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PARTE II. O INDIVÍDUO EM O PROCESSO, DE FRANZ KAFKA, E ALGUMAS RELAÇÕES COM FREUD

Capítulo 4. Kafka e Praga

4.1. Os processos do tempo de Kafka

Seria tarefa impossível abarcar temas sociológicos neste estudo, mas é preciso apenas lembrar algumas questões que estão fortemente ligadas à motivação da escritura de O processo, já que elas se relacionam com a imagem do indivíduo que se busca ressaltar aqui. Uma delas se refere ao olhar atento de Kafka em relação a alguns processos de seu tempo.

O processo tem recebido muitas interpretações fortemente conformistas, como por exemplo, a de que Josef K. é efetivamente culpado e que sua condenação é legítima. Um exemplo é dado por Erich Heller ao afirmar que Josef K. foi condenado porque de fato houvera ofendido a lei terrivelmente: “há uma certeza que não foi tocada pela parábola nem por qualquer outra parte do livro: a lei existe e Joseph K. tê-la-ia transgredido da maneira mais terrível, pois, no final, é executado com uma faca de açougueiro de lâmina dupla – sim, de lâmina dupla – que é enterrada em seu coração e lá dá duas voltas”248.

Esta seria uma interpretação acerca da passagem “Diante da lei”. Se aplicada essa hipótese aos acontecimentos do século XX poder-se-ia dizer que se uma pessoa ou milhões de seres humanos são executados pelas autoridades é devido ao fato de que fizeram algo terrível contra a lei. E no livro de Kafka não há nada que possa sugerir um desrespeito de Josef K. contra a lei.

O fato fundamental do romance de Kafka é exatamente a falta de qualquer explicação das razões do processo e a recusa de todas as instâncias legais em também

246 Ibidem, p.60.

247 Para esclarecimentos biográficos sobre Kafka ver E. Pawel, O pesadelo da razão: Uma biografia de Franz Kafka, 1986; e também M. Brod, Franz Kafka, s/d.

fornecer alguma. Esse jogo constituído pela ocultação das razões do processo e recusa dos agentes da lei, em contraste com a procura do herói pela sua acusação e defesa, de início desdenhosa e depois incisiva, perfaz o eixo central do livro: a justiça fora do alcance do indivíduo, mas que ainda espera pela realização da justiça; essa é a menina dos olhos de Kafka que sempre ajuda a compor seus enigmas.

Todas as explicações que tentam fazer de Josef K. um merecedor do processo fere o sentido do primeiro parágrafo do livro: “Jemand musste Josef K. verleumdet haben, denn ohne dass er etwas Böses getan hätte, wurde er eines Morgens verhaftet.”249

(Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum.250)

Porém, as coisas se complicam se levado em consideração o fato de que essa afirmação não é derivada da subjetividade do herói, mas sim oriunda do narrador, que é insciente251, já que ele sabe tanto quanto o herói a respeito dos fatos. Outro ponto que dificulta a questão e aumenta o enigma da obra é a passagem em que não o narrador, mas o guarda incumbido da “detenção” afirma que as autoridades, “conforme consta na lei, são atraídas pela culpa.”252 Claro que aí também se pode questionar quem são essas

autoridades e que lei é essa a partir da qual uma pessoa é tida como culpada. Ora, a forma como Kafka constrói o relato, com esse tipo de narrador que pouco sabe e colocando afirmações como essa na voz dos representantes das autoridades fornece elementos para questionar a própria validade das leis que regem a relação entre os homens.

A impotência do narrador em Kafka em nada perturba a vitalidade do narrado. Seu narrador insciente é técnica literária, compõe um elemento essencial de sua denúncia devastadora de um mundo de seres alienados, e ainda com especificidade histórica. Nenhuma capacidade de antecipação do que está por vir na intriga; nenhuma memória do passado; um presente opaco em que o narrador sabe tanto quanto o leitor; tudo isso veste

249 F. Kafka, Der Prozess, 2006, p.5.

250 F. Kafka, O processo, 1997, p.7. Todas as traduções para o português da obra de Kafka usadas nesta pesquisa são de Modesto Carone.

251 Conforme o denominou M. Carone, Kafka e as armadilhas da certeza, in Jornal de Psicanálise, 2003. 252 F. Kafka, O processo, 1997, p.12.

roupa justa à expressão de um artista que com seus punhos, que são “pilões a vapor”, como diz Adorno, desmoronam o carcomido entravamento da sociedade burguesa.

Autores como Hanna Arendt, segundo Löwy, entenderam a possibilidade interpretativa de que a lei nada tem a ver com justiça, como uma chave para a crítica do funcionamento da máquina burocrática na qual o herói é inocentemente pego. E para Brecht, Kafka teria previsto o funcionamento da justiça dos estados totalitários do século XX.253

Porém, não se tratava apenas de perspicácia para perceber tendências, pois mesmo em sua época Kafka teria acompanhado estreitamente os grandes processos anti-semitas, conforme mostram sua correspondência a sua noiva Felice e seu próprio diário, processos que já na época eram exemplos de injustiça: o processo Tisza (Hungria, 1882); o processo Dreyfus (França, 1894-99); o processo Hilsner (Chekoslovakia, 1889-90) e o processo Beiliss (Russia, 1912-13). Alguns especialistas dizem que o processo Dreyfus é o caso arquetípico da corte judicial que é pano de fundo de O processo; e o caso Beiliss, ocorrido às vésperas do início da redação da obra de Kafka, cuja discussão era tão frequente nos jornais de Praga, ao ponto de ser simplesmente abreviado como Der Prozess.254

Não se pode, enfim, descurar na leitura de O processo desse forte elemento objetivo, que certamente vai se somar a outros aspectos importantes, como por exemplo, o fato de Kafka ser educado numa cultura germanista, responsável pela sua língua materna; ser influenciado também pela cultura tcheca, que o envolvia por todos os lados; estar imerso no judaísmo, pois além de ser judeu, sua presença era muito sentida em Praga; e viver sob o regime e cultura do império austríaco. As perseguições aos judeus observadas de perto por Kafka e sua condição sui generis como judeu em Praga lhe forneceram elementos para uma perspectiva muito aguçada tanto acerca da relação entre os homens como da justiça que os mediava em sua época.

253 M. Löwy, Franz Kafka’s Trial and the Anti-Semitic Trials of his time, 2009, p.152. 254 Ibidem, p.155.