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2.2 COMUNICAÇÃO EM REDE EM TEMPOS DE TRANSFORMAÇÃO

2.2.3 Ciências do Tautismo

Esse problema nasceu, em certo sentido, a partir das escolhas teóricas e metodológicas dos diferentes pesquisadores ligados a comunicação estadunidense nos anos 1980, que, ao projetarem uma “máquina de computar”, a qual procurava imitar o funcionamento do cérebro humano, o fizeram sobre bases muito estreitas. Ou partiram de uma concepção redutora do que seria o cérebro e as atribuições do humano, ou partiram de uma concepção rígida do que seria o social, tomando o contexto de produção de vivência destes pesquisadores como modelo geral para todos os outros contextos culturais.

Em primeiro lugar, toda uma prática da inteligência artificial desenvolvida por Herbert Simon e Allen Newell, que postula cinco princípios sobre os quais se organiza sua pesquisa e definição do que seria a inteligência (SFEZ, 1992, p. 128): redução da questão da inteligência à resolução de problemas lógicos a nível individual (por exemplo, uma partida de xadrez) – o ser é analisado como uma unidade que processa informações visando um fim (information

processing system – IPS); o ser humano é um sistema de processamento de informações; um

sistema de processamento de informações e um conjunto de signos; d) este sistema de signos assenta sobre uma concepção representativa; e esta representação é espacial.

De um modo geral, são princípios que organizam as ações dos seres vivos (e, portanto, das máquinas sobre que imitam o vivo) no processo de absorver informações externas, remetê-las a um conjunto interno de outros signos que lhe conferem sentido e propósito, visando fins. Um exemplo seria do verme que, ao sentir fome (problema), vasculha o ambiente (recolhe informações) em busca da fonte de alimento. Tais postulados, para além da informática que ela permitiu organizar, serviram como base também para toda a ciência cognitiva que partiu dos mesmos princípios para pensar o ser humano dentro da sociedade. O problema aqui é muito claro: o humano foi reduzido a um princípio de resolução de problemas – problemas lógicos e de curto prazo. O princípio epistemológico que rege a máquina torna-se o mesmo que rege o ser vivo.

Um segundo exemplo ficou por conta das pesquisas psicológicas do Instituto de Pesquisa Mental de Palo Alto (Palo Alto’s Mental Resarch Institute), que forneceu modelos

teóricos para pensar a comunicação como um processo interacional entre os indivíduos, nascida a partir das pesquisas terapêuticas do instituto. Em certo sentido, foi uma forma de psicologia mais exercitada que teorizada, uma vez que, ao contrário da psicanálise tradicional, que busca dentro da história individual a origem dos distúrbios, os “paloaltistas” inserem o indivíduo dentro de seu contexto relacional. Assim, consideram-se os distúrbios como dificuldades de comunicação entre o indivíduo e seu contexto (SFEZ, 1992, p. 169).

Menos o alcance das terapias desenvolvidas, interessa mais os desdobramentos culturais que esse tipo de concepção exerce sobre a comunicação. Em parte, ela é representativa de uma concepção estadunidense de sociedade, onde o indivíduo pensa a si e é pensado, tomando como princípio o conjunto de outros indivíduos com o qual ele convive (p. 171). Em vez de se pensar a sociedade como coletividades em oposição (como na noção de classes, por exemplo), retoma-se a noção de um espaço de igualdade entre indivíduos no qual pode se fazer possível a livre competição. Em certo sentido, o sujeito assim pensado é determinado somente, dentro do âmbito da pesquisa, tomando em relação outros indivíduos com os quais se encontra – livre, portanto, de oposições de classe (típicas de um sujeito marxista clássico), ou da própria história (como no sujeito freudiano, assombrado pelo próprio passado) (p. 180).

Há uma questão cultural que permeia muito fortemente toda esta discussão. A forma como o tautismo saiu da sociedade de comunicação, é reflexo, em parte, da emergência de uma determinada cultura dentro do espaço global: a estadunidense. O que estamos buscando? Perceber o quanto uma determinada teoria da comunicação reflete uma determinada cultura e ideologia, mesmo que ela se apresente de forma “neutra” e apolítica. Neste sentido, uma escola comunicacional que surge dentro do contexto estadunidense dos anos 1980 – marcado pelo behaviorismo, psicologia cognitivista e uma teoria da cibernética que enxerga o computador como outro tipo de cérebro, pretensiosamente pensado como algo capaz de

representar por si mesmo a realidade – traz consigo aspectos ideológicos muito claros. Neste

caso, a referência óbvia seria o individualismo liberal praticado dentro da sociedade estadunidense, institucionalizado em seus laboratórios e centros de pesquisa e legitimados em sua cientificidade técnica.

A relação que podemos ter com os artefatos daí saídos – o computador e a ciência cognitiva como tal – é complexa, senão ambígua. Como bem nos lembra certos autores, o “homem ficaria castrado se afastado de seus atuais brinquedos” (ZIZEK, 2016), e o próprio Sfez reconhece o alcance de determinadas conquistas atingidas pelos programadores e tecnólogos (1992, p. 134). Porém certos fatos devem ser colocados em ordem. Em primeiro lugar, o aparente funcionalismo que impera por detrás de tais concepções do que seria o humano e a máquina – nesse sentido, o computador, por mais humanizado que seja, reduz-se a um mero reprodutor de limitados princípios definidos de antemão (correlação que, por sua

vez, transfere-se por analogia ao ser humano). Em segundo, que essas concepções se basearam muitas vezes em experimentos empíricos que produziram generalizações relativamente simplistas do que seria a realidade, o homem, cérebro e linguagem humanas – caso contrário, seria relativamente difícil reproduzi-las dentro da máquina de computar. O que isso significa? Que no instante em que se declarou que tais máquinas deveriam fazer parte do gênero humano, tais representações grosseiras foram incluídas dentro do pacote.

O biólogo Humberto Maturana, que testemunhou esse ambiente de pesquisas e dele fez parte por um determinado período, o sintetizou da seguinte forma:

Durante os anos 1958 e 1959, após doutorar-se na Universidade de Harvard, trabalhei no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), no Departamento de Engenharia Elétrica, no Laboratório de Neurofisiologia. Nesse departamento, também um Laboratório de Inteligência Artificial. Ao passar todos os dias perto desse laboratório, sem entrar nele, escutava as conversações dos mais eminentes pesquisadores em robótica da época, os quais diziam que o eles faziam eram usar como modelo os fenômenos biológicos, Marvin Minsky era um deles. A mim parecia, ao escutá-los, que o que eles faziam não era modelar nem imitar os fenômenos biológicos senão imitar ou modelar a aparência destes no âmbito de sua visão como observadores [grifo nosso]. […] Evitar esse erro não era fácil, já que o discurso biológico daquela época era um discurso funcional, propositivo, e falava-se dos fenômenos biológicos como se eles ficassem de fato revelados ao falar da funcionalidade que se lhes atribuía, e como se a descrição da função especificasse os processos relacionais que lhe davam origem (MATURANA, 1997, p. 11).

Qual o problema em imitar o ser vivo? Bom, o problema não é exatamente imitar o ser vivo, mas imitar suas funções (“vamos reproduzir a sua forma de agir e aplicar naquilo que nos interessa”, poderia ter declarado um pesquisador daquele tempo) e então dizer que essa imitação é a vida em si – a representação engole a vivência.