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A santidade, expressão da theosis

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 129-134)

CAPÍTULO III. A ORTODOXIA, ACERCA DO CONHECIMENTO DE DEUS

III.6. A santidade, expressão da theosis

O cristianismo ortodoxo, perpassado inteiramente por uma mística do

affectus, tem como esteio fundamental a jubilosa - e, ao mesmo tempo, assombrosa

-, possibilidade de o ser humano, malgrado sua contingência e sua condição pecaminosa, experimentar Deus, não a Essência divina que, em sua incompreensibilidade e absoluta singularidade permanecerá sempre além dos mais altos voos do aparelho cognitivo humano, mas as energias de Deus, Seu aspecto operativo, o seu Sopro, desde sempre presente no mundo.

Este ensinamento, colhido do magistério dos Padres da Igreja e, em especial, do grande teólogo e místico Gregório Palamas, não deve ser compreendido enquanto construção teológica abstrata ou fino exercício retórico.

Quando, em sua cabana rústica, perdida em um ermo selvagem, com a fria neve metamorfoseando toda a natureza em uma imensa quietude branca, o santo russo do século XIX Serafim de Sarov é questionado acerca do propósito da vida cristã, por Motovilov, um homem cujo coração fervia em uma ânsia desordenada por Deus, sua resposta é de uma simplicidade arrebatadora: o objetivo da vida cristã é a aquisição do Espírito Santo. Boas obras e práticas ascéticas – apesar de louváveis e recomendáveis – não esgotam, de modo algum, o escopo misterioso da vida cristã. A purificação dos desejos e o refinamento do sentir são meio e não fim, já que sem a visita do Espírito Santo ao homem, sem que este último se negue, para que o Espírito possa se afirmar nele, a verdadeira existência em Cristo não terá se completado.

Diante de tal horizonte, algumas constatações de fundo se impõem a quem ouse esboçar uma “cartografia” da santidade, sob o prisma cristão oriental.

A primeira delas é a de, na tradição bíblica, o homem é convidado, pelo próprio Deus, a ser santo. “Sede santos como Eu sou santo”, reza o Levítico. Esta conclamação à santidade é, a um só tempo, a maior dádiva e o maior ônus que alguém, em um corpo corruptível, pode receber.

Sim, porque se a santidade é a manifestação da Glória de Deus em nós, por meio da atuação do Espírito Santo, ela é a redenção do ser decaído, frágil, inclinado ao vício e destinado, malgrado sua sede por poder, glória e perenidade, ao esquecimento e à morte. Como tal, nada parece ser mais desejável do que ela, parecendo mesmo ser, a santidade, uma vocação do destino humano.

Mas, então, por que, sendo muitos os chamados, poucos são os escolhidos? Por que – paradoxalmente e patologicamente – somos hostis ao que pode nos salvar de nós mesmos?

Na espiritualidade cristã ortodoxa, há uma ligação necessária entre o experimentar Deus e o falar de Deus, sendo que a experiência máxima de comunhão com Deus – ou de santidade - recebe o nome de theosis ou deificação. Trata-se de uma participação humana na vida divina, caracterizada por uma considerável intensificação das energias espirituais no homem, acompanhada por variada gama de carismas. Na theosis, o homem é chamado a tornar-se, pela graça, o que Deus é pela natureza. Santo Atanásio afirmava que o propósito da Encarnação era precisamente este: Deus tornou-se homem para que pudéssemos nos tornar Deus. Esta união Deus-homem não é de natureza substancial – caso do panteísmo, e nem, tampouco, hipostática – caso da Trindade -, mas, sim, energética, como bem assinalou Gregório Palamas ao distinguir a Essência de Deus – cognoscível somente pelo próprio Deus – e as operações ou energias de Deus, que são participáveis ao homem.

Tal participação do homem em Deus, porquanto represente o último degrau de elevação espiritual em um corruptível e inclinado ao vício corpo de carne – o barro recebe a dignidade régia, como lindamente afirma Nicolau Cabasilas - significa a ultrapassagem das possibilidades meramente humanas – nos âmbitos do amor, do conhecimento e da força espiritual -, por força do influxo divino, vale dizer, da visita que o Espírito faz àquele que sabe não ser santo.

Este é um aspecto fundamental e doloroso da trilha para a santidade. Com efeito, embora na tradição cristã ortodoxa se afigure induvidoso que a experiência- cume não possa prescindir do concurso do Espírito Santo, um papel é reservado ao homem neste processo. E qual seria ele? O de abraçar livremente e sem ressentimentos aquela via ascética constante da exortação realizada pelo Cristo à humanidade: “se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16:23-25; Mc 8:34-38; Lc 9:23-26).

