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8. REFLEXÕES SOBRE A INTERAÇÃO UNIVERSIDADE E SO-

8.4. Ciência e tecnologia como um dogma

Retomando a questão do processo de modernização da agricultura apresentado no início desse trabalho, identifica-se tal processo com o projeto de emancipação humana fundado na razão iluminista.

O projeto iluminista prometia, através do domínio científico da natureza, menos escassez e desenvolvimento de uma organização social mais racional, favorecendo o sonho de liberdade contra todas as espécies de opressão, desde as naturais até as resultantes da própria irracionalidade humana. Desse modo, o homem se libertaria da noção de decadência e degradação histórica e passaria a acreditar nas potencialidades humanas. A razão iluminista filtraria tudo o que durante séculos havia funcionado como autoridade apenas por tradição. A sua contribuição para o progresso intelectual, social e moral deveria contrapor-se a toda a tirania política, moral e religiosa. O sucesso das ciências experimentais daria sustentáculo à razão e o seu método fundaria o progresso em todos os setores da vida e da cultura (TOLENTINO, 1996).

O “século das luzes”, segundo CASSIRER (1992), é marcado pela invenção de um novo método de filosofar, sendo profundamente penetrado e empolgado pela idéia de progresso intelectual. A razão iluminista manifesta-se pela expressão de todos os desejos, esforços e realizações desse século. Ela é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda a época e toda a cultura. Este século está impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razão, que, por sua vez, é a região das “verdades eternas”, comuns ao espírito humano e ao espírito divino. Cada ato da razão poderia assegurar a nossa participação na essência divina, o acesso ao domínio do inteligível.

A verdade não é dada pela palavra de Deus através de sua obra, a natureza, mas está a todo o instante sob nossos olhos, fazendo-se, assim, uma correspondência entre a natureza e o conhecimento humano. Sendo assim, o homem deveria libertar-se de todos os ídolos e das ilusões sobre a origem primeira das coisas. Esse despojamento seria essencial para que o homem pudesse cuidar do ordenamento do mundo, realizando-o com paz e segurança.

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Enfim, “o mundo jamais seria feliz enquanto não se decidir a ser ateu”, e só assim desapareceriam as querelas e guerras religiosas. Verifica-se, desse modo, o surgimento de um messianismo da tecnologia, capaz de transformar o mundo (CASSIRER, 1992; ALVES, 1988).

Entretanto, como afirma Hume, citado por CASSIRER (1992), o empirismo matemático, base do método das ciências positivas, encontrava-se num ponto tal que a certeza da uniformidade da ciência da natureza só podia ser estabelecida e justificada por uma espécie de fé, invertendo, assim, os papéis entre ciência e religião. Nem a ciência nem a religião são suscetíveis de uma justificação “racional” e objetiva. Em outras palavras: não há garantias teóricas de verdade para o conhecimento baseado no empirismo matemático, já que o homem não tem instrumentos para provar que os mecanismos psicológicos de associações, dos quais foram extraídas as fórmulas e leis, expressem realmente as estruturas e as relações com o mundo objetivo (CASSIRER, 1992; ALVES, 1988).

A filosofia do iluminismo delimitou, assim, definitivamente o domínio do conhecimento racional, não encontrando no seu interior o menor constrangimento ou obstáculo. O iluminismo sai da exclusividade intelectual dos filósofos e torna-se uma atitude cultural e espiritual, “ganhando corações e mentes na sociedade da época”, de modo especial na burguesia e até mesmo na sociedade mundana, incluindo alguns governantes, transformando-se em idéia de senso comum durante vários séculos e até o momento atual, conforme pode-se observar nas cartas analisadas nesse estudo:

(073): Toda ciencia que ajuda ao homem viver melhor eu acho que todos deveriam ter mais atenção e respeito.

(190): Acredito através da reportagem rural que assisto aos domingos no Globo Rural duas coisas precisam andar juntas

1. uma é trabalho e fé

2. a segunda é tecnica e conhecimento.

Os senhores tem a tecnica, planos de trabalho, mini projetos que talvez ajudariam a muitos a sair desta selva de pedra. (...)

Tenho visto reportagens rurais de gente que sonhava com tal liberdade e através de técnicas agrícolas hoje vivem com ela e feliz e de barriga cheia longe das metrópoles.

Sou filho de trabalhador rural que veio para a cidade mas sinto como um pelegrino em terras estranhas. Ajudem-me a encontrar o caminho de volta que a UF de Viçosa e o conselho de Extensão seja a bússola deste negocio.

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Isto não é um sentimento de solidão e revolta mas sim de uma pessoa que acredita em técnicas e pesquisas que através delas podemos mudar até a qualidade de vida daqueles que acredita nelas para o seu bem. Muitas pessoas conseguirão e eu creio nelas.

Entretanto, como esclarece LEISS (1974), esse senso comum revela um conjunto de ambigüidades e premissas obscuras, pois a ciência moderna não penetra na esfera da vida prática do homem. A informação, a técnica e o raciocínio científico podem ser incorporados nas relações sociais somente através de sua utilização técnica, como conhecimento tecnológico, fornecendo o aumento do poder sobre o controle técnico. Assim, poder e dominação não se relacionam com conhecimento científico, ou com natureza, mas podem ser empregados na relação com aplicações tecnológicas do conhecimento científico. Os avanços tecnológicos aumentam de forma evidente o poder de controlar grupos dentro das sociedades e entre as nações.

Devido às disparidades na distribuição de poder entre os indivíduos, grupos sociais e Estados, a tecnologia pode funcionar como instrumento de dominação, não servindo como veículo liberalizante de transição para uma sociedade sem classes. O nível de capacidade tecnológica é fator importante na definição da forma que o conflito social assume em determinado período, de modo que se torna absurdo falar em “conquista da natureza pelo homem”, já que a universalidade desse conceito abstrato, “homem”, unificado numa ordem social pacífica, só dissimula as diferenças e os conflitos sociais. Conforme afirma LEISS (1974), falar em dominação da natureza só tem significado ao se considerar o domínio de uma tecnologia superior utilizada como instrumento pelo qual alguns homens dominam e controlam outros. Não há, portanto, procedência a noção de uma dominação da raça humana sobre a natureza externa.

Nota-se, assim, que essa idéia iluminista de ciência, predominante nas cartas, é construída e reconstruída dia a dia, através da face que a universidade, com seus pesquisadores, sustenta quando entram em interação com o seu público, bem como a mídia que difunde a técnica. Assim, os informes técnicos são simbolicamente eficazes como ritos de instituição da idéia de ciência e tecnologia para o bem da humanidade e do estatuto de “herói” para quem a produz. No

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entanto, há de se lembrar, como nota BOURDIEU (1996), que a crença de todos é preexistente ao ritual e sua condição de eficácia, pois, prega-se somente aos convertidos.

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