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PARTE II. O INDIVÍDUO EM O PROCESSO, DE FRANZ KAFKA, E ALGUMAS RELAÇÕES COM FREUD

Capítulo 5. Alguns temas em O processo

3. Sujeição e revolta; silêncio

Por toda a obra de Kafka, e particularmente em O processo, existe um misto de ação e submissão, uma ambiguidade que também pode ser interpretada com base na dialética do esclarecimento. A lei que organiza a civilização é a mesma que a limita por não poder ser levada à reflexão. Ora Joseph K. questiona e enfrenta a lei, embora sendo a partir do momento em que ela lhe oprime direta e violentamente; ora admite sua culpa e silencia diante dela.

Como no fragmento a seguir, há momentos em que o narrador sugere que o personagem tem energia para pensar e agir sobre seu processo:

De qualquer modo, não havia, por enquanto, motivo para preocupação exagerada. Ele soubera ascender no banco a uma posição elevada num espaço de tempo relativamente curto, e se manter nela reconhecido por todos; (…) Se quisesse conseguir alguma coisa era necessário, acima de tudo, repelir previamente qualquer ideia de uma possível culpa. Não havia culpa.313

E há momentos em que não existe interesse, somente culpa e vergonha:

Subiu finalmente a escada, brincando mentalmente com a lembrança de uma expressão do guarda Willem, segundo a qual o tribunal é atraído pela culpa, de onde, na verdade, se seguia que a sala de audiência deveria ficar na escada que K. escolhesse ao acaso.314

Também é possível recordar a atitude resignada de Joseph K. diante de superiores e subalternos no banco onde trabalha; o respeito e submissão às leis do castelo pelo agrimensor; o desejo de Gregor Samsa metamorfoseado de retornar à sua condição humana a fim de poder reassumir suas anteriores funções alienadas.315

Muitas vezes o desinteresse pela vida aparece na forma do homem prático, já em Kafka, e muito acentuadamente depois dele. Essa tendência é antiga. Os homens de Ulisses não podiam ouvir o canto das sereias, mas também não podiam olhar para elas. Adorno e Horkheimer perceberam esse embotamento dos sentidos: “Alertas e concentrados, os trabalhadores têm que olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à distração, eles têm que se encarniçar em sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam práticos”.316

Mas se assim era o protótipo do homem burguês dos tempos da Odisseia, já não era nos tempos de Kafka. As sereias em Kafka se emudeceram, pois os homens havia muito eram incapazes de ouvir. Não são seus ouvidos que elas querem atingir, mas seus olhos. Por isso que no século XX a arma das sereias de Kafka é o silêncio: “As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não

313 F. Kafka, O processo, 1997, p.137. 314 Ibidem, p.43.

315 C. N. Coutinho, Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX, 2005, p.133. 316 M. Horkheimer e T. W. Adorno, Dialética do esclarecimento, 1985, p.45.

ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não”.317

Sua empresa porém é inútil, pois Ulisses e seus homens são agora também cegos:

Ulisses no entanto não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as áreas que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou pelo seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante de sua determinação, e, quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.318

Ao contrário do que se pensa, Kafka indica que foram as sereias que venceram, não os remadores. Eles foram vencidos porque perderam a oportunidade do prazer sem imposturas. Os navegantes continuaram a se definhar: se antes não ouviam, hoje já não podem ver. Há de se perguntar se o Caçador Graco não é um descendente direto de Ulisses a navegar quase sem vida, mas impedido de morrer. De tanto preservar-se habituou-se a viver. Kafka sugere que as sereias, em seu silêncio, diante da passagem de tão insensíveis homens, devem ter se questionado a respeito de quem seriam estes estúpidos navegantes que passavam ao largo.

