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Dogma e supralógica

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 125-129)

CAPÍTULO III. A ORTODOXIA, ACERCA DO CONHECIMENTO DE DEUS

III.5. Dogma e supralógica

Assevera Bulgakov que a Igreja Ortodoxa tem apenas um pequeno número de definições dogmáticas, que integram a profissão de fé mínima para todos os seus membros: o credo niceno-constantinoplitano, o qual é lido durante o serviço batismal e a liturgia, bem como as definições dos sete Concílios Ecumênicos. Isto não significa – adverte-nos ele – que tais documentos tenham o condão de exaurir toda a doutrina da Igreja; indica, por outro lado, que o restante dos ensinamentos da ortodoxia não foi estabelecido na forma de dogmas. Assim:

Esta é, de forma geral, o método ortodoxo de aproximação (das questões teológicas); ele se contenta com o minimum indispensável de dogmas obrigatórios. Isto é o oposto do catolicismo romano o qual

205 Paul EVDOKIMOV, La conoscenza di Dio secondo la tradizione orientale, p. 102. 206 Cf. Paul EVDOKIMOV, O Espírito Santo na tradição ortodoxa, p. 22.

tende à formulação canônica de todo um inventário dogmático da Igreja. Isto não quer dizer que novas fórmulas dogmáticas sejam impossíveis no Oriente, fórmulas a serem fixadas por novos conselhos ecumênicos. Porém, estritamente falando, o minumum já existente constituiu uma base inamovível suficiente para o desenvolvimento da doutrina, sem a necessidade da elaboração de novas formas dogmáticas. 207

Mas o que estaria a justificar esta preferência da ortodoxia por um “minimum dogmatizado”? A resposta para esta questão parece estar no caráter apofático do dogma: “toda afirmação humana é uma negação dela própria, porquanto, estando abaixo do pleroma, jamais alcance o ‘fundo’ último, sendo justamente esta insuficiência natural que a nega”.208

Paul Evdokimov observa que a palavra “dogma”, em grego, significa “verdade indiscutível” e, em uma perspectiva histórica, liga-se à defesa, por parte da Igreja dos primeiros séculos, da defesa da fé frente a inúmeras heresias que ameaçavam corromper a religião nascente. Esta defesa, entretanto, foi vista, pelos Padres Gregos, quase como um pecado maior do que aqueles que estavam eles a combater: falar dos abismos divinos com a precária linguagem humana lhes parecia, no mínimo, uma temeridade. Assim:

Manchados com o sangue dos mártires, os dogmas se reportam unicamente àquelas questões de vida e morte, tal qual dito no final do Evangelho de São João: tudo está longe de ser relatado, mas o que é revelado é suficiente para a salvação, qual seja, ‘o único necessário’ do Reino. (...) De outra parte, diante da ‘maré montante’ de falsas doutrinas, a Igreja teve,desde os primórdios de sua existência, que defender a pureza e a integridade do ‘depósito doutrinário’ e de opor, à toda heresia, o consenso dos concílios apostólicos. Contudo, se a teologia trinitária agostiniana progrediu, no Ocidente, desde o início, com a maior confiança na razão humana, o pensamento Greco, ao contrário, se abismou no silêncio da apófase diante do Mistério. Os capadócios protegeram a forma dogmática, mas não a explicitaram; eles não falaram do mistério trinitário a não ser em suas obras de apologia. Santo Hilário exprime bem esta necessidade: “o engano dos heréticos e blasfemos nos força a fazer coisas ilícitas, a galgar os cumes inacessíveis, a falar sobre temas inefáveis, a formular as explicações interditas”. Deveria ser suficiente fazer, simplesmente pela fé, o que está prescrito, qual seja, adorar o Pai, venerar, juntamente com Ele, o Filho, e nos preencher do Espírito Santo. Mas eis que aqui somos nós obrigados a aplicar nossa humilde palavra ao mistério mais inenarrável. A falta dos outros nos faz cometer, nós mesmos, outra falta, qual seja a de

207 Sergius BULGAKOV, The Orthodox Church, p. 100. 208 Paul EVDOKIMOV,

expor aleatoriamente, a partir de uma linguagem humana, os mistérios que deveriam permanecer contidos na religião de nossas almas. 209

Dentre os Pais da Igreja do Oriente, São Basílio e São Gregório Nazianzeno criaram “métodos” para o “entendimento” dos dogmas e a justificação destes.

Em São Basílio, a ênfase é na tradição secreta, extra-escritural, derivada dos Apóstolos e justificada pela autoridade que, na condição de partícipes da caminhada de Cristo na Terra, gozam eles.

