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2.2. Etnometodologia e análise da conversação: a linguagem como

2.2.2. Estrutura organizacional das conversações cotidianas

A conversação é a prática social mais comum no dia-a-dia do ser humano, sendo um espaço privilegiado para a construção de identidades sociais e controle social imediato, exigindo, assim, uma enorme coordenação de ações que ultrapassam a habilidade lingüística dos falantes. Ela é um fenômeno organizado, sendo que essa organização é um reflexo subjacente, desenvolvido, percebido e utilizado pelos participantes da atividade comunicativa, isto é, as decisões interpretativas dos interlocutores decorrem de informações contextuais e semânticas mutuamente construídas e inferidas de pressupostos cognitivos, étnicos e culturais, entre outros (MARCUSCHI, 1986).

Iniciar uma interação significa, portanto, abrir-se para um evento de expectativas mútuas que serão montadas. No caso em questão, há alguém que inicia com um objetivo definido em relação ao tema a tratar e supõe que o outro esteja de acordo para o tratamento daquele tema, indicando que, além do tema, há uma pressuposição básica de que o tema seja aceito pelo outro. Dessa forma, os esquemas comunicativos e a consecução de objetivos exigem partilhamentos e

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aptidões cognitivas que superam o simples domínio da língua em si, como o envolvimento cultural e o domínio de situações sociais.

Em relação a diferenças sócio-culturais, o lingüista alemão H. Steger, citado por MARCUSCHI (1986), distingue dois tipos de diálogos: o assimétrico, que seria aquele onde um dos participantes tem o direito de iniciar, orientar, dirigir e concluir a interação; e o simétrico, no qual todos os participantes teriam, supostamente o mesmo direito à auto-palavra. No entanto, reforça-se a observação de MARCUSCHI (1986), de grande utilidade nesse trabalho, de que a simetria de papéis e direitos é pouco verdadeira, já que a diferença de condições socioeconômicas e culturais ou de poder entre os indivíduos deixa-os em diferentes condições de participação no diálogo. Assim, a própria construção e negociação de identidades na interação e apropriação da palavra ficam afetadas por essas condições, pois as convenções sociais, as normas culturais e as imagens mútuas que as pessoas fazem umas das outras influenciam nos processos inferenciais e construções de informações. Dessa forma, as variáveis sexo, grau de intimidade, posição social e outras são fatores importantes na articulação dos movimentos cooperativos conversacionais.

Quanto à estrutura conversacional, autores como Bakthin e Goffman realçam o caráter essencialmente dialógico e par da linguagem, pois, quando conversamos fazemos isso através de perguntas e respostas, ou asserções e réplicas, ou seja, por meio de pares adjacentes. Desse modo, a conversação organiza-se através de turnos destinados aos participantes da mesma, sendo a regra básica “fala um de cada vez”. O turno é designado por MARCUSCHI (1986) como “aquilo que um falante faz ou diz enquanto tem a palavra”, aí está incluído a possibilidade de silêncio. Ele cita cinco características básicas constitutivas da organização elementar da conversação:

1. interação entre um mínimo de dois falantes; 2. ocorrência de troca de falantes;

3. presença de uma seqüência de ações coordenadas; 4. execução numa identidade temporal;

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5. envolvimento numa “interação centrada”, isto é, os interlocutores voltam sua atenção visual e cognitiva para uma tarefa comum. Segundo Goffman, citado por MARCUSHI (1986), a interação face a face não é condição necessária para que haja uma conversação, mas a interação centrada é necessária.

A conversação consiste, então, normalmente, numa série de turnos alternados que compõem seqüências em movimentos coordenados e cooperativos, tendo como seqüência mínima o par adjacente que consiste de dois turnos que concorrem e servem para a organização local da conversação. Dessa forma, apresentam-se como pares conversacionais: pergunta e resposta, pedido e execução, convite e aceitação ou recusa, cumprimento e cumprimento, e assim por diante. Os pares funcionam tanto como organizadores quanto como mecanismos de seleção de falantes e proponentes de tema, pois quem faz uma pergunta escolhe o próximo falante. Isso é o que Schegloff, citado por MARCUSCHI (1986), chama de “relevância condicional”, significando que, dada a primeira parte, uma segunda é esperada.

