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PARTE I. ELEMENTOS CONCEITUAIS FUNDAMENTAIS PARA A REFLEXÃO ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE INDIVÍDUO E CULTURA

Capítulo 1. A ideia de história natural

1.4. Ciência e arte

Mas se esse é o caminho percorrido pelo esclarecimento, recorrer ao saber que a arte proporciona seria a alternativa para o psicólogo em busca de superar a repetição da natureza. No progresso do esclarecimento, ciência e arte se separaram de modo a se tornarem administradas. Essa antítese que se formou as coloca como opostos, segundo Horkheimer e Adorno, graças às suas próprias tendências:

Com a nítida separação da ciência e da poesia, a divisão de trabalho já efetuada com sua ajuda estende-se à linguagem. É enquanto signo que a palavra chega à ciência. Enquanto som, enquanto imagem, enquanto palavra propriamente dita, ela se vê dividida entre as diferentes artes, sem jamais deixar-se reconstituir através de sua adição, através da sinestesia ou da arte total.68

De fato quando se quer tecer críticas à psicanálise normalmente seus opositores a chamam de literatura. Muitos psicanalistas veem hoje como um elogio a designação de arte dada à psicanálise. Todavia, eles não percebem que como arte a psicanálise é pobre, assim como Freud não percebia que como ciência tradicional, para a qual gostaria que convergisse sua produção, sua teoria estaria condenada a uma mesmice que em nada a diferenciaria da ciência que se tornou esteticismo, conjunto de signos que não transcende a aparência.

No entanto, vale a pena questionar se a separação que Horkheimer e Adorno descrevem entre imagem e signo é válida para a psicanálise, pois ela não é somente arte, bem como não é somente ciência. É inegável que ela realiza uma verdadeira exposição artística dos traumas, como mostram os casos clínicos de Freud.69 Outra pergunta importante para se refletir é se a existência de uma teoria capaz de uma exposição artística não se deve ao seu criador, Freud, e se seus sucessores têm sido capazes de tal feito.

A obra de arte se destaca do real por que as leis que a regem são diferentes daquelas do real. Ela se torna autônoma, mas em seus materiais a história esquecida da

68 Ibidem, p.31.

69 Uma discussão sobre essa questão é feita em A. M. Carone, A lucidez imperfeita: ensaio sobre Freud como escritor, (Tese de Doutorado), 2008.

humanidade se sedimenta e graças à arte ela ganha expressão. Assim, as obras de arte podem dizer algo do real sendo diferente dele. A arte, de maneira semelhante ao indivíduo da interpretação freudiana, se constitui como mônada. Mesmo a própria psicanálise é semelhante à arte nesse aspecto, já que ela se constitui como teoria capaz de manter vivas as tendências humanas que o progresso da civilização obrigou a ocultar:

Que as obras de arte, como mônadas sem janelas, “representem” o que elas próprias não são, só se pode compreender pelo fato de que sua dinâmica própria, a sua historicidade imanente enquanto dialética da natureza e do domínio da natureza não é da mesma essência que a dialética exterior, mas se lhe assemelha em si, sem a imitar. 70

Essa maneira da obra de arte se constituir contrasta com a ciência tradicional, cuja linguagem não expressa algo além da aparência e do imediato. Esse contraste entre a expressão na esfera social da arte em relação à ciência esclarece ainda mais por que a obra de arte é importante para o estudo do indivíduo:

Na imparcialidade da linguagem científica, o impotente perdeu inteiramente a força para se exprimir, e só o existente encontra aí seu signo neutro. Tal neutralidade é mais metafísica do que a metafísica. O esclarecimento acabou por consumir não apenas os símbolos mas também seus sucessores, os conceitos universais, e da metafísica não deixou nada senão o medo abstrato frente à coletividade da qual surgira.71

O que a psicologia científica não deveria ser é neutra, imparcial. Sua parcialidade deveria consistir em dar voz ao impotente ao contrário de simplesmente reproduzir o existente. Menos metafísica do que a ciência tradicional, a psicanálise seria mais científica do que a psicologia positivista. A neutralidade da psicologia positivista é puro conformismo, anistórica, sem memória e sem expectativas.

