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Christopher Klofft: a mulher e a salvação do mundo

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 89-93)

CAPÍTULO I. PAUL EVDOKIMOV: VIDA E PRINCIPAIS REFERÊNCIAS

I. 2.3.1.1 Nicolas Gogol

II. 5 Christopher Klofft: a mulher e a salvação do mundo

Professor de teologia do Assumption College de Worcester, Massachussets e especialista em questões éticas, Cristopher Klofft realiza uma interessante análise do pensamento de Paul Evdokimov, a partir das percepções deste último acerca do processo de desenvolvimento moral do ser humano e os carismas específicos do homem e da mulher.

Para Cristopher Klofft, o pensamento de Paul Evdokimov é “notavelmente assistemático”, avesso, como ocorre com a grande maioria dos filósofos religiosos e teólogos russos, a toda normatização, porquanto esta lhes pareça portadora de um aprisionamento intolerável, uma esterilização da capacidade de tratar com o misterioso. Tal pensamento, ademais, não conta com uma estrutura perfeitamente reconhecível e delineada, o que o torna bastante difícil de organizar.

Entretanto, longe de ser desarticulado ou inconsistente, o pensamento de Paul Evdokimov, como adequadamente observa Klofft, se estrutura e mantém, de forma admirável, a partir da repetição constante e consistente de ideias e temas relevantes. Tal pensamento é mais uma série de esboços do que o produto de método universalmente estabelecido.

Valendo-se dos aportes fornecidos por outro estudioso de Paul Evdokimov, o teólogo vietnamita radicado nos Estados Unidos, Peter C. Phan, Klofft afirma existirem algumas diretrizes básicas para que se possa ler, com proveito, a obra de Evdokimov, a saber: a) não se deve tentar “hiperorganizar” o pensamento do nosso autor, já que, para o próprio Evdokimov, a definição excessiva equivale a um

158 Ibid., p. 279-280 159 Ibid., p. 284.

empobrecimento do mistério da fé; b) a melhor analogia para o pensamento de Paul Evdokimov é o de “desenvolvimento em espiral”: ideias recorrentes que circulam em volta de uma linha pontilhada e que assumem o movimento ascendente na medida em que o leitor progride no esforço de entendê-las em profundidade. A linha pontilhada, por sua vez, representa o processo inconstante de “desvelamento” do mistério: “momentos de escuridão epistemológica são atravessados por momentos de subida lucidez”;160 c) uma vez que Paul Evdokimov se propôs não apenas a

divulgar a ortodoxia no Ocidente, mas, sim, analisar este último, suas conquistas e mazelas, à luz daquela, é frutuoso, para melhor compreender o seu pensamento, cotejá-lo com as correntes de pensamento em voga na época em que Evdokimov viveu e escreveu.

Dialogando, por exemplo, com o existencialismo – sobretudo o sartriano – Paul Evdokimov, segundo Klofft, desenvolveu uma teologia da história, cujo foco não se dirige apenas ao “fim aqui embaixo”, mas, também - e sobretudo -, ao além; sua teologia não é, assim, uma teologia da náusea, mas, sim, uma teologia fundamentalmente escatológica que, inobstante não se recuse a tratar do sentido e do propalado absurdo da existência, é toda ela impregnada por aquele otimismo típico da ortodoxia – um otimismo de cariz sobrenatural.

A teologia evdokimoviana traz, ainda, em seu bojo, uma severa crítica do iluminismo, a partir de uma perspectiva espiritual. Para Evdokimov, como registra Klofft, enquanto o nascimento da Igreja ensejou, ao menos para os cristãos, o declínio das práticas mágicas – a influência dos demônios e espíritos sobre a humanidade -, o Iluminismo, com seus arroubos prometeicos, seu ideal de progresso e sua tecnologia, acabou por reduzir o ser humano à mera racionalidade, tornando a humanidade reconhecível apenas pelas obras materiais que, em ritmo cada vez mais frenético, passou a produzir. Para Evdokimov, tal processo determinou uma completa “masculinização” da sociedade, masculinização, esta, a ser entendida não nos moldes do heroísmo trágico dos gregos ou do destemor viril dos profetas hebreus, mas na acepção de profanação do misterioso, de objetivação da vida, ou, ainda, de insensibilidade ao sagrado.

Atento a tal processo de “masculinização” da sociedade, Paul Evdokimov, como anota Klofft, cuidou de desenvolver uma compreensão bastante original dos

160Christopher KLOFFT, Gender and the process of moral development in the thought of Paul Evdokimov. Theological Studies, vol. 66, 2005, p. 71.

papéis, ou carismas, do homem e da mulher no que ele denominava “história da salvação”. Esta é, na verdade, uma das culminâncias da antropologia evdokimoviana, um dos seus traços mais característicos.

Com efeito, para Evdokimov, inobstante sejamos homens ou mulheres, a relação que estabelecemos com Deus é, fundamentalmente, feminina, eis que dominada pela receptividade e pelo acolhimento. A ascese, com sua violência intrínseca – o domínio do corpo e das paixões – é, tão só, o primeiro estádio da experiência espiritual, constituindo-se em uma recuperação da porosidade ao Mistério; se, após tê-la empreendido, a alma não se tornou dócil e receptiva ao influxo divino, de nada terá valido a viril seara ascética por ela trilhada. Tanto assim é que a Theotokos – a serva humilde de Deus que se tornou mãe de Deus - é o símbolo por excelência da integral disponibilidade do ser humano a Deus, necessária para que Ele – se assim o quiser e por meio de Sua graça -, o chame a desfrutar, misticamente, de Sua presença.

