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O questionário foi construído com o objetivo de obter indícios que permitissem responder às perguntas levantadas no início do presente texto. Em primeiro lugar, traçar um perfil dos alunos no que tange aos seus hábitos de uso da rede; em segundo, em traçar os interesses de procura dos alunos dentro de sites de compartilhamento de vídeos; em terceiro, entender as concepções que os alunos possuem em relação à história, entendida aqui tanto como disciplina escolar quanto ciência; e por fim entender de que forma essa concepção de história e interpretação do passado se comporta diante de um vlog um tanto quanto inusitado a

respeito do tema. Tais objetivos técnicos do dicionário serão aprofundados em detalhes mais adiante, juntamente à análise das respostas.

No que tange o último dos objetivos do questionário – e mais central para a presente pesquisa –, foram elaboradas perguntas que “desentocassem” a maneira própria de interpretação do passado dos alunos, por meio do contato destes com um determinado tipo de documento, neste caso, o vlog. A questão é se a consciência histórica nasce simplesmente do questionamento feito a partir de uma fonte histórica: ao vermos uma interpretação do passado, ou algo que contradiz, diante de nós, nossa definição prévia de como as coisas realmente eram, podemos criar condições por aonde a consciência histórica pode tomar forma. A aposta aqui foi de que, pelo contato com uma narrativa ao mesmo tempo familiar (o vlog) e estranha (uma interpretação heterodoxa da história da comunicação), poderíamos fazer saltar a consciência histórica dos alunos – presente dentro do relato SNAPWHATSGRAN18, de Whindersson Nunes.

Whindersson descreve ali uma situação relativamente cotidiana em que, devido à atualização do aplicativo Whatsapp, utilizado para troca de mensagens de texto e vídeos pelo celular, certas pessoas passaram a reclamar da mudança da interface e outros incômodos menores relativos a esta atualização. Em resposta, Whindersson tece comparações entre a comunicação na atualidade, passado recente e antiguidade. Comparando a telecomunicação de 10, 20 anos atrás – com suas mensagens de texto com limite de palavras, conversas de celular (que, se durassem menos de três segundos, não eram cobradas) e telefones discados – fica evidente o avanço desse tipo de tecnologia. Porém, a coisa fica ainda mais absurda se a comparação for feita com a comunicação tal como ela era feita na antiguidade.

Usando como pano de fundo uma visão caricata do mundo americano pré-colombiano – quando as mensagens eram transmitidas por sinais de fumaça, nós em cordas ou por meio de mensageiros que transmitiam os recados à pé –, Whindersson conta a saga de Cleiton, um sujeito que tem a ingrata tarefa de avisar as vilas que compõem a região onde ele vive de um iminente desastre, tendo que transmitir esta mensagem à pé mesmo. O processo, extremamente lento se comparado com a comunicação moderna, esgota todas as forças de Cleiton que, ao retornar para a sua casa, descobre que o suposto desastre foi, na realidade, um engano, e todo o seu esforço foi à toa. Whindersson fecha o vídeo com uma lição de moral simples, porém importante: não reclame de seu celular ou dos serviços que ele oferece por besteira; no fundo, você é feliz e não sabe.

Whidersson é extremamente feliz ao entender que o presente, em seu aspecto comunicacional, é um processo – o presente é resultado de uma série de mudanças ocorridas na sociedade, e cada momento histórico exigiu das pessoas um comportamento diferente,

adequado com a situação vivida. Ao ter consciência de como as coisas funcionavam no passado, o vlogueiro torna-se capaz de tecer um julgamento moral para o presente, visando advertir as pessoas do quão estúpido é seu comportamento, em um apelo à mudança. O passado não é algo que deve ser reproduzido, exaltado nem criticado – ele é base para a

reflexão perante a mudança dos tempos e para o próprio comportamento. O passado é fonte

pela qual a crítica do presente se torna possível, em um processo de ajustamento ético de uma tradição que se organiza a partir de uma narração.

Assim, temos em mãos um relato que carrega dentro de si diversos elementos próprios de uma narrativa de cunho histórico, mas que não obedece a padrões de cientificidade próprios da história acadêmica. Isto fica evidente na sua descrição do mundo indígena pré- colombiano, que coloca em um mesmo saco os indígenas norte-americanos, incas e maratonistas gregos – representados na trágica figura de Cleiton. São recortes da história, anacrônicos e geograficamente díspares, que servem como contraponto ao presente, em um raciocínio que, em síntese, é correto em sua argumentação interna.

É interessante notar que a força narrativa do vídeo reside justamente no fato de ser capaz de articular tantos elementos díspares em um mesmo relato (para desespero dos especialistas). Se considerarmos que hoje a narratividade em rede como uma tradição que não apregoa para si formas específicas de articular imagens e ideias (cultura bárbara), temos em mãos uma síntese proveniente de um momento histórico que, no fundo, não se preocupa tanto em garantir verossimilhança entre o que é dito e as fontes. Ao contrário, há a busca ao recurso narrativo e moral que se apoia em uma visão de passado que, embora tenha elementos de verdade, é bastante confusa.

4.2.1 Vlog enquanto documento

Em primeiro lugar, é importante pensar o caráter documental das fontes de estudo – neste caso, os vlogs – como ponto de partida válido para a pesquisa. Assim, parte-se da concepção que o vlog, enquanto expressão do capitalismo contemporâneo individualizado, acaba sendo considerado aqui, tanto como uma prova de uma determinada realidade histórica, quanto um registro que esta realidade histórica deixou para a posteridade: a concepção de documento/monumento, descrita pelo historiador francês Jacques Le Goff (2013).

