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Christa Berger

No documento PORTCOM (páginas 37-47)

senão de uma Escola (ainda que assim seja designada), uma perspectiva latino-americana, é a noção de crítica.

Situando os anos 1960 como um marco temporal do início de um pensamento sobre a comunicação, sem dúvida o contexto político da região foi indutor de uma perspectiva teórica que levava em conta fortemente a relação entre estruturas sociais, econômicas e modelos de comunicação. O reconhecimento destas relações embasou o trabalho de conceitos como dependência, hegemonia, dominação e resistência para examinar o fenômeno da comunicação de massa.

O continente era pressionado pela expansão do capitalismo, levada a cabo pelos países do norte a fim de evitar crises cíclicas, explorando as nações periféricas com a imposição de seus produtos e modos de vida. A denúncia desta realidade tomou corpo teórico. A teoria da dependência orientou grande parte da pesquisa da sociologia e da economia e inspirou os estudos de comunicação. A intervenção na cultura se evidenciava, especialmente a do sistema transnacional da comunicação de massa, exemplificado pelo papel das agências internacionais de notícia e pela indústria cinematográfica e musical.

Compreender a dimensão política da comunicação engendrava a produção de uma crítica genuinamente regional. A submissão cultural associada à subordinação política e à dominação econômica fechava o círculo da dependência, cuja constatação encaminhava posições críticas visualizadas no pensamento e nas ações de resistência. É quando tomam corpo projetos regionais de defesa da democratização da informação no cruzamento do campo político com o campo acadêmico.

A virada latino-americana se deu na conjugação do pensamento de pesquisadores de formações muito distintas e distantes fisicamente. Foi no tempo do venezuelano Antonio Pasquali, do boliviano Luiz Ramiro Beltrán, do brasileiro Paulo Freire e do uruguaio Mario Kaplún, com os quais se juntaram o paraguaio Juan Diaz Bordenave e o belga, vivendo no Chile, Armand Mattelart, que uma “América Latina sem lentes” foi sendo desenhada. Uma segunda geração foi se manifestando com a abordagem da dependência cultural acentuada pelo conceito de ideologia. São

estudos de viés semiótico e antropológico que os argentinos Eliseo Verón e Héctor Schmucler, os peruanos Rafael Roncagliolo e Rosa Maria Alfaro, os chilenos Fernando Reyes Matta, Juan Somavía e Diego Portales desenvolveram. Com os golpes militares na América Latina muitos deixam seus países. No México, Matta, Somavia e Schmucler fundam o Instituto Latinoamericano de Estudios Transnacionales (ILET), centro de grande atividade em que se desenvolveu uma pesquisa empírica sobre a dominação e, ao mesmo tempo, propostas alternativas para a democratização da comunicação. Não é por acaso que dali saem subsídios para o debate sobre o sentido único da comunicação, que a Unesco encampou e que desemboca na proposta por uma Nova Ordem Mundial de Informação e Cultura (NOMIC). Sabemos da importância que o relatório Mac Bride (1983) teve naquela conjuntura, assim como as razões pelas quais as propostas não foram implementadas.

Durante todo esse período, com certa autonomia em relação a esses pesquisadores e outros centros de pesquisa, manteve-se atuante o Centro Internacional de Estudios Superiores de Periodismo para América Latina (Ciespal). Fundado em 1959 com sede no Equador e iniciativa da Unesco tem sua importância registrada menos pela perspectiva crítica e mais por ter ensinado um método de pesquisa, e ainda por ter promovido o encontro de professores de diferentes regiões do continente. Em algum momento com a contratação de professores da América Latina e deslocando a ênfase no jornalismo para a comunicação, o Centro também se posiciona de maneira mais voltada aos problemas da comunicação na região. No curso que realizei em 1984 com os professores Daniel Prieto, da Argentina, e Eduardo Contreras, do Chile, a lembrança que guardo é a de um curso bastante crítico e comprometido com o destino comunicacional da América Latina. Logo em seguida a história começa a girar das ditaduras aos processos de democratização e muitas experiências de comunicação popular e alternativa são realizadas nas sociedades e nos estudos de comunicação. No Brasil, o papel da imprensa alternativa mereceu muitos registros na época, e segue sendo tema de dissertações e teses, formando um arquivo de estudos de caso.

O caminho até aqui pode ser sintetizado mais ou menos assim: da crítica ao sistema transnacional de comunicação à proposição de políticas democráticas ou nacionais e proposta de comunicação contra- hegemônica alternativa dos movimentos populares e comunitários. Da pesquisa-denuncia à pesquisa-ação.

