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Ciência e literatura em A carta roubada, de Edgar Allan Poe

PARTE I. ELEMENTOS CONCEITUAIS FUNDAMENTAIS PARA A REFLEXÃO ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE INDIVÍDUO E CULTURA

Capítulo 1. A ideia de história natural

1.5. Ciência e literatura em A carta roubada, de Edgar Allan Poe

The Purloined Letter é um conto de Poe escrito em 1844. Desde então ela se tornou objeto de reflexão para muitos críticos e com o surgimento da psicanálise também acabou sendo material de análises psicanalíticas. Ainda na época de Freud houve o caso de Marie Bonaparte, cujo livro recebeu o prefácio de Freud.77 Mas talvez o caso mais famoso seja a análise de Lacan que abre os seus Escritos, análise em que faz uma interpretação psicanalítica do conto, se interessando apenas em um fragmento do mesmo para a partir dele elaborar algumas questões acerca de sua teoria da identificação.78

Mas sem intencionar uma psicanálise do texto, o conto de Poe ainda tem muito a oferecer. Por exemplo, é possível encontrar nele uma crítica à separação das esferas do saber, exatamente a questão de interesse nesta pesquisa.

O local onde decorre a história é Paris e ela se inicia com Auguste Dupin na biblioteca de sua casa na companhia de seu amigo, o narrador não identificado da história. Logo no início lhes chega uma visita, o Senhor G., o chefe de polícia de Paris em busca de conselhos de Dupin para solucionar um caso que ele julga ser simples, porém estranho. Trata-se de uma carta que foi roubada pelo Ministro D. de um membro da realeza e que seria usada como meio de chantagem para obtenção de vantagens políticas. O chefe de polícia, que receberia uma recompensa da pessoa roubada caso reouvesse a carta, disse já ter feito às escondidas e minuciosamente a revista da casa do ministro sem nada encontrar. Dupin diz-lhe não restar nenhuma sugestão que ele pudesse lhe dar. O chefe de polícia os deixa, então, profundamente abatido.

Decorrido um mês, ainda sem obter a carta e sem nenhuma ideia do que mais poderia fazer no caso, o chefe de polícia volta a procurar Dupin dizendo que pagaria 50 mil francos a quem encontrasse a carta. Dupin, então, pede que ele lhe pague a quantia e lhe entrega a carta, de maneira a surpreender a todos.

Após a saída do chefe de polícia, totalmente desconcertado, Dupin explica ao amigo como ele resolveu o caso. O fato é que o chefe de polícia subestimava o ministro

77 S. Freud (1933), Prefácio a A vida e as obras de Edgar Allan Poe: uma interpretação psicanalítica, de Marie Bonaparte, in Obras completas, v.XXII, 1996.

por ele ser um poeta, característica que colocava o ministro aos olhos do funcionário apenas a “um degrau acima da tolice”; além disso, o chefe de polícia confiava em demasia nas estatísticas de sua profissão, nos padrões que julgava conhecer de ocultação de objetos por criminosos, na ciência matemática. Todavia, não considerou que o ministro era também um matemático, além de ser um poeta, e como tal poderia agir com uma simplicidade estranha ao chefe de polícia.

Desconfiado, Dupin foi então visitar o ministro, com quem mantinha relações sociais. Observou na casa, enquanto conversavam, um porta-cartão pendurado na lareira, com um documento que lhe pareceu ser a carta procurada, baseado em algumas características que lhe foram fornecidas pelo chefe de polícia e em algumas inferências.

Ao sair do apartamento deixou propositalmente sua tabaqueira de ouro com o intento de retornar outro dia. Voltou para buscar seu objeto munido de uma cópia exata que havia feito da carta. Havia contratado uma pessoa para fazer alguns disparos com uma pistola abaixo da janela do ministro em um certo momento, como se estivesse em curso um tiroteio. Quando o ministro chegou à janela para observar o que se passava, Dupin trocou a carta pela sua cópia e ainda, como vingança por uma peça que o ministro lhe pregara em Viena havia alguns anos, deixou-lhe uma frase escrita na cópia a qual remetia àquela ocasião.