Nesse sentido, é importante retomar as discussões já levantadas acerca do vlog como um diário virtual, individualmente centrado. Se o monumento é parte do esforço de uma sociedade de legar à posteridade uma imagem que ela faz de si mesma, “num protesto, de fundo metafísico, contra a finitude da existência” (LE GOFF, 2013, p. 497; CATROGA, 2015, p. 30), então os modernos diários virtuais cabem nesta mesma definição. Isto porque o

ou seja, na exibição para o outro pelas mídias, no processo de autoafirmação e autenticidade anteriormente comentados. Monumentos de si para os demais. Monumento que, por sua vez, torna-se material para a reflexão histórica nas mãos do historiador. Assim, retomamos aqui as palavras de Michel Foucault quanto à relação entre o monumento e a ciência histórica. Nesse sentido, o trabalho metodológico do historiador volta-se para a “descrição intrínseca” deste monumento, o trabalho arqueológico. Mais do que isso:

A história, em sua forma tradicional, dedicava-se a “memorizar” os documentos, e em fazer falar traços que, por si próprios, não são absolutamente verbais, ou dizem em silêncio outra coisa diferente do que dizem; nos nossos dias, a história é o que transforma os documentos em monumentos e o que, onde dantes se decifravam traços deixados pelos homens, onde dantes se tentava reconhecer em negativo o que eles tinham sido, apresenta agora uma massa de elementos que é preciso depois isolar, reagrupar, tornar pertinentes, colocar em relação, construir em conjunto (FOUCAULT, 2013, p. 8).

É interessante notar que, se a história é a tentativa de uma sociedade de dar sentido a sua massa documental da qual ela não consegue se separar (p. 9), então, provavelmente, uma das tarefas do historiador do futuro será a de dar sentido a tudo aquilo que foi produzido agora e guardado dentro do YouTube – que é, na prática, um grande arquivo de vídeos em formato digital, como anteriormente descrito.

Agora, repassando tais questões do âmbito historiográfico para o da educação histórica, é importante fazer a ponte entre ambos. Nesse sentido, o trabalho do educador histórico, mais do que o do historiador para o âmbito deste trabalho, é o tratamento das fontes não somente como uma fonte de conhecimento, mas, sim, de seu uso como meio de reflexão junto aos alunos, no processo de aprendizagem histórico anteriormente descrito.

Porém, o vlog aqui é entendido, como complemento à noção documento/monumento, é também um documento biográfico, aonde o eu, enquanto formação discursiva, encontra pela via da narração, novas formas de significar a si mesmo para um outro, dando sentido a uma determinada experiência dentro do tempo:

Esse leque de possibilidades de inscrição da voz narrativa no espaço biográfico, que vai das formas mais canônicas as menos discerníveis, se desdobra assim na ótica que viemos construindo […]. O que está em jogo, então, não é uma política da suspeita da veracidade ou da autenticidade dessa voz, mas antes a aceitação do descentramento constitutivo do sujeito enunciador, mesmo sob a marca de “testemunha” do eu, sua ancoragem sempre provisória, sua qualidade de ser falado e falar, simultaneamente, em outras vozes; essa partilha coral que sobrevêm – com maior ou menor intensidade – no trabalho dialógico tanto da oralidade quanto da escrita cuja outra voz protagonista é, evidentemente, a do destinatário/receptor (ARFUCH, 2010, p. 128).

Seguindo esta mesma linha de raciocínio, podemos “encaixar” o vlog enquanto uma dimensão do gênero autobiográfico. Porém, se trata de uma manifestação específica da autobiografia, uma vez que é construída mediante critérios próprios do espaço virtual que lhe

deu origem. Em certo sentido, a Internet é, hoje, uma das grandes responsáveis pela revitalização do autobiográfico, não somente nos vlogs, mas também blogs, perfis em redes sociais e toda diversidade de documentação eletrônica que nasce com as novas tecnologias (ARFUCH, 2010, p.149-150).

O principal ponto, aqui, é tentar construir, por meio de um discurso autobiográfico que caracteriza o vlog, um ponto de estranhamento sobre o qual os alunos poderiam pensar a sua própria experiência dentro do tempo, como também, a forma pela qual essa experiência é entendida.

O entendimento, a compreensão, não ocorre por si só. Em vez disso, a pré- compreensão individual, bem como o conhecimento, a experiência e a condição histórica desempenham um papel decisivo. Um texto escrito ou uma narrativa oral, ou o que deve ser entendido como uma narrativa do outro ou uma narrativa de si, deve ser integrado como um estrangeiro no próprio, isto é, um estranho no familiar [grifos do autor]. Isto pode ser reconhecido como interação do movimento da tradição e do movimento do intérprete, pelo qual a antecipação do significado da comunidade que nos conecta com a tradição transmite a compreensão da narrativa biográfica/autobiográfica (CUNHA, 2017, p. 10).

Em certo sentido, a fórmula anteriormente citada de Marc Bloch segue sendo invariavelmente verdadeira: a história enquanto compreensão é base comparativa para o presente, sobre a qual uma alternativa sobre nossas vidas pode ser construída. É sobre esse tipo de raciocínio que as últimas perguntas do questionário foram construídas.