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4 O TEATRO BAIANO PROFISSIONAL NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS

4.1 UMA BOFETADA NA CRISE: O TEATRO BAIANO ENTRE 1988 E 1991

Como já foi afirmado nos capítulos anteriores, o teatro baiano chegou, ao final da década de 1980, imerso em um contexto de dificuldades, decorrentes da combinação crítica, naquele momento, de seus dois principais vetores: a economia e a política. O Governo do Estado, que havia se tornado principal fomentador do teatro feito em Salvador, estava imerso em dificuldades políticas de toda ordem. A ruptura do vice- governador Nilo Coelho com o govenador Waldir Pires quando assumiu o Governo em definitivo após a renúncia de Waldir, representou um duro golpe na área da Cultura, já abalada com as disputas internas decorrentes da sobreposição de funções entre a recém- criada Secretaria da Cultura e a recém-transformada Fundação das Artes (outrora, Fundação Cultural do Estado). Sobre esse momento, tem uma passagem no livro Memória da Cultura: 30 anos da Fundação Cultural do Estado da Bahia,

Com a saída de Waldir Pires e a chegada de Nilo Coelho ao governo do Estado, a cultura sofreu um pesado abalo, quando foi promulgada a Lei 5.121, de 6 de julho de 1989, que transformou a Fundação Cultural do Estado da Bahia em Fundação das Artes. Foi uma tentativa equivocada de concentrar na instituição apenas as atividades artísticas, extinguindo uma série de projetos socioculturais, que foram, nas gestões anteriores, a grande inovação. [...] Desse momento até o final do quadriênio, estabeleceram-se uma crise de ideias e, paralelamente, uma crise financeira; tudo o que havia sido construído anteriormente foi descartado. (ALVES et al, 2004, p.64)

O governador Nilo Coelho, além de afastar-se ideológica e administrativamente de todos os compromissos de Waldir, pelo conjunto de suas ações, não demonstrou nenhum apreço pelas Artes. Durante seu mandato de pouco mais de dois anos, a área da Cultura foi tratada sem maiores deferências, pelo contrário, o tratamento dispensado beirou o descaso, sendo dotada de recursos apenas para bancar as despesas de custeio. Mesmo assim, essas ações foram negligenciadas a ponto de que os Centros de Cultura

131 do interior do Estado, construídos na gestão anterior, começaram a enfrentar graves dificuldades, chegando a suspender as atividades por falta de verba para custear a manutenção daqueles espaços. Na mesma situação, encontrava-se o Teatro Castro Alves– TCA, que foi fechado pelo seu diretor à época, Márcio Meireles, por absoluta falta de condições de funcionamento, após a apresentação, em julho de 1989, do antológico concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia – OSBA com a participação do afoxé Filhos de Gandhi, regidos pelo maestro Ernst Widmer. O TCA permaneceria fechado por quase quatro anos, só sendo reaberto, depois de completa reforma, iniciada em 1991e concluída em 1993.

O outro componente – a economia – vivia os sobressaltos dos planos econômicos que surgiam um após o outro para tentar domar a inflação, sem sucesso. Em dezembro de 1989, a inflação, que já estava na casa dos dois dígitos havia alguns anos, chegava a marca dos 40%, portanto, mais de 1% ao dia. Corroíam-se os sonhos da população brasileira assim como os dos artistas que se viam sem perspectiva. As implicações devastadoras de um contexto inflacionário também interferiam com a mesma negatividade as condições econômicas circundantes das atividades culturais. Por outro lado, o meio cultural apoiou ―em peso‖ a candidatura de Luis Inácio Lula da Silva contra Fernando Collor, tendo o ―caçador de marajás34‖ saído vencedor. O cenário

econômico e político que se delineava no plano Federal era atemorizante, como de fato se concretizou pela edição de mais um plano econômico fracassado (Plano Collor) e pela ação de desmonte institucional da área da cultura.