Este é o caminho da ascese, um esforço sobre si mesmo visando à purificação das paixões. Remonta ao Apóstolo Paulo a comparação entre a disciplina interior tendente à obtenção da perfeição cristã àquela a que se impõem os atletas com o escopo de alcançar a vitória nas arenas esportivas. Clemente de Alexandria e Orígenes introduziram, posteriormente, no seio da cristandade

monástica, o termo “ascetismo”: askitis era o monge em luta diuturna consigo mesmo para polir o seu temperamento e purificar as paixões que o acometiam;

askitiria eram os monastérios, vale dizer, os locais onde tal treinamento se dava de

forma mais efetiva. São Nilo, o Asceta, em sua obra “Sobre o Ascetismo”, não hesita em comparar o asceta espiritual ao atleta na arena; a ideia de esforço sobre si mesmo, de tensão entre a inclinação ao vício e a prática da virtude, entre a busca pelo abandono do homem velho, o que caiu com Adão, e o homem novo, o que almeja ressuscitar com Cristo é, pois, central na ideia cristã de ascetismo.

Entretanto, o ascetismo, por si mesmo, é insuficiente para a deificação. É ele o esforço humano para o alcance do primeiro grau da perfeição, entendida, esta, como a contemplação da luz incriada ou tabórica e a união com as energias de Deus.

O ascetismo é a parte ativa da vida espiritual, uma necessária auto-inspeção e atuação sobre si mesmo, visando a confrontar e, na medida do possível, vencer os demônios que nos apartam da integração com Deus e nos fragmentam em mil pedaços, dolorosamente dispersos um do outro.

Já a união mística propriamente dita, porque dependente da graça divina, demanda, daquele que ardentemente a busca, uma condição passiva, de rendição amorosa a Deus; longe, porém, de uma inércia indolente ou de um afrouxamento da vontade, tal postura se funda na percepção profunda de que os píncaros da experiência unitiva não têm sua fonte no homem, mas, tão somente, em Deus.

Segundo Máximo, o Confessor, o ascetismo é a forma pela qual nossa natureza se libera do cativeiro; é a destruição da morte.

Entretanto, a destruição da morte – ou a aquisição da santidade – reclama, paradoxalmente, a morte de quase tudo que nos é caro. Daí porque as exigências da santidade beiram o insuportável às forças e aos apetites humanos.

De fato, o negar-se a si mesmo implica em uma confrontação com as enfermidades da alma, ou os oito logismoi ou maus pensamentos, na linguagem de Evágrio Pôntico: a gula, a fornicação, a avareza, o desânimo, a cólera, o desespero ou o abatimento radical do espírito, a vanglória e o orgulho. É extremamente dificultoso confrontar tais demônios e mais ainda vencê-los, porquanto a origem de todos eles radique no amor a si mesmo, na filautia, na pretensão de autonomia ontológica com relação a Deus, no ressentimento babélico fundado na pretensa injustiça de sua condição de dependência.

Assim, as exigências da santidade beiram a insuportabilidade por conta desta necessária confrontação do ser humano com os vícios que lhe são caros e que, de tão aderidos à sua natureza, reagem violentamente à tentativa de serem extirpados da alma.

Não bastasse, a santidade também pode se revelar insuportável quando analisada sob o prisma do tratamento que o mundo carnal dispensa ao santo. Tal tratamento pode variar entre a violência, a segregação, a humilhação e o desprezo. Certo é que, geralmente após morrerem, os santos, pouco a pouco, vão se tornando modelos de virtude. Entretanto, quando em vida, o sofrimento é seu mestre e companheiro.

No cristianismo ortodoxo russo, por exemplo, conhecem-se três tipos de santos: o sofredor, ou strastoterpets, o “louco por Cristo”, ou yurodivi, e o staretz.