Isto não quer dizer que, para Evdokimov, homens e mulheres tenham carismas ou inclinações idênticas. Bem ao contrário. Para ele, o papel do homem na economia da salvação é, essencialmente, ativo-escatológico, qual seja, o de testemunhar, corajosa e desapegadamente, mesmo diante da possibilidade do martírio, a vinda do Reino de Deus. João Batista é o “arquétipo” por excelência do masculino. O papel da mulher é insuperavelmente representado pela Theotokos, como visto acima. Cristo, por sua vez, é o modelo de integração entre estes dois polos, como representado, de forma exemplar, no ícone da Deisis – a suplicante – no qual Cristo é flanqueado por João Batista, de um dos lados, e pela Virgem Maria, de outro, como que a reunir, sinergicamente, em si próprio, ambos os carismas.

À luz dos diferentes papéis desempenhados pelo homem e pela mulher, na sociedade, Paul Evdokimov sustenta, como observa Klofft, que a salvação da sociedade virá por meio desta última. De fato, para Evdokimov, o homem, no seu afã realizador, tem a tendência de secularizar a sociedade; já a mulher, quando em harmonia com seus dons mais íntimos, tende a sacralizá-la. Além do mais, a mulher, na visão de Evdokimov, funciona como uma espécie de guia interior do homem, conduzindo-o por paragens internas até então inexploradas por ele:

O homem é chamado a submeter a terra, a cultivar o jardim, a mostrar o criativo e inventivo poder de sua mente... A mulher tem a

habilidade imediata e espontânea para compreender o que há de intangível na personalidade humana. Através dessa habilidade, ela auxiliar o homem a entender-se a si próprio, atualizando o sentido de seu próprio ser. Ela o completa decifrando o seu destino. É por meio da mulher que o homem se torna, mais facilmente, aquilo que é.161 Diante de tal realidade, a temática da união homem/mulher merecerá grande atenção de Paul Evdokimov, tornando sua obra especialmente atraente para aquelas pessoas que almejam ter uma existência espiritualmente rica, sem, todavia, abdicar do casamento.

Klofft registra, com acuidade, que, para Paul Evdokimov o casamento é um tipo de relação especial, entre homem e mulher, que reflete uma relação maior, entre a humanidade (aspecto feminino, receptivo) e Deus (aspecto masculino, ativo), constituindo-se, assim, em uma singular “escola” para o desenvolvimento individual. No âmbito do casamento, homem e mulher quando cientes da sacralidade da união, cuidam de praticar a castidade, o que não significa, em absoluto, a abstenção das relações sexuais, mas, em verdade, a “humanização” das energias animais do sexo e a reintegração das energias sexuais do homem e da mulher. Nestas condições, a paixão do sexo se transmuda em paixão do amor, e a “posse” do outro dá lugar à participação no divino, uma vez que o casamento, em tais condições, é a imagem da Criação:

Evdokimov tem na reintegração sexual do homem e da mulher um dos propósitos essenciais do casamento. No âmbito do casamento, o casal pratica a castidade, uma forma de ascese, para humanizar as energias animais do sexo. A “energia sexual” transforma-se, então, na espiritual “energia do sexo”. A paixão do sexo se transmuda em paixão do amor, que é a participação no divino. No momento em que as energias do sexo são sacralizadas, a imaginação é igualmente purificada, contribuindo, desta forma, para o crescimento individual. O processo de integração é auxiliado pela graça disponibilizada pelo sacramento. Ao invés de um impedimento para o indivíduo, a graça sacramental do casamento habilita alguém a utilizar o poder da energia sexual sem qualquer impedimento para o seu próprio crescimento espiritual.162

Klofft argumenta, com razão, que referida “ascese da sexualidade” nada tem a ver com moralismo, já que, para Evdokimov, o ascetismo não é um sistema de

161 Paul EVDOKIMOV, La mujer e la salvación del mundo, p. 258-259.

162 Christopher KLOFFT, Gender and the process of moral development in the thought of Paul Evdokimov. In: Theological Studies, vol. 66, 2005, p. 87-88.

regras morais, mas uma forma integral de viver destinada a tornar possível a “cristificação” do ser humano. Trata-se da busca pela restauração da imagem original – a Imago Dei -, uma verdadeira transfiguração do homem. O ascetismo, assim, embora não se confunda com código de regras, é, em Evdokimov, a base da vida moral, porquanto leve o ser humano a agir de dentro para fora, a partir de seus recessos mais íntimos e em harmonia com o verdadeiro sentido de sua vida. O matrimônio é um sacramento, e é justamente, pela sinergia entre prática ascética e observância dos sacramentos, permeada, tal conjunção, pela Graça de Deus, que a transfiguração do ser humano pode ocorrer.

II. 6. PETER C. PHAN: UMA TEOLOGIA ESCATOLÓGICA APTA AO DIÁLOGO

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 89-93)