Para São Gregório Nazianzeno, o que merece destaque é a revelação progressiva de Deus, que opera em harmonia com a receptividade humana, já que Deus não constrange ninguém a amá-Lo de pronto. Segundo este Pai da Igreja, depois da época da Lei (O Antigo Testamento) e do advento do Evangelho, a Cristandade vive uma terceira fase, dominada pela explicitação, por parte de Deus, da Revelação do Evangelho, por meio da experiência da Igreja (sacramentos, liturgias, confissões de fé e definições dogmáticas). Estas últimas, todavia, não são retiradas diretamente das Escrituras, consistindo, ao revés, de verdades ligadas à experiência de Deus e à Sua revelação progressiva dada à Igreja.210

De toda sorte, no Oriente Cristão, o dogma jamais foi visto como um produto vitorioso da razão humana, mas, ao contrário, como uma afirmação que, ultrapassando a lógica e expressando antinomias, desafia esta mesma razão a superar-se, convidando-a ao silêncio apofático:

Ao lado da poesia litúrgica e do discurso imagético das homilias, a Igreja criou a linguagem metalógica e antinômica dos dogmas, os quais são dotados de uma precisão estarrecedora. Isto não é jamais filosofia pura, nem mesmo religiosa, tendo em vista que os dogmas repousam não sobre as ideias, mas sobre as realidades divinas e, ao desenharem um ícone verbal, apreendem a “palavra interior”, da mesma forma pela qual o ícone apreende a “forma interior”. Com relação à lógica e ao pensamento, todo dogma é simbólico; seu conjunto constitui o símbolo da fé, a síntese das antíteses das realidades existentes.211

Se Deus é o “Todo Outro”, não passível de comparação com qualquer outro ser, porquanto radicalmente transcendente ao mundo, a palavra humana é

209 Ibid., p. 173-174.

210 Cf. Paul EVDOKIMOV, Le Christ dans la pensee russe, p. 7-8. 211 Ibid., p. 174.

inadequada para descrevê-Lo. Toda palavra humana se contradiz ao se referir a algo que a ultrapassa. Tudo que é pensado, enunciado, fixado, objetivado está em uma situação de indigência, de incompletude, com relação ao seu “objeto”, já que a coincidência dos opostos se dá somente em Deus.212 Daí porque os dogmas não sejam considerados ‘palavras humanas’, e, como tal, não estejam sujeitos à lei da identidade e da não contradição; neles inexiste a escolha entre um ou outro; ambos são, em plenitude, a um só tempo. A linguagem na qual se encontram, eles, vazados, é metalógica e antinômica; a lógica não a aprisiona e a razão conceitual não é sua senhora.

Certo é que o dogma, na perspectiva ortodoxa, é considerado como a expressão de uma verdade cristalizada, definida e proclamada como tal. Entretanto, em um nível mais sutil do que aquele histórico-político – o do silenciamento das ditas “heresias” doutrinárias tão presentes nos primeiros tempos da Igreja – o dogma cumpre um escopo essencialmente espiritual. Metalógico e antinômico – como se disse – o dogma convida o homem a sondar – pela transformação de si próprio, pela metanóia -, o Mistério que jaz oculto por trás dos paradoxos alojados em seu aporético enunciado. O dogma, destarte, tem uma função negativa – a de tornar clara a insuficiência do conhecimento “catafático” de Deus – e uma função positiva, qual seja, a de “impelir” o homem à trevosa ignorância douta, na qual o sublime encontro se faz possível. Na bela síntese de Evdokimov:

Por esta visão, os dogmas aparecem em seu verdadeiro significado: sua forma negativa torna relativa toda teologia dos conceitos, ou “teologia dos símbolos”, e, de outra parte, sua forma positiva postula a mudança, a metanóia do espírito humano diante da treva, franja da luz divina. No limite, ensina-nos São Simeão,o teólogo é conduzido à “teologia dos indizíveis silêncios, ao Silêncio pleno do Verbo; os dogmas – palavras divinas – o descobrem e traçam o itinerários das ascensões.213

Nesta linha, parece possível afirmar que o dogma é acolhido pela fé, desde que se entenda, esta última, não como uma simples adesão intelectual, mas, sim, como uma transformação total do ser humano, uma transformação, deste, em nova criatura, em “homem novo”.

212 Cf. Paul EVDOKIMOV,

L’Orthodoxie, p. 175.

213 Paul EVDOKIMOV,

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 125-129)