Os anos 1980 são anos de deslocamentos. A pesquisa, que se consolida nesse período, se direciona na relação entre comunicação e cultura, revendo o poder da comunicação de massa pela observação das múltiplas expressões culturais na região, e que são iluminadas pela noção de culturas híbridas. A chegada aos estudos de recepção e das mediações foi sequência quase natural. Jesus Martin Barbero, Nestor Garcia Canclini e Guillermo Orozco são os autores que circulam em todos os países e entre todos os pesquisadores da região, assim como dão a conhecer a pesquisa latino-americana em outros continentes.

Com estes autores temos pesquisas compartilhadas e formação de redes que se desenvolvem mediante associações e projetos de pesquisa entre universidades e pesquisadores que se encontram nos tantos congressos que a área realiza anualmente. Penso que a posição crítica aqui se volta menos para fora – o sistema transnacional de comunicação, a dependência econômica, as agências internacionais de notícias, a ideologia –, e como uma descontinuidade em relação à primeira geração inclui a pesquisa em comunicação ao escrutínio crítico dos pesquisadores. O livro De los medios a las mediaciones, de Jesus Martin-Barbero (1987), refaz o percurso da crítica, redireciona o olhar de fora para dentro. Para dentro da produção cultural e comunicacional, para a recepção das mensagens e das audiências massivas e para dentro da própria pesquisa. Metodologias são propostas para ir a campo com procedimentos compartilháveis.

No Dicionário de Comunicação: escolas, teorias e autores (2014), o pensamento comunicacional latino-americano mereceu dois verbetes: Escola latino-americana de comunicação (Berger, Schwaab) e Pensamento contemporâneo latino-americano (Jacks, Ronsini).

Merecedores de verbetes individuais, foram incluídos Armand Mattelart, Paulo Freire, Guillermo Orozco Gómez, Jesus Martín-Barbero, Néstor Garcia Canclini .

O verbete da primeira fase – de Berger e Swaab – encerra assim:

“O pensamento comunicacional latino-americano encontrou na cultura regional e no tensionamento da realidade sociopolítica os caminhos para a demarcação de seus aportes próprios. Seu amadurecimento e sua solidificação ocorreram entre as décadas de 1970 até 1990, com especial repercussão no entendimento da comunicação em sua processualidade dialógica. Se o desenvolvimento e a consolidação da cultura de massa na América Latina exigiram, de forma crescente, a qualificação profissional, a profissionalização do campo acadêmico e sua institucionalização igualmente propiciaram a demarcação do viés político de investigação e, posteriormente, de uma produção paradigmática em torno dos movimentos sociais e a possibilidade de estabelecer, para as nações latino-americanas, novos canais de comunicação entre a sociedade e o estado.”

A pesquisa em jornalismo

A comunicação tem muitos ramos, o que se observa na própria configuração dos currículos das faculdades e nas propostas dos Programas de Pós-Graduação. O jornalismo, o ramo que inaugura a formação, não se estende com a mesma potência para a pesquisa. Busco responder ao enunciado proposto para essa mesa pensando no jornalismo: O que se investigou ao longo do tempo? Como se investigou e o que podemos observar para comparar?

A primeira constatação é a da ausência de pesquisas compartilhadas como se realizam nos ramos da recepção e da telenovela. Também constato pouca circulação de autores ou referências seminais. Nos processos de seleção dos programas da pós-graduação em jornalismo no Brasil, por exemplo, não há um autor latino-americano indicado.

No entanto, a ausência de pesquisa compartilhada e de incorporação de referências bibliográficas comuns não significa a inexistência de formulações comuns, de temáticas, conceitos e perspectivas metodológicas que se expressam de um mesmo jeito, que indicam caminhos semelhantes. Cada tempo histórico gesta não só um ambiente cultural que se repete em diferentes países e regiões como interpretações desse tempo também circulam e guardam similitudes.

Tomei como um pequeno corpus, lugares por onde passei neste último período: I Congresso Internacional de Periodismo realizado pelo Ciespal em maio de 2016, que tinha por tema Convergencias mediáticas y nueva narrativa latino-americana e o GT de jornalismo da Associación Latino- americana de Investigacion em Comunicación (ALAIC) na edição de Lima (2014) e do México (2016).