Sabe-se que é possível uma interpretação da Odisseia diferente da que efetuam Horkheimer e Adorno. É possível pensar, por exemplo, que o herói preserva a si e ao seu grupo para o retorno seguro a Ítaca. Mas após se observar o rumo ao qual a civilização aderiu até a atualidade, compondo uma história de sacrifícios cegos, a interpretação que permite ver já no herói grego os prenúncios de uma catástrofe histórica não deve ser facilmente descartada. O fragmento de Kafka sobre o silêncio das sereias reforça ainda mais o caráter certeiro da interpretação dos frankfurtianos.319

317 F. Kafka, O silêncio das sereias, in Narrativas do espólio, 2002, p.104. 318 Ibidem, p.105.

319 Uma discussão sobre essas possibilidades interpretativas na Odisseia é feita por J. M. Gagnebin: “A vitória de Ulisses sobre as sereias não significa só a vitória do controle racional sobre os encantos mágico-míticos. Também significa a conservação de Ulisses como narrador de suas aventuras.” In J. M. Gagnebin, Lembrar escrever esquecer, 2006, p.36.

Para viver em civilização, o homem se levantou do chão e se apoiou em seus pés, diminuindo o estímulo sexual por meio do olfato, como Freud observou.320 Com o progresso da repressão também precisou obstar a audição e a visão para seguir ajustado. É assim que o horror estético progride enquanto a capacidade de fixar a atenção diminui.

A formação cultural que faz jus ao seu nome forma indivíduos autônomos capazes de olhar ao lado e enxergar o que está além da ideologia. Mas para essa formação atualmente não há concentração; esta é requerida apenas para o trabalho que hoje se torna irracional.

Ulisses acena com os olhos para seus liderados, mas estes permanecem concentrados em seu trabalho, seguindo suas ordens prévias:

Dessa maneira cantavam, belíssima. Mui desejoso

de as escutar, fiz sinal com os olhos aos sócios que as cordas me relaxassem; mas eles remaram bem mais ardorosos.321

As sereias, que todas as coisas sabiam, ofereciam prazer, experiência e seu saber, mas tais coisas já estavam à margem do rumo da civilização:

Vêm para perto, famoso Odisseu, dos Aquivos orgulho, traz para cá teu navio, que possas o canto escutar-nos.

Em nenhum tempo ninguém por aqui navegou em nau negra, sem nossa voz inefável ouvir, qual dos lábios nos soa.

Bem mais instruído prossegue, depois de se haver deleitado. Todas as coisas sabemos, que em Tróia de vastas campinas, pela vontade dos deuses, Troianos e Argivos sofreram, como, também, quanto passa no dorso da terra fecunda.322

Na Dialética do esclarecimento se deduz o estado de cegueira como consequência da sociedade industrial, mas a dialética traz o alento de que não se trata de um estado inevitável e irreversível:

A impotência dos trabalhadores não é mero pretexto dos dominantes, mas a consequência lógica da sociedade industrial, na qual o fado antigo

320 S. Freud (1930), O mal-estar na civilização, 2010. 321 Homero, Odisséia, 2009, p.215.

acabou por se transformar no esforço de a ele escapar. Essa necessidade lógica, porém, não é definitiva. Ela permanece presa à dominação, como seu reflexo e seu instrumento ao mesmo tempo. Por isso, sua verdade é tão questionável quanto sua evidência inevitável.323

Rosenfeld comenta duas interpretações opostas acerca da resistência na obra de Kafka: a de Wilhelm Emrich e a de Günther Anders. O primeiro teria dito em favor de uma resistência de Kafka em relação às autoridades pré-fascistas. Anders afirmaria sua tentativa de conformação a elas. “E de certo modo ambos têm razão”, conclui o autor, pois Kafka teria mesclado em sua obra resistência e submissão. Em O artista da fome, por exemplo, nega o ajustamento até o final, quando já moribundo confessa que quisera o ajustamento, ou seja, comer, mas não encontrara a comida adequada. Trata-se da dúvida que duvida da própria dúvida, ou em outros termos, uma confiança desconfiada.324

Muitas vezes seus personagens também se recusam a assumir os papéis que lhe são impostos: Gregor Samsa não pode continuar a trabalhar; Joseph K. também se vê atarantado em seu trabalho no banco devido aos cuidados que deve dispensar ao seu processo. Essa inadequação do indivíduo que gostaria de ser adequado se torna uma implacável crítica ao mundo capitalista.

