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2.1 A CULTURA NO CONTEXTO DO ESTADO BRASILEIRO

2.1.8 Na Era FHC, a cultura é um bom negócio, para poucos!

Com a posse de Fernando Henrique Cardoso, se iniciou um novo ciclo para o país, tanto na sua dimensão política quanto na economia. A ênfase no ideário neoliberal, introduzida atabalhoadamente por Fernando Collor, ganhou uma dimensão factual na gestão FHC (1995-2002), através de um amplo e intenso programa de privatizações e da adoção de medidas econômicas que implicaram na retração do Estado. Com a área da cultura não foi diferente, ainda que no plano institucional não tenha havido nenhuma mudança, mas a política de fomento e financiamento à cultura reproduziu o modelo econômico vigente, com o privilégio dado aos mecanismos das leis de incentivo, sem qualquer outro aporte significativo.

O novo Ministro da Cultura, Francisco Weffort, obteve o apoio do ―homem forte‖ do primeiro mandato de FHC, o Ministro das Comunicações Sérgio Motta, que tinha particular apreço pelo mundo das artes e da cultura. Com essa ―parceria‖, deu-se início ao investimento progressivo em projetos culturais certificados pela Lei Rouanet, através das estatais do setor de telecomunicações (sobretudo as empresas de telefonia, que à época ainda não tinha sido privatizadas, e os Correios). Concomitantemente, as exigências burocráticas foram reduzidas e as rotinas simplificadas, tornando o acesso aos mecanismos um pouco mais ágil.

Por outro lado, a centralidade da Lei Rouanet, nas ações do MinC, veio marcar a gestão de Weffort, tornando-se sua face mais visível, senão a única. Durante os oito anos do governo de FHC, o percentual das despesas orçamentárias com cultura não ultrapassou 0,14% do orçamento público, quase todo destinado a financiar a burocracia pública (folha de pagamento dos funcionários, despesa com custeio do Ministério e das instituições vinculadas), valores menores que os milhões captados pelos produtores culturais através da Lei Rouanet. Com orçamento minguado e poucas ações realizadas com recursos próprios, a ação do Governo Federal restringiu-se a enaltecer os resultados performativos das leis de incentivo. Foi um equívoco e um despiste dos reais problemas enfrentados e dos danos causados.

91 A elucidação desse quadro fica mais clara diante da análise dos números feita por Carlos Alberto Dória (2004), em seu artigo É chato dizer, mas a Lei Rouanet fracassou,

Entre 1998 e 2001, anualmente, o Ministério da Cultura recebeu e credenciou cerca de quatro mil projetos culturais como aptos a captarem recursos pela Lei Rouanet. Desses, não mais do que 15% em média (600, portanto) lograram encontrar patrocinadores. A primeira impressão - aquela que a lógica de mercado parece impor àquilo que não ―se vende‖- é a de que seriam ―maus projetos‖, portanto recusados pelos patrocinadores ou consumidores. Mas não foi bem assim. Em 2000, apenas 17 empresas responderam por 61% dos incentivos fiscais que chegaram ao mercado (R$ 213 milhões de um total de R$ 350 milhões), ao passo que, na outra ponta, outras 2.629 empresas aportaram 2% do total de incentivos (uns magros R$ 7 milhões). Numa leitura ―regional‖, apenas 320 empresas estabelecidas no eixo Rio-São Paulo controlam 94% dos incentivos fiscais que o mercado absorve. É claro que o poder de compra dessas 320 empresas é infinitamente superior ao dos 2.629 incentivadores pequenos. Vejamos, agora, pelo lado do produtor: o valor médio dos projetos incentivados esteve em torno de R$ 688 mil. Portanto, para incentivar um projeto à base de pequenas contribuições um produtor precisa convencer vários empresários da excelência da sua proposta. Já aquele que tem acesso a alguma das 320 empresas ―top‖ do eixo Rio-São Paulo facilmente pode ter seu projeto incentivado por um só empresário. É por isso que de 4.000 autores-peregrinos só uns 600 conseguem bater nas portas certas.