No evento do Ciespal falou-se em jornalismo de imersão, narrativas transmidiáticas e jornalistas como testemunhas dos acontecimentos. Nas conferências, a constatação do fim do jornalismo como o conhecemos no século XX, a identificação da precariedade das condições de trabalho dos jornalistas e o reconhecimento de novas narrativas gestadas em novos dispositivos tecnológicos. Falou-se na importância do jornalismo para a democracia e de que há uma luta pelo relato hegemônico. O jornalismo mereceu críticas pelas suas posições conservadoras e se chamou a atenção para as experiências de um jornalismo em mutação e a aposta na reinvenção do jornalismo que passa pelo investimento na narrativa.

Examinando os trabalhos apresentados nos GTs do evento do Ciespal e dos congressos da Alaic, observo direcionamentos, que sintetizo, assim:

1) Crítica às práticas jornalísticas – suas condições de trabalho e seus constrangimentos organizacionais – e de como estas reverberam na cobertura dos acontecimentos.

2) Descrição de exemplos do jornalismo em mutação – jornalismo militante, compartilhado, diretamente relacionado às possibilidades que a tecnologia propicia.

3) Estudos de narrativas jornalísticas recebem intervenções teóricas e estudos de caso que exemplificam as potencialidades do jornalismo que vai nesta direção.

Os três itens aproximam pesquisadores e dão subsídio para o desenvolvimento de pesquisas conjuntas, mas creio que o terceiro é o mais promissor, pois faz avançar em questões teóricas – propicia ruptura com os valores tradicionais do jornalismo – e acolhe experiências de novos fazeres.

Penso que a noção de narrativa jornalística se apresenta a nós como um problema de pesquisa que demanda reflexão de natureza epistemológica. Fernando Resende (2011) é um autor brasileiro fundamental para a elaboração deste caminho. Diz: “O paradoxo que atravessa o jornalismo é gerado, antes de tudo, a partir do esforço de colocar em relação dois termos antinômicos: o discurso e o real. Em se tratando de tecer considerações sobre os estudos do jornalismo, parece relevante pontuar um dos problemas que funda a reflexão sobre conhecimentos e métodos produzidos: a dicotomia – construída e muitas vezes reiterada – entre o material e o simbólico. A escrita, tanto para a história quanto para o jornalismo, enquanto espaço de construção da representação de um real – acontecido ou em acontecimento –, ao que parece é o lugar para o qual conflui o paradoxo do qual se trata. Na escrita, o real deve se revelar, porém é também nela que descobrimos as faltas próprias a qualquer sistema de representação”. (p. 122)

Aqui se desestabilizam perspectivas conceituais alicerçadas em noções positivistas e simplificadoras acerca da realidade do mundo questionando conceitos como verdade, acontecimento, experiência, representação e, nesta medida, acabam por romper com a ilusão de imparcialidade e neutralidade.

Desde o giro linguístico, em que a natureza da linguagem foi revelada, mas, também, pelo conjunto de pesquisa crítica das coberturas que viemos analisando há tanto tempo, o paradoxo do jornalismo agora finalmente se apresenta como campo problemático. Ao jornalismo cabe

dar a ver o mundo, que por meio da linguagem é inapreensível. A vocação do jornalismo ao factual não lhe dá autoridade para reivindicar a representação fiel da realidade, depois que aprendemos os meandros da constituição da linguagem no sujeito.

Ao mesmo tempo em que vislumbramos rupturas teóricas com o senso comum do jornalismo, observamos na prática experiências de narrativas mais sensíveis que formam redes de relações com outros saberes, que é quando o jornalista assume seu lugar de narrador e escuta o outro como um sujeito e não mera fonte de informação.

Os estudiosos do jornalismo, sem pesquisa institucional ou em redes, encontram um caminho comum na América Latina ao incorporar reflexões da história e dos estudos literários, e por meio da crítica às práticas jornalísticas reconhecem as experiências que retomam uma tradição e colocam em evidência o potencial das narrativas que servem para nos contar, nos emocionar, nos fazer ver o outro com empatia e respeito.

Como exemplo de acolhimento de novos saberes penso na Fundação Gabriel Garcia Marques que, ao premiar reportagens produzidas na América Latina, nos oferece um corpus para pesquisa empírica de narrativas de resistência e amorosidade, tanto pelas temáticas escolhidas como pelas modalidades para narrá-las.

Outra vez o exemplo tem função comprovatória. A reportagem vencedora em 2016 foi “São Gabriel e seus demônios”, de Natália Vianna, da Agência Pública. Ela narra o que acontece em São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, pequeno município de população indígena que tem o mais alto índice de suicídios do Brasil.