Para o teatro baiano, a década que começara promissora caminhava agora entre a melancolia e a descrença. Os editais, principal fonte de fomento, foram interrompidos ainda na gestão de Olívia Barradas. Na gestão de Capinam, continuaram esquecidos. A trajetória de declínio era tão evidente que mesmo o sucesso de A Bofetada que irrompeu nesse contexto e serve como marco inaugural do recorte temporal desta tese, não convencia autores como Aninha Franco (1994, p.359), para quem esse sucesso parecia um caso isolado.

Iniciados eufóricos, os anos 80 encerraram-se nostálgicos. O sucesso de público de A Bofetada – na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo – e

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Expressão criada à época pela imprensa para designar a recorrente afirmação de Collor que o problema do Brasil era a corrupção e a existência de ―marajás‖ – categoria de funcionários públicos beneficiados com salários astronômicos e que ele iria combater exterminar com todos esses males.

132 do Recital da Novíssima Poesia Baiana – na Bahia – podem ser analisados como fenômenos isolados na decadência da arte cênica local...

Quando a Companhia Baiana de Patifaria estreou a comédia Abafabanca em 1987, já prenunciava sua escolha em trasladar para a Bahia o então jovem teatro besteirol35, que invadiu a cena carioca desde o final da década de 1970, através de nomes como o diretor e dramaturgo Hamilton Vaz Pereira e a trupe do Asdrubal Trouxe o Trombone (composta pelo próprio Hamilton e atores como Luiz Fernando Guimarães, Regina Casé, Evandro Mesquita, Patrícia Travassos, dentre outros), além dos trabalhos de Mauro Rasi, Vicente Pereira, Miguel Falabella, Miguel Magno e Ricardo Almeida, todos dentro dessa vertente.

Flávio Marinho elucida, em seu livro Quem tem medo do besteirol? A história de um movimento teatral carioca, que a origem do termo se deve a uma matéria assinada pelo crítico Macksen Luiz (apud MARINHO, 2004, p.12), na qual o jornalista, ao resenhar a estreia do espetáculo As 1001 encarnações de Pompeu Loredo, afirmou que a peça ―pode ser resumida num neologismo carioca, gíria de praia, que significa exatamente aquilo que a palavra resume: besteirol‖. A terminologia gerou reações em graus variados. Mauro Rasi (apud MARINHO, 2004, p.12) a contestava dizendo que ―O besteirol não existe. Na realidade, foi a necessidade de rotular algo extremamente novo que fugia aos parâmetros dos códigos críticos. Algo extremamente flexível que se contrapunha ao que seria considerado ‗sério‘‖.

Entre opiniões favoráveis e contrárias, o besteirol se firmou como movimento bem sucedido e como gênero teatral específico, tendo de Flávio Marinho (2004, p.11- 12) a seguinte definição:

É um espetáculo de esquetes defendido por uma dupla de atores (ou atrizes) que vive muito de referências e citações de filmes, peças, programas de TV e da observação do comportamento humano da zona sul carioca. Seu humor é inteligente, exige da plateia uma certa dose de informação para ser melhor usufruído e vive muito da paródia.

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Denominação atribuída pela imprensa carioca a uma forma inusitada e despretensiosa de fazer comédia, se utilizando de citações a situações do cotidiano, permeadas por referências do pop e da publicidade, com fartas doses de improvisação.

133 Para além do rótulo de teatro fácil ou de gênero menor como queriam seus detratores, a definição mais pertinente do besteirol vem da rigorosa e temida crítica teatral Bárbara Heliodora (apud MARINHO, 2004, p.16):

Depois do doloroso período da censura, que prejudicou a dramaturgia brasileira tanto fazendo com que autores já consagrados como Vianinha, Guarnieri, etc. deixassem de escrever, e impedindo, por outro lado, que novos autores pudessem testar no palco seus nascentes talentos, o besteirol surgiu como o único caminho para o aprimoramento do dramaturgo. O besteirol explodiu como uma necessidade irreprimível de comunicação, de falar do nosso mundo em termos ricos de diversão e crítica, muito mais inteligentes do que gostariam muitos de admitir. Mauro Rasi talvez seja o maior exemplo do besteirol como escola de autor; com o besteirol, ele dominou a dramaturgia e pôde passar adiante. Foi um momento rico e saudável.