Joseph K. se põe leniente frente ao seu processo. No início do romance parece haver mesmo um tipo de preguiça de se envolver. Depois ao menos procura conversar com pessoas sobre o caso, mas parece não aceitar a gravidade da questão. Ele acredita mesmo que tudo vai voltar ao seu lugar, a ser como era. Afinal, “K. ainda vivia num Estado de Direito (Rechtsstaat)”325. Uma maneira de entender a desconcertante

submissão de K. é que ele acredita no Estado de Direito, embora seja o único personagem do romance a acreditar. Todos os outros já perceberam que a lei é forma sem conteúdo. Costa Lima brinca com o fato dizendo que Joseph K. parece ter dormido demais, e quando acordou, ou melhor, foi acordado pelos guardas do tribunal, o Estado de Direito havia acabado e ninguém o avisou, ou tentaram, mas ele se recusou a escutar. A recusa de

323 M. Horkheimer e T. W. Adorno, Dialética do esclarecimento, 1985, p.47. 324 A. Rosenfeld, Texto/contexto I, 2009, p.227.

K. em ouvir talvez seja uma chance dada ao leitor para refletir se ele próprio ainda ouve e enxerga bem.

* No Ato IV, Cena IV, de Hamlet, lê-se:

What is a man,

If his chief good and market of his time Be but to sleep and feed? A beast, no more. Sure, he that made us with such large discourse, Looking before and after, gave us not

That capability and godlike reason To fust in us unused.326

Estes são os versos que Benjamin escolheu para exprimir o pensamento religioso que surgiu com Lutero e mesmo a crítica que ele próprio terminou por fazer em relação à doutrina negadora das boas obras.327 O luteranismo teria deixado de lado a moralidade rigorosa do catolicismo da contra-reforma e se contraposto às “boas obras” que teriam importância na vida de calvinistas. A esfera secular era apenas indiretamente religiosa, conjunto de coisas que instalou no povo estrita obediência ao dever, “mas entre os grandes instilou a melancolia”. O próprio Lutero teria caído em depressão em seus dois últimos anos de vida e reagia contra a doutrina negadora das boas obras. Somava-se às crenças luteranas, afirma Benjamin, um elemento do paganismo germânico segundo o qual o homem está sujeito ao seu destino. Com tudo isso, “as ações humanas foram privadas de todo valor”, um mundo vazio disso surgiu e a resposta humana foi o sentimento de luto: “o luto é o estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter da visão desse mundo uma satisfação enigmática”.328 A questão é que os grandes dramaturgos alemães do Barroco eram

luteranos e o luto se incorporou às leis do drama barroco. Enquanto havia uma noção de

326 W. Shakespeare, Hamlet, in The Complete Works of William Shakespeare, 1996, Ato IV, Cena IV. 327 W. Benjamin, Origem do Drama Barroco Alemão, 1984, p.161.

que o Barroco retomava o estoicismo dos antigos, devido à rigidez contemplativa e desinteresse pela vida, Benjamin mostrou que estas características em nada eram antigas, ou como disse, eram pseudo-antigas, pois se deviam muito mais ao ‘espírito’ luterano – ou à vida vazia que ele suscitava – do que à antiguidade.

Benjamin observa que na gravura de Dürer, Melancolia (de 1514), que antecipa elementos do Barroco, os utensílios da vida ativa estão dispersos no chão, sem serventia, como objetos de meditação constante. Aliás, havia estreita ligação entre melancolia e meditação; o homem barroco era o resultado da fusão dessa meditação constante com a ciência: “A Renascença investiga o universo, e o Barroco, as bibliotecas.”

