesso e de fruição dos bens culturais por meio dos serviços públicos de cultura [...], enfatizando o direito à informação, sem a qual não há vida democrática; Direito à criação cultural, entendendo a cultura como trabalho da sensibilidade e da imaginação na criação das obras de arte [...]; Direito a reconhecer-se como sujeito cultural, graças à ampliação do sentido de cultura [...]; Direito à participação nas decisões públicas sobre a cultura, por meio de conselhos e fóruns deliberativos (CHAUÍ, 1995, p.82-83).

É uma proposição de fôlego que aciona categorias diversas como: democracia cultural, participação popular, protagonismo e inclusão cultural, cujos significados guardam relação de proximidade e podem ser condensados pela noção de ―cidadania cultural‖. Para se chegar a esta perspectiva, cabe recuperar a noção de que é a cultura que ―cria o espaço onde as pessoas se sentem seguras, em casa, pertinentes e partícipes de um grupo‖ (FLORES apud YÚDICE, 2004, p.43), portanto o direito à cultura é condição necessária para a formação da cidadania, que, na sociedade brasileira contemporânea, é perpassada por três fenômenos relevantes: 1 - a expansão e concentração da população nos espaços urbanos, 2 - as novas tecnologias que ampliam o acesso aos meios de comunicação eletrônicos; 3 - a crescente formalização do campo cultural (3).

Sobre o primeiro fenômeno, com 80% da população brasileira vivendo nas cidades, sobretudo nas metrópoles, os espaços urbanos acirram e potencializam, ainda mais, as questões socioeconômicas. O acesso aos bens culturais e o reconhecimento da capacidade criativa dos segmentos constituídos pelas comunidades de baixa renda destes locus periféricos como produtores de conteúdos culturais têm sido um desafio e um entrave às políticas públicas. Uma possível resposta advém do segundo fenômeno imbricado à noção de cidadania cultural: o crescimento do acesso à Internet através de pontos de inclusão digital patrocinados pelo governo e, sobretudo, das lan-houses7 nas comunidades periféricas e populares das cidades brasileiras. Além de proporcionar a população conteúdos culturais disponibilizados em escala mundial, boa parte deles de livre acesso, possibilita que esta mesma população se torne provedora, gerando e

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Tipo de estabelecimento comercial surgido na Coréia do Sul (PCBang) no final dos anos 1990 e largamente disseminado pelo mundo, onde as pessoas podem pagar para utilizar um computador com acesso à Internet e a uma rede local, com o objetivo de ter acesso à informação rápida pela rede e entretenimento através dos jogos em rede ou online, além de serviços de officer.

56 trocando conteúdos em espaços digitais de sociabilidade e difusão como MSN, Facebook, Youtube, Orkut etc. O terceiro fenômeno revela um dos efeitos da dimensão econômica, tratada na seção anterior deste capítulo. De fato, o crescimento do mercado de bens e serviços artísticos e as exigências de conduta formal e profissional por parte dos mecanismos de fomento, públicos e privados, têm contribuído para um novo desenho do campo cultural. Dados do Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos de Diversão da Bahia (SATED/BA) que ilustram o último capítulo dessa tese comprovam o crescimento da demanda por profissionalização, pelo menos no que se refere às artes cênicas na Bahia.

A tais fenômenos se associa a significativa proliferação de um grande número de organizações não-governamentais, as ONGs, que têm reconfigurado a organização da sociedade civil, substituindo as formas clássicas de representação política (sindicatos e associações) por entidades de expressão de grupos sociais diversificados e que têm no campo da arte e da cultura uma das mais acionadas formas de atuação. Em todo o Brasil, os exemplos são inúmeros e muitos já alcançam uma projeção midiática e inserção institucional ponderável, como o Afroreggae no Rio de Janeiro, a Edisca em Fortaleza, o Instituto Bacarelli em São Paulo, as Casas de Passagem em todo diversas capitais brasileiras, o Projeto Axé e os projetos étnico-culturais afirmativos do Ylê Ayê e da Escola Criativa do Olodum em Salvador, para citar apenas alguns. São projetos que reiteram a lógica de uso da arte e da cultura, mas que alcançam resultados incontestáveis do poder de transformação e ressignificação que tais usos podem operar em segmentos sociais excluídos e desassistidos.

A atuação destas ONGs, que se pautam por uma estratégia de ação de cidadania cultural, não tem escapado à crítica. Ainda que sejam entidades nascidas exatamente dentro de grupos e partidos de esquerda, alguns intelectuais associados a este segmento ideológico reclamam que a luta política pelos direitos tem sido substituída pelo combate à carência. Marilena Chauí (2005) vai adiante em suas contestações quando aponta que esta ―ação de desmantelamento de sindicato e associações‖ é promovida pelo neoliberalismo para despolitizar a luta social, e a substituição da tradicional interface entre grupo de reivindicação de direitos por entidades de atendimento a problemas de carência e exclusão, levando-a a fazer o seguinte questionamento:

57 A pergunta que deixamos aqui é: as ONGs são a retomada dos movimentos sociais em novos termos, em consonância com as novas condições históricas, ou são a substituição dos movimentos e, tornando-se interlocutoras exclusivas do poder público e canalizadoras exclusivas dos fundos públicos, estão comprometidas com a despolitização contemporânea? São um obstáculo real à participação e à democracia? (CHAUÍ, 2005, p.30).

Os exemplos, já citados, demonstram a relativa pertinência dos questionamentos apontados por Chauí, uma vez que as ONGs têm funcionado, para os poderes públicos, como meio de atingir as diversas comunidades que representam, ou, dizendo de outro modo, a que atendem. Entretanto, se for considerado o cerne da epistemologia proposta por Yúdice de cultura como ―recurso‖, vê-se que existe outra perspectiva de compreensão do fenômeno aludido quando ele destaca que:

Nas últimas três décadas, ativistas e teóricos progressistas, que romperam com a tônica estatista e cognitivista do marxismo tradicional e com as inflexões (modernistas) anti-racionais e mercantilizadas das artes, colocaram a estética e a comunidade na formulação de uma alternativa cultural-política para a dominação. A guinada antropológica na conceitualização das artes e da sociedade coincide com o que podem ser chamados de poder cultural – o termo que escolhi para expressar a extensão do biopoder na era da globalização – e também é uma das razões principais pelas quais a política cultural se tornou fator visível para repensar os acordos coletivos (YUDICE, 2006, p.45)

O tamanho e a diversidade do universo apontado por Yúdice e Chauí ratificam a complexidade da cultura na contemporaneidade e implicam em uma reformulação nos postulados e nas práticas que demarcam as políticas públicas de cultura. A cidadania cultural, especialmente no que diz respeito ao direito à participação nas decisões sobre políticas públicas, em face da precariedade das formas e instância de interlocução, também não encontra perspectiva facilitada de concretização nesse universo.