A translação do besteirol carioca para a Bahia implicou em adaptações e alterações. Com menos características autorais que a vertente carioca do besteirol, Abafabanca era uma colagem de esquetes teatrais de vários autores, cada um encenado por um diretor baiano diferente, todos convidados pela Companhia Baiana de Patifaria. Tinham por elemento comum a escolha pela encenação despojada, despretensiosa, centrada na intenção de fazer o público rir, o que, de certo modo, delineava a opção artística e, porque não dizer, mercadológica que iria consagrar a Companhia nas décadas seguintes. A escolha pelo nome Abafabanca – espécie de sorvete vendido ensacado em plástico, geralmente feito de suco de frutas, muito comum nos bairros populares de Salvador, fortalecia o vínculo que o grupo queria criar com a celebração de uma identidade baiana própria, específica, ―a cara da Bahia‖.

O passo seguinte dos ―patifes‖ Lelo Filho, Frank Menezes, Moacir Moreno, Fernando Marinho, Ricardo Castro, foi estrear, em 24 de novembro de 1988, na Sala do Coro do TCA, o espetáculo A Bofetada. Dirigido por Fernando Guerreiro, tornou-se um marco na história recente do teatro baiano pelo longo tempo de permanência em cartaz e por atrair multidões a sua plateia, gerando um fenômeno inédito no teatro local. Apesar da ocorrência de alguns sucessos anteriores, nunca antes um espetáculo ficaria tanto tempo fazendo sucesso em temporadas seguidas, pois como recorda a atriz e diretora Hebe Alves (2009), que dirigiu um dos esquetes de Abafabanca, nos anos 1980,

134 ―a maioria dos grupos teatrais (Avelãs e Avestruz, Artes e Manhas, A Barca, etc.) e elencos reunidos por diretores como Paulo Dourado, Deolindo Checucci, Paulo Cunha, Ewald Hackler, Manoel Lopes Pontes, passavam meses ensaiando para ficarem alguns dias ou poucas semanas em cartaz‖.

Ao se contrapor a essa dada realidade, A Bofetada quebra todos os recordes de afluência de público e de permanência em cartaz na Bahia. Obteve, paulatinamente, o reconhecimento da crítica e da mídia, tornando-se também um espetáculo cultuado sem ―abrir mão‖ de ser bem sucedido comercialmente, com fôlego para erigir um novo paradigma para as Artes Cênicas locais. A imprensa, que num primeiro momento reagiu com descrédito ao ―fenômeno‖, tecendo críticas pouco elogiosas ao espetáculo, seja pelo seu viés rasgadamente cômico, seja pelo emprego de gírias, bordões e expressões da linguagem popular à exaustão, aos poucos se curvou à presença do público que, ignorando a recepção pouco amistosa da crítica teatral, lotava os teatros de Salvador por onde ―A Bofetada‖ passava. Aliás, essa foi outra peculiaridade introduzida pelo espetáculo: as temporadas maiores de, no mínimo, dois meses em cartaz em cada teatro de Salvador, eram alternadas pelos diferentes espaços existentes, que eram poucos, na época não passavam de oito casas de espetáculos em funcionamento.

No esteio do sucesso de A Bofetada, outra comédia que estreou quase na mesma época e tinha algumas similaridades com o besteirol, o Recital da Novíssima Poesia Baiana do grupo Los Catedrásticos, com direção de Paulo Dourado, contribuiu para atrair para a plateia um público estimulado a identificar-se com a nova cena baiana pautada, sobretudo, pelo humor histriônico e pela interatividade, outra inovação daquele período. A Bofetada derrubou a quarta parede36 e estabeleceu um tipo de relação palco- plateia incomum no teatro baiano. O público era instigado a participar do espetáculo e contracenar com os atores, sobretudo no esquete Fanta e Pandora, quando, além de convocar toda a plateia a seguir e repetir movimentos e falar, ainda pinçava alguns espectadores do público e os levava para o palco, tornando-os por alguns momentos atores inerentes ao grande espaço de improvisação que o espetáculo propunha.