O jornalista e pesquisador argentino Roberto Herrscher (2009) constrói uma definição para jornalismo narrativo estudando os mestres e suas grandes reportagens. Divide-as em tipos e na categoria contar

contra o sistema reconhece um latino-americano, o também argentino

Rodolfo Walsh e seu documento histórico publicado em 1972, chamado

Esta poderia ser uma proposta de pesquisa coletiva. Tomar o livro do Herrscher como referência, atualizando-o com autores latino- americanos e recriando suas categorias.

Neste sentido, eu diria que há continuidade na pesquisa realizada na América Latina no que diz respeito aos estudos de jornalismo, que é a da crítica à comunicação hegemônica, das condições de produção e dos limites à liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, rompe com os princípios positivistas que orientaram a produção jornalística e assume a narrativa como referencial teórico e inspiração a novas produções.

A narrativa jornalística que ora exaltamos, de fato sempre existiu na forma de grandes reportagens do novo jornalismo produzidas em todo o mundo. Mas é significativo que pela primeira vez o prêmio Nobel de literatura foi para uma jornalista. Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear, A guerra não tem rosto de mulher e O fim do homem

soviético, livros escritos por Svetlana Aleksiévitch, publicados no Brasil

em 2016, são narrativas jornalísticas em que a autora assume seu lugar e dá voz aos que, até a publicação de suas reportagens virem a público, não tinham sido ouvidos.

Penso que também o sentido de crítica carrega as marcas do tempo. Se no princípio ficava no horizonte da crítica clássica, que julgava a partir de um quadro de referências do que era belo, verdadeiro e autêntico, nos encaminhamos para a crítica que se contenta em tornar inteligível o presente e suas representações. Por isso reúno em um mesmo feixe as narrativas jornalísticas e a pesquisa acadêmica produzida na América Latina. Os saberes diferem, mas se encontram pela ruptura com os referenciais positivistas e pela inclusão do Outro. O Outro que circula pelas bordas ou se encontra nas sobras da sociedade é que mobiliza as narrativas jornalísticas e suscita conceitos de identidade, alteridade e gênero na pesquisa acadêmica.

Referências

ALEKSIÉVITCH, S. Vozes de Tchernóbil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. ALEKSIÉVITCH, S. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

ALEKSIÉVITCH, S. O Fim do homem soviético. São Paulo: Companhia das Letras, 2016

CARDENAS, J.V. La Prensa em médio del crimen y la denuncia. México: Aguilar, 2016.

CITELLI, A.; BERGER, C.; BACCEGA, M. A.; LOPES, M.I.V.; FRANÇA, V. Dicionário de

Comunicação: escolas, teorias, autores. São Paulo: Contexto, 2014.

HERRSCHER, R. Periodismo Narrativo. Santiago do Chile: RIL Editores, 2009. MARTIN-BARBERO, J. De los medios a las mediaciones. Barcelona: Gustavo Gilli, 1987.

RESENDE, F. Às desordens e aos sentidos: a narrativa como problema de pesquisa. In: SILVA, G.; KÜNSCH, D.; BERGER, C; ALBUQUERQUE, A. Jornalismo

Contemporâneo: figurações, impasses e perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2011.

UNESCO. Um mundo e muitas vozes: comunicação e informação na nossa época. Rio de Janeiro: FGV, 1983.

3.

Introdução

Este texto aborda dimensões da pesquisa em Comunicação na América Latina por ângulos distintos, mas convergentes, ou seja, como nos vemos internamente e como somos vistos internacionalmente. Contudo, são feitas apenas aproximações a esse complicado tema. Ao alcançar a metade da escrita nos demos conta da difícil tarefa a que nos propusemos. As problemáticas levantadas são amplas, envolvem passado e presente, visões contrapostas e abundância de fontes de consulta, que juntadas tornam a tarefa complexa para se dar conta em apenas um despretensioso capítulo de livro. Em suma, o texto ora apresentado não é conclusivo e, talvez, possa servir como base para um “protocolo” de pesquisa futura, e desenvolvida por uma equipe colaborativa, dado o rico arcabouço que merece ser pesquisado no campo das ciências da Comunicação na América Latina.

É comum a defesa do campo científico da Comunicaçãonquanto área de conhecimento assentada na interdisciplinaridade como característica básica, além da assertiva sobre quase consensual sobre a diversidade temática e de objetos que o caracteriza. Também se verifica crescente

3

esforço de pensar a epistemologicamente a Comunicação , cujos debates

Visões da pesquisa latino-americana em

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