2.2.2.1. Pré-seqüências

As pré-seqüências são conceitos muito importantes na presente investigação pelo fato delas serem usadas com bastante freqüência nas cartas analisadas. Segundo MARCUSCHI (1986: 43) elas se definem como: “unidades cuja motivação é estabelecer a coesão discursiva ou preparar o terreno para outra seqüência ou unidades que contêm uma asserção”. Na terminologia de Sinclair e Couthard, citados por MARCUSCHI (1986), elas representam um quadro preparatório para um evento lingüístico posterior. No caso de pedidos, as pré-seqüências visam certificar as condições para colocar o pedido. Levinson, citado por MARCUSCHI (1986), propõe a seguinte caracterização estrutural para a organização das pré-seqüências e seqüências:

• Turno 1: coloca-se uma questão com a finalidade de checar as pré-condições que prevalecem para chegar à ação pretendida;

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• Turno 2: uma resposta indicando a pré-condição para realização ou não da ação pretendida;

• Turno 3: a ação propriamente dita; e

• Turno 4: resposta à ação realizada no turno 3.

Como pode ser observado nesse esquema, o turno 3 é contingente, já que ele depende da condição posta no turno 2 para o falante executar ou não o pedido.

As pré-seqüências do tipo: pré-pedidos, pré-informações, pré-convites, entre outras, são o lugar mais adequado dos atos indiretos de fala e revelam que as pessoas “despreferem” respostas negativas.

2.2.2.2. Organização de preferência

Segundo MARCUSCHI (1986) o termo preferência foi desenvolvido por Sacks e Schegloff para descrever “as diferenças características entre as diversas maneiras de os falantes realizarem ações alternativas não-equivalentes”, determinadas social e culturalmente. Assim, por exemplo, em casos de propostas e convites é esperado uma preferência pela aceitação, já no caso do insulto ou da ofensa, desprefere-se o mesmo tipo de ação. Desse modo, faz-se a caracterização estrutural de ações despreferidas em relação às preferidas: as segundas partes preferidas são não marcadas e as segundas partes despreferidas são marcadas por algum elemento estrutural. Segundo Levinson (apud MARCUSCHI,1986), as ações despreferidas possuem dois traços fundamentais: tendem a ser marcadas e tendem a ser evitadas.

A tendência social e cultural de evitar as recusas e preferir as aceitações manifestam-se em marcas lingüísticas encontradas na primeira ou na segunda parte do par, cujas alternativas são, em geral, as seguintes:

adiamentos: uma pausa antes de iniciar a resposta, uso de um pequeno

prefácio, deslocamento por um ou vários turnos com marcadores, como: “o quê?”, “como” e outros;

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prefácios: uso de marcadores como “bem”, “olha”..., produção de uma

concordância para depois discordar: “sim mas”, uso de apreciações, qualificações, desculpas, hesitações;

ponderações: ponderações claras para justificar a despreferência;

componente de declinação: geralmente uma forma adequada ao caso e com

abrandamentos (Levinson, citado por MARCUSCHI, 1986).

Cabe aqui assinalar algumas considerações de BROWN e LEVINSON (1978), no seu estudo sobre o fenômeno de polidez, quando eles destacam que é na ação e interação que se encontram as inter-relações mais profundas entre linguagem e sociedade, sendo o problema-chave a determinação da origem e natureza da valência social ligada à forma lingüística (MARCUSCHI,1986:51). Eles colocam duas fontes centrais da valência social de formas lingüísticas: o impacto que uma intenção comunicativa pode ter sobre uma relação social e os caminhos pelos quais os falantes buscam modificar o impacto através da modificação da expressão dessas intenções. Assim, é introduzido o componente de racionalidade, entendida enquanto intencionalidade, da ação como um dos geradores do processo comunicativo, já que a conexão entre forma lingüística e valor social é dado pela mediação entre intenções e estratégias. No entanto, estes autores alertam para o perigo de transformar esse processo em algo estritamente racional, governado por regras e estratégias, anulando o aspecto primeiro desse processo: o aspecto sociocultural da ação no uso da língua.