Nem filosofia, nem as artes podem hoje, sozinhas, como resultado da divisão social do trabalho, conhecer a realidade. Podem, porém, colaborar para tal conhecimento. O exemplo é dado pelos autores ao analisar, em uma obra filosófica, a obra literária de Homero, em busca da gênese do indivíduo burguês. Compreendem, por exemplo, que o

70 T. W. Adorno, Teoria estética, p.16.

canto da Odisseia em que há o relato do encontro de Ulisses com as sereias conserva o entrelaçamento de mito, dominação e trabalho. A dominação interna que leva à resignação do trabalho é antiga. Cientes disso, Horkheimer e Adorno procuram mostrar essa dominação por meio de um documento histórico.

A sedução das sereias consiste em fazer com que aqueles que ouvem seu canto se deixem perder, devido à sua sedução. Mas o herói não se deixa perder porque às custas de sofrimento, “por entre perigos mortais”, forjou seu eu.

A Odisseia mostra o momento em que a arte começa a se separar da práxis. O canto das sereias é arte que mostra as possibilidades aos homens, mas a este interessa apenas conservar-se: “A ânsia de salvar o passado como algo de vivo, em vez de utilizá- lo como material para o progresso, só se acalmava na arte, à qual pertence a própria História como descrição da vida passada.” 72

Na Odisseia há a denúncia de um sacrifício que é bastante para impedir a constituição do indivíduo autônomo: não dar ouvidos às possibilidades do presente e abandonar o passado como algo que atrapalha, um peso morto, é a forma encontrada para garantir a autoconservação:

Amarrado, Ulisses assiste a um concerto, a escutar imóvel como os futuros frequentadores de concertos, e seu brado de libertação cheio de entusiasmo já ecoa como um aplauso. Assim a fruição artística e o trabalho manual já se separam na despedida do mundo pré-histórico. A epopeia já contém a teoria correta. O patrimônio cultural está em exata correlação com o trabalho comandado, e ambos se baseiam na inescapável compulsão à dominação social da natureza.73

Todavia, Horkheimer e Adorno são de uma época em que havia frequentadores de salas de concertos interessados em arte e mesmo fruição artística. Isso também já ficou para trás: já não há brado de libertação entusiasmado. O véu da segunda natureza se torna um concreto armado e difícil de ser abalado. E a psicologia reforça a ideologia quando tapa os ouvidos dos homens com discursos que os fazem remar sem direção para um futuro catastrófico. Os antidepressivos, o medicamento para a concentração, o discurso ingênuo contra as drogas, sobre educação e sobre o mundo do trabalho continua a

72 Ibidem, p.35. 73 Ibidem, p.45.

ensurdecer aquele a quem deveria defender pelo fato de que o barco social ruma em um sentido preocupante:

Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz. Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a assemelhá-lo de novo ao mundo dos anfíbios.74

O estudo científico do indivíduo revela como ele está constituído hoje ou, na melhor das hipóteses, como se constituiu. A ciência cada vez mais procura pelo raio-X de seu fenômeno, sua imagem fiel detalhada, mas sempre imobilizada. Esse método não lhe permite apreender a regressão do homem “ao mundo dos anfíbios” que os autores assinalam. Quando se trata do objeto da psicologia, talvez seja necessário ir além do empírico imutável:

O que essencialmente distingue as obras de arte como conhecimento sui

generis do conhecimento científico consiste no seguinte: em que nada de

empírico permanece imutável, em que os conteúdos objetivos adquirem um sentido unicamente enquanto que fundido com a intenção subjetiva.75

Por outro lado, a ciência como a de Freud é necessária para uma teoria social que comporte um conceito justo de indivíduo. A teoria deveria mediar o caminho para a emancipação, já que “uma verdadeira práxis revolucionária depende da intransigência da teoria em face da inconsciência com que a sociedade deixa que o pensamento se enrijeça”.76

74 Ibidem, p.47.

75 T. W. Adorno, Lukács y el equivoco del realismo, in G. Lukács; T. W. Adorno; R. Jakobson; E. Fisher; R. Barthes, Realismo: Mito, doctrina o tendência histórica?, 2002, p.35.