Nesse conto engenhoso de Poe pode-se perceber a relação entre arte e ciência colocada categoricamente em questão. Enquanto o chefe de polícia permanece restrito em seus procedimentos matemáticos, menosprezando a inteligência do ministro pelo fato deste ser um poeta, Dupin, que não desprezava a arte, percebe a maneira de pensar do ministro e entende como este procedera para tornar erráticos os procedimentos do funcionário matemático.

Enquanto há o desprezo da arte nos procedimentos exclusivamente matemáticos do chefe de polícia, há a sua consideração por Dupin, sem o abandono da ciência, no entanto. O procedimento de Dupin, o detetive herói de Poe, poderia servir de manual ao cientista moderno, agarrado a seus métodos e alheio ao próprio objeto (ou alheio ao objeto porque agarrado ao método).

Há várias passagens que permitem analisar mais de perto algumas dessas questões. Na primeira conversa com o chefe de polícia, Dupin sugere não acender as luzes, pois

seria melhor refletir sobre a questão no escuro: “- Mais uma de suas ideias esquisitas, disse o chefe de polícia, que tinha a mania de chamar de esquisito a tudo o que estava além de sua compreensão, vivendo assim entre uma absoluta legião de ‘esquisitices’.”79

Poe relaciona a entonação negativa dada pelo chefe de polícia a tudo o que ele julga esquisito, com sua incapacidade de identificação com o outro. O amigo de Dupin (o narrador), ao ouvir atentamente seu raciocínio, conclui que é exatamente essa capacidade de identificação do intelecto do raciocinador com o de seu oponente que permite a solução do caso.

Assim como o chefe de polícia acha Dupin esquisito por gostar de refletir no escuro, ele acha também o ministro esquisito, ou quase um tolo, porque este é um poeta: “- Não um tolo completo – disse G. – Mas ele é um poeta, algo que considero estar somente um degrau acima da tolice.”80

Sem poder se identificar com seu oponente, ou seja, sem enxergar seu objeto, G. fica acorrentado a seu método, que se torna inútil, embora aplicado de maneira levada à perfeição: “- Nem mesmo a quinquagésima parte de uma linha pode nos escapar.”81 Ou

explicando a Dupin com mais detalhes: “- Isso é claro; após examinarmos cada polegada da mobília desta maneira, examinamos então a casa em si. Dividimos sua superfície inteira em compartimentos, os quais numeramos de forma a que nenhum fosse esquecido, incluindo as duas casas imediatamente adjacentes, com o microscópio, tal qual dantes.”82

Ademais, o método do chefe de polícia era familiar ao ministro, pois além de poeta, ele também era matemático. “- Como poeta e matemático, ele poderia raciocinar bem; como mero matemático, ele não poderia ter raciocinado, e estaria assim à mercê do chefe de polícia.”83 O ministro sabia como esconder a carta porque sabia medir o

intelecto do oponente. O fato do chefe de polícia não enxergar a carta em local visível a qualquer pessoa que entrasse na casa se deve ao fato de ele não procurar a carta em local visível, pois seria certamente esquisito alguém não esconder minuciosamente uma carta

79 E. A. Poe, A carta roubada, 1996, p.64. 80 Ibidem, p.70.

81 Ibidem, p.71. 82 Ibidem, p.73. 83 Ibidem, p.82.

de valor tão alto. Acorrentado ao método, ele deixa passar o objeto: “- As medidas (…) eram boas à sua maneira e bem executadas; seus defeitos residiam em serem inaplicáveis ao caso e ao homem. Certa classe de recursos altamente engenhosos é para o chefe de polícia uma espécie de leito de Procusto ao qual ele forçosamente adapta seus planos.”84

O ministro poeta e matemático soube precisar os limites do método matemático e se situar além dele. Mas é claro que ele não pôde escapar do olhar atento do herói Dupin – o cientista capaz de se interessar pela inteligência da criança que descobre sutilezas para vencer o jogo par-ou-impar – mas que também como um poeta gosta de refletir no escuro. “- Eu o conhecia, contudo, como matemático e poeta, e minhas medidas foram adaptadas à sua capacidade, com referência às circunstâncias pelas quais ele se encontrava rodeado.”85 Ofuscado pela falsa luz do método, o esperto chefe de polícia, que

não tem tempo para a licença poética, é feito de tolo pelo ministro e pelo próprio Dupin, que acaba lhe retirando dinheiro.