Se a melancolia irrompe dos abismos da condição da criatura, à qual o pensamento especulativo da época se via acorrentado pelos liames da própria Igreja, sua onipotência se explicava. De fato, entre as intenções contemplativas ela é a mais própria da criatura, e há muito já se havia observado que sua força não era menor no olhar do cão que na atitude meditativa do gênio.329

Benjamin percebeu semelhanças entre os poetas barrocos e os artistas modernos. Assim como havia no Barroco, há inúmeras alegorias em Kafka que pedem contemplação330.

Vale lembrar, antes de tudo, que é grande a presença de animais na obra de Kafka, e entre eles aparece a figura do cão, tanto no conto Investigações de um cão, como no final de O processo em que K. é executado “como um cão”.

No quadro de Dürer também há um cão, com seu focinho rente ao chão. E Benjamin faz uma observação que pode ser útil para pensar Kafka. O cão simboliza o espírito sombrio da complexão melancólica, pois segundo a tradição, o baço domina seu organismo, e com sua degenerescência, o cão perde a alegria e sucumbe à raiva. Por outro lado, seu faro e sua tenacidade permitem construir a imagem do investigador incansável e do pensador. Para seguir na ambivalência, no quadro de Dürer o cão aparece

329 Ibidem, p.169.

330 Modesto Carone esclarece que a tradução do título da obra de Kafka Betrachtung por Contemplação (que deriva de templo) ao invés de Meditação, leva em conta o fato de que “para Kafka a atenção dada ao objeto é uma forma leiga de oração”. In M. Carone, Posfácio. F. Kafka, Contemplação e O foguista, 1994, p.100.

dormindo: “os maus sonhos vêm do baço, mas os sonhos proféticos são também privilégio do melancólico”331.

Há também outro elemento de Dürer que está contido na cena final de O processo: a pedra. Joseph K. é executado em uma pedreira. Os executores foram minuciosos para realizar o que lhes fora incumbido:

Para não expor imóvel ao ar frio da noite, pegou K. por debaixo do braço e andou um pouco com ele, de cá para lá, enquanto o outro senhor examinava a pedreira em busca de algum lugar adequado. Quando o encontrou, fez um aceno e o outro senhor conduziu K. para lá. Era perto da parede da pedreira, havia ali uma pedra solta. Os senhores sentaram K. no chão, inclinaram-no junto à pedra e acomodaram sua cabeça em cima.332

Entre as citações que Benjamin faz para mostrar que a pedra tem lugar assegurado no inventário dos símbolos está o diálogo entre a Melancolia e a Alegria, de Filidor. A primeira, velha vestida em trapos, cabeça velada, sentada sobre uma pedra e sob uma árvore morta, com uma coruja ao lado:

Melancolia: a dura pedra, a árvore seca, o cipreste morto oferecem à minha tristeza um lugar seguro, e me fazem esquecer meu ciúme… Alegria: quem é essa marmota, deitada ao lado desse galho ressequido? Seus olhos vermelhos lampejam como um cometa ensanguentado, irradiando destruição e terror… Reconheço-te agora, Melancolia, inimiga dos meus prazeres, gerada nas mandíbulas do Tártaro, pelo cão tricéfalo. Oh! Devo tolerar tua presença? Não, verdadeiramente não. A fria pedra, o arbusto desfolhado devem ser removido, e tu, monstro, também.333

Joseph K., alienado ao ponto de não perceber as mudanças ao seu redor, continua inconformado perguntando pela sua causa: “Não vivemos em um Estado de Direito?”. Tal questionamento pode revelar a inconveniente verdade sobre os rumos da civilização. A alegria da época de Kafka não é a mesma do Barroco, mas sim a de Kaminer, o

331 W. Benjamin, Origem do Drama Barroco Alemão, 1984, p.174. 332 F. Kafka, O processo, 1997, p.245.

funcionário que contrai o rosto involuntariamente. É a alegria adaptada que levará K., esse monstro de infelizes questionamentos, a morrer sobre a fria pedra.