Tais características cênicas teriam parte ponderável na construção do sucesso de A Bofetada. O pragmatismo do diretor teatral Fernando Guerreiro (2004), sustenta que ―a decisão de apostar em temporadas mais longas foi uma das chaves do sucesso‖,

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Terminologia empregada pela técnica teatral para designar uma forma de representação na qual se simula a existência de uma parede imaginária no espaço entre o palco e a plateia, de forma a eliminar qualquer forma de interação entre as partes. Os atores representam como se não soubessem da existência de um público diante deles.

135 informação ratificada pelo ator Frank Menezes (2009), em entrevista para o autor desta tese:

Desde o primeiro momento que apostamos numa temporada maior. Essa informação Lelo37 havia trazido do Rio de Janeiro, tendo o sucesso do teatro besteirol realizado na zona sul carioca como parâmetro. Mas não foi fácil convencer os administradores dos teatros de nossa pretensão. Mesmo a temporada inicial da Sala do Coro demandou muita negociação com a direção do TCA, afinal não era costume dar pauta de oito semanas para uma mesma peça, não se imaginava que um espetáculo viabilizasse público para tamanha pretensão. Vencida essa resistência inicial, o sucesso que fizemos na Sala do Coro, que era um teatro de quase duzentos lugares e que logo nas primeiras semanas lotou, voltando gente da porta todos os dias, nos credenciou a pedir o mesmo tratamento nos teatros seguintes. Então quando fomos negociar com Adriano, na ACBEU38, com Petrô, no Vila39, e com Gilda no Maria Bethânia40, tínhamos esse crédito para botar na mesa. Assim, a cada temporada e com as extraordinárias habilidades de Lelo como produtor, fomos conquistando um espaço que reformularia toda a maneira de se fazer teatro na Bahia e que criaria novos paradigmas de produção.

Esse salto quantitativo e qualitativo atraiu o interesse geral da sociedade, da classe teatral, do governo e da mídia. A parcela do público que raramente ia ou mesmo quem nunca tinha ido ao teatro, passou a querer assistir os espetáculos dos quais tanto se falava. Para além da divulgação ―boca-a-boca41‖ e dos limitados e escassos recursos

acionados pela produção dos espetáculos naquele contexto, também a mídia passou a repercutir e dar maior visibilidade para o teatro produzido aqui, inclusive com matérias de capa analisando o ―fenômeno‖ e pautando mais espaço para os espetáculos locais. A classe teatral reagiu mais prontamente ao momento, e logo começaram a aparecer no circuito artístico de Salvador novas encenações e novos grupos. Vale assinalar que este novo momento não foi uma mera replicação dos espetáculos que representavam o modelo de sucesso (A Bofetada e Recital da Novíssima Poesia Baiana - Los Catedrásticos). Outros gêneros de espetáculos teatrais, como dramas e tragédias, alcançaram um sucesso inesperado para encenações mais densas e de assimilação mais

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O ator Lelo Filho, um dos fundadores da Cia.Baiana de Patifaria e seu integrante até hoje.

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Teatro da Associação Cultural Brasil Estados Unidos, inaugurado em 1986, localizado no Corredor da Vitória em Salvador.

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Teatro Vila Velha, já comentado no terceiro capítulo dessa tese.

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Teatro Maria Bethânia, de propriedade da empresária Gilda Carvalho, construído nos anos 1980, funcionava como teatro e cinema. Deu lugar a um bingo nos anos 2000. Foi extinto e hoje suas instalações abrigam a Churrascaria Fogo de Chão, localizado no Rio Vermelho.

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136 complexa, como Dendê e Dengo (direção de Carmem Paternostro), O Sonho (de Gabriel Vilela), Medéia (de Hans Ulrich Becker) e Divinas Palavras (de Nehle Frank).

A ebulição da cena baiana seria capturada e absorvida dentro do quadro político que se redesenhava com o retorno do grupo liderado por Antônio Carlos Magalhaes ao poder. Se o momento de retomada da produção teatral baiana ocorreu à margem do Estado, sua afirmação (e posterior consolidação) foi devidamente cooptada pelo poder político, com benefícios e prejuízos que marcariam de forma profunda a relação entre Cultura e Estado na Bahia.

4.2 O RETORNO DO CARLISMO E A CELEBRAÇÃO DA BAIANIDADE COMO