Com um século de antecedência a Horkheimer e Adorno, Poe apontou como às vezes é estúpido ser inteligente: “- Mas o matemático argumenta com suas verdades finitas, por meio do hábito, como se elas fossem de uma aplicabilidade geral e absoluta – como o mundo de fato imagina que elas sejam.”86 O mundo todo se rende ao brilhoso

método científico, com seus instrumentos de precisão e discursos depurados da metafísica. E o cientista segue com o conhecimento que não questiona a si próprio, “por meio do hábito”, com o comodismo que Kant já entendia como obstáculo à maioridade da razão.

“Talvez seja a própria simplicidade do caso que os deixa desconcertados”,87

alfineta Poe por meio de Dupin. A simplicidade do saber poético em um mundo de opressão que não é difícil desvendar convive mal com a engrenagem do consumo capitalista que entende simplicidade como fracasso. Poe zombeteia de toda uma cultura que louva o saber limitado como se fosse absoluto, sem desconfiar, e aponta também para a marginalização do saber da arte, para a tendência à decadência cultural dos homens

84 Ibidem, p.78. 85 Ibidem, p.85. 86 Ibidem, p.84. 87 Ibidem, p.65.

práticos, o que iria levar mais tarde à pseudocultura, situação em que poetas como Baudelaire e Pessoa teriam que se haver com a vida estranha, em versos que ressoam sempre um “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.” O “mundo de fato”, de Poe, apresenta o “chefe” como aquele que detém o saber que realmente interessa, o que embolsa a maior parte da recompensa, cedendo uma pequena porção dela para o lunático obscuro, como despesa inevitável. Quase cem anos depois, Kafka apresenta o seu modelo contrário da existência útil e eficiente: o inútil e estranho Odradeck, que assim como para a cultura, é um peso que preocupa também um pai de família burguesa.88

Quanto à relação entre ciência e arte sugerida por Poe, ela continua sendo algo imaginado apenas pela arte. No mundo concreto ela não pode existir, como apontam Horkheimer e Adorno. Com o aprofundamento da tendência à pseudoformação, o olhar de estranhamento não pôde mais ficar restrito aos personagens artísticos; ele é deslocado para o leitor que experimenta também certa humilhação intelectual em obras como as de Kafka e Beckett, obras em que a razão perdeu seu lastro ao provar sua estupidez nos acontecimentos históricos que culminaram na barbárie do século XX. A obra de arte de certa forma se resguarda da ignorância da razão esclarecida, como forma de não ser aniquilada ela não se deixa absorver como mercadoria, ela se torna acessível apenas àqueles que insistem, como quem se põe a interpretar um aforismo de Kafka: “Enquanto a arte renunciar a ser aceita como conhecimento, isolando-se assim da práxis, ela será tolerada, como o prazer, pela práxis social”.89

Mas essa crítica é difícil de ser ouvida pelos especialistas que nada mais consideram além do seu quinhão de saber fragmentado. Os especialistas da saúde mental, por exemplo, continuam atualmente como o chefe de polícia de Poe à procura das causas da depressão, com seus impressionantes métodos, conforme imagina o mundo de fato. Procuram em cada linha do neurônio, em cada elo das cadeias proteicas dos neurotransmissores, com a precisão do microscópio mais refinado; nada lhes escapa, exceto seu objeto, pois lá onde procuram a depressão, ela não está. Talvez isso seja de

88 F. Kafka, A Preocupação do Pai de Família, in Um médico rural, 1990. 89 M. Horkheimer e T. Adorno, Dialética do esclarecimento, 1985, p.44.

difícil entendimento, pois a solução é demasiado simples, de uma poesia simples e dura: trata-se de uma tristeza que invade o indivíduo porque seu mundo é triste. Porém, não se chega a esse saber sem a ciência e ela é importante para que a situação em que o mundo se encontra possa ser alterada.