214O primeiro se caracteriza pela aceitação resignada – mas não sem angústia e

sofrimento - de uma morte violenta que lhe é imposta injustamente. Aqui cabe uma diferença entre o sofredor – como o entende o cristianismo ortodoxo russo – e os mártires cristãos dos primeiros tempos. Enquanto os mártires são heróis da fé, que enfrentam a morte sem medo ou até mesmo a provocam para demonstrar a inflexibilidade de sua fé, os sofredores russos, embora se submetam fielmente à vontade de Deus, experimentam dura e humana agonia, como aquela experimentada pelo Jesus-Homem, no Getsemani; o santo russo, na modalidade “sofredor”, é um ser humano em agonia que, todavia, busca manter-se fiel à conclamação evangélica de mansidão, submissão filial a Deus, amor fraterno ao inimigo até o último golpe da lâmina que o faz jazer em uma poça de sangue; seu desejo é o de imitar, tanto quanto lhe permitir sua fraca constituição humana, a paixão e a morte voluntária de Cristo; sua íntima certeza é a de que a morte livremente aceita em favor dos irmãos tem o condão de apagar os pecados.

O segundo, o “louco por Cristo”, se distingue por confrontar a sabedoria humana, de tal forma que sua figura é associada à de um tolo, um ingênuo ou uma criança. O “louco por Cristo” é, à evidência, humilhado seguidamente pelo mundo, mas o seu objetivo é o de alcançar tal simplicidade de espírito que, com isso, nele morra o homem velho e nasça o homem novo, acompanhado de uma sabedoria também nova, de natureza sobrenatural, uma sabedoria do coração diversa do que

poderíamos denominar a “razão razoável”, da qual fazem uso os que se julgam sãos, mas que não deixam um lugar, em si, para a experiência de Deus. A “loucura por Cristo” se assenta no ensinamento de Jesus, no sentido de que o mistério do Reino dos Céus é revelado não aos sábios e aos inteligentes, mas, sim, aos simples e às crianças. Não se tem, aqui, em verdade, um desapreço pela inteligência, mas uma crítica severa à inteligência humana que julga bastar-se a si própria. Ao confrontar, com seu comportamento, a percepção de que a razão humana é a senhora de todas as coisas, o “louco por Cristo”, conhece, obviamente, a humilhação e o desprezo, por parte do mundo; ao desprezar o mundo, suas regras e seus ídolos, é, para o mundo, um idiota, quase um amental.

O terceiro tipo de santo, sob a perspectiva do cristianismo ortodoxo russo, é o statetz, ancião ou pai espiritual. Trata-se do monge que, em meio a uma vida ascética e de oração, experimentou singular amadurecimento espiritual, tornando- se, assim, capaz de orientar as pessoas que o procuram na busca da perfeição espiritual cristã. O staretz é o conselheiro, o sábio, o portador de um discernimento sobrenatural e da capacidade de realizar milagres. É a reunião, em uma só pessoa, das profundezas quase sempre ocultas de uma vida interior intensa e de uma atuação caritativa no mundo. Apesar de beber no ensinamento dos Padres da Igreja, o staretz é, antes de tudo, alguém que haure os seus ensinamentos diretamente de sua prática ascética; interessa-lhes menos a especulação cosmológica e antropológica do que o orientar os demais a partir da experiência direta do Espírito Santo. Seu norte é o amor fraterno e a ponderação quanto às práticas ascéticas; seu bastião é a recitação constante da oração de Jesus e sua aspiração maior é a união a Deus pela graça do Espírito Santo. O drama maior do staretz é que, como pai espiritual, ele se responsabiliza, perante Deus, pela salvação daqueles pelos quais se sente responsável. O staretz Paisij Velitchkovsky, por exemplo, dizia sentir uma profunda dor e doença na alma, pensando em como compareceria ao julgamento final, na condição de alguém que teria que prestar contas a Deus acerca das almas das pessoas que haviam se confiado a ele.

O extraordinário é que, apesar de enfrentar toda esta tensão de vontade, de experimentar o sofrimento em um nível exponencial, o santo – para o Cristianismo Ortodoxo -, tem, como marca distintiva, a alegria e a paz interior, de contornos sobrenaturais. A hagiografia diz que o semblante de São Serafim de Sarov era alegre e luminoso como de um anjo.

Talvez o grande segredo do santo seja a percepção de que o maior sinal da ação da graça esteja, como dizia São Serafim, em uma vida ordenada em paz, em meio ao caos, a desordem e a violência do mundo, bem como que, ele, o santo, pela graça de Deus, possa reconduzir, ao bom caminho, almas extraviadas e sofredoras. Tornou-se célebre nos meios ortodoxos a exortação do Santo de Sarov a todos os cristãos: “Adquire a paz espiritual e mil almas em torno de ti encontrarão sua redenção”.

De fato, as exigências da santidade são quase inatendíveis. Mas, quando isto ocorre, até as flores mortas e putrefatas tornam a desabrochar.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 129-134)