A concentração dos recursos aplicados e das ações realizadas no eixo Rio de Janeiro-São Paulo, é apenas uma das graves distorções decorrente da política cultural em análise. Sobre esta omissão do MinC, Cristiane Olivieri (2002, p.129), em sua dissertação de mestrado intitulada O Incentivo Fiscal Federal à Cultura e o Fundo Nacional de Cultura como Política de Estado: usos da Lei Rouanet 1996-2002, adverte que a gestão de Weffort a frente do Ministério da Cultura:

[...] resumiu-se à quantificação dos projetos apresentados, aprovados e realizados, e à análise contábil e financeira da prestação de contas de cada projeto [...]. Não existe controle ou verificação do acesso do público e do impacto na comunidade. Ou seja, os efeitos da política cultural escolhida não são de real conhecimento do Governo, que se limitou a fazer verificações econômicas e contábeis. De fato, o público (contribuinte de imposto) não é envolvido no processo em nenhum momento [...]. Não existe retroalimentação do sistema do Ministério da Cultura com as informações geradas pelos projetos realizados(...).

92 A falta desta retroalimentação não permite o aprendizado, gerando a inexistência de ajustes na condução quer dos aportes da empresa privada, quer do apoio com verba pública.

A política de cultura de Weffort-FHC ainda facultou ao mercado o crescimento dos investimentos públicos em cultura, entregando aos empreendedores e patrocinadores a função de mediação do gosto e do gerenciamento cultural, ao mesmo tempo em que abriu mão de controles substantivos, permitindo que projetos fossem dirigidos para públicos seletíssimos, ao invés de estimular e, até mesmo, regulamentar a distribuição, a preços populares ou gratuitos, do produto cultural que, afinal de contas, foi resultante do financiamento total ou majoritariamente público.

Em seu livro Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura, Cristiane Olivieri (2004, p.25) argumenta que ―No sistema capitalista, grande parte do investimento em produção de bens [...] é determinado pela garantia de ressarcimento do custo do seu processo produtivo e pela possibilidade da geração de lucros [...]. Ocorre que, como ressalva, ―A produção cultural, contudo, nem sempre consegue obedecer a esta lógica de produção de lucros‖. Ela prossegue advertindo que ―apenas parte das produções atinge a auto-sustentabilidade e uma parcela pequena consegue gerar lucros para produtores e artistas.‖. Em face de tais argumentos corre-se ―o risco de se ver produzida apenas a estética da classe economicamente abastada‖ (p.26), portanto ―as fontes de custeio das produções culturais não podem se resumir aos fundos do artista ou à receita proveniente da comercialização de seu produto final.‖.

Em decorrência de tais elementos, Olivieri (2004, p.29) aponta alguns efeitos perversos e riscos iminentes dessa política:

[...] a realização das produções culturais apenas em função da vontade e da viabilidade mercadológica poderia acarretar o fim de grande parte das manifestações artísticas no Brasil [...] Esclarece bem MACHADO18 que a permissão ao mercado do arbítrio completo na produção, circulação e consumo de bens culturais acarreta a reprodução das desigualdades que caracterizam o próprio mercado capitalista. [...] É ainda o afastamento da ideia de garantia de cidadania cultural. [...] Trata-se, pois, do direito à memória cultural, à produção cultural e de acesso á cultura.

18

A autora cita MACHADO, M. Notas sobre a política cultural do Brasil. In: MICELI, S.(org) Estado e

93 Albino Rubim (2007a, p.27) vai além e radicaliza quando afirma que no governo de FHC não houve política cultural, ―se houve política de cultura, ela se concentrou em ampliar a utilização das leis de incentivo pelo mercado‖ . Pior, ―o dinheiro cada vez mais era público, entretanto, estranhamente, gerado pela iniciativa privada‖. Ainda que seja ressalvada a perspectiva ideológica que move e sustenta tal análise, é indiscutível que nos oito anos do Governo FHC o dinheiro público destinado ao financiamento e fomento à cultura foi subordinado à decisão privada, gerando distorções e omissões (concentração espacial de ações, má distribuição de recursos, ausência de contrapartidas, fortalecimento de projetos corporativos privados como Itaú Cultural, Instituto Moreira Sales etc.) cujos reflexos ainda hoje são duramente sentidos no meio cultural.