O gosto pelos enigmas e segredos humanos

Nesse conto de Poe, bem como em toda a sua obra, se percebe também o gosto e o espanto pelo mistério. Ele que move Dupin a uma série de reflexões sobre toda a situação, evocando imagens do passado, conhecimento a respeito da curiosidade infantil e a limitação de se pensar dentro dos limites do “mundo de fato”. O mistério ocupa maior espaço na literatura e na própria ciência ao passo que a religião e a tradição se enfraquecem. Assim também não bastou para Freud o método positivista tradicional porque este não levaria à investigação dos sonhos, do estranho, do inconsciente, enfim, de muitas manifestações humanas misteriosas.

A marcha do romance moderno, a partir do século XVIII, conduziu os escritores a se interessarem pelo misterioso, pelo inesperado. Não é coincidência o fato da psicologia, no final do século XIX, se interessar por noções como subconsciente e inconsciente, pois naquele momento o sujeito passou a ser percebido de modo fragmentário. Não era mais um Werther, seguro e autônomo, mas um sujeito que surpreende pelo insólito, pelo inesperado, pelas alternâncias repentinas de estado, como se fosse invadido por outra pessoa e alterando seu modo de viver. Essa mudança foi sentida no romance moderno que sem preocupação conceitual investigou esse ser misterioso, antes dos psicólogos, nos escritos de autores como Dostoiévski e Poe, e depois deles, muitas vezes fazendo uso de seus resultados científicos como material artístico, como em alguns surrealistas e, no Brasil, em Mario de Andrade, quando se pensa, por exemplo, no efeito que a psicanálise possui como material artístico em um conto como O peru de natal.90 Isso não significa, entretanto, que os psicólogos foram além dos grandes escritores em suas descrições:

É claro que a noção do mistério dos seres, produzindo as condutas inesperadas, sempre esteve presente na criação de formas mais ou menos conscientes, – bastando lembrar o mundo dos personagens de Shakespeare. Mas só foi conscientemente desenvolvida por certos escritores do século XIX, como tentativa de sugerir e desvendar, seja o mistério psicológico dos seres, seja o mistério metafísico da própria existência. A partir de investigações metódicas em psicologia, como, por exemplo, as da psicanálise, essa investigação ganhou um aspecto mais sistemático e voluntário, sem com isso ultrapassar necessariamente as grandes intuições dos escritores que iniciaram e desenvolveram essa

visão na literatura.91

Ao analisar algo tão misterioso quanto os sonhos, Freud, assim como Kafka e Poe, alcança elementos críticos da realidade. Se os sonhos são angustiantes e confusos, sua psicanálise desvenda as inúmeras elaborações oníricas que foram necessárias para proteger o eu de seus próprios desejos, por serem incompatíveis com a realidade. Mas se são sonhos felizes, a psicanálise também ajuda a entender o quanto a realidade é terrível ao ponto da manifestação alucinatória do desejo ser sentida como algo tão feliz e tão distante da realização plena do desejo. Essa questão também está presente na obra de Kafka, como mostra Adorno:

Quando despertamos no meio de um sonho, mesmo que seja dos piores, ficamos decepcionados e temos a impressão de termos sido enganados quanto ao melhor. Mas, sonhos felizes, bem-sucedidos, a rigor há tão poucos quanto, nas palavras de Schubert, música alegre. Mesmo o sonho mais belo encerra como uma mácula sua diferença da realidade, a consciência da mera aparência daquilo que ele proporciona. Daí serem precisamente os mais belos sonhos como que mutilados. Essa experiência está fixada de um modo insuperável na descrição do teatro natural de Oklahoma na América de Kafka.92

91 A. Candido, A personagem do romance, in A. Candido; A. Rosenfeld; D. A. Prado; P. E. S. Gomes, A personagem de ficção, 1976, p.57.