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3.2 CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

3.2.1 Consciência histórica e narração

Há, em Rüsen (2010, p 62), um esquema que permite identificar as narrativas de cunho histórico de outros gêneros, especialmente a narrativa ficcional, que muitas vezes também é fruto de uma consciência histórica tentando se organizar dentro do tempo. Porém, a narrativa histórica (sendo ela científica ou não) exige, em primeiro lugar, uma relação expressa com o vivido, em um primeiro momento testemunho bruto que compõem a memória pessoal (o relato ficcional, sempre resultado de uma dada experiência dentro do tempo, não corresponde a tal critério). Em segundo, a forma pela qual tal lembrança é expressa deve dizer respeito à função de organização dentro do tempo, de articulação entre passado, presente e futuro. E, por fim, a narrativa de cunho histórico deve dizer respeito a uma dada identidade, garantir a existência, dentro do tempo, daquele que conta com aqueles a quem ele fala.

Esse último aspecto é deveras interessante, pois diz respeito a dar um novo significado a eventos contingenciais aos quais o ser humano aparentemente está indefeso. P. Ricoeur (1991, p. 162-166; 168-177) respondendo ao raciocínio de Derek Parfit de que a identidade pessoal não existe, comenta que, em situações extremas aonde há uma descaracterização do ser (como no caso de uma clonagem, e não se consegue distingui mais o original da cópia), o que muda em um indivíduo é justamente o fato de ter passado por tal experiência, o que recoloca um mesmo dentro de uma nova perspectiva interpretativa de si. Tal raciocínio pode ser extrapolado a inúmeros outros exemplos, aonde um novo sentido a situações inesperadas pode ser buscado (perdas, mortes, enriquecimento abrupto, etc.)14.

Toda narrativa histórica, no fundo, articula uma determinada cultura histórica (ou elementos dessa cultura) a fim de, refletindo sobre uma determinada experiência dentro do tempo, transmitir um determinado significado. Assim sendo, toda narrativa de cunho histórico sempre visa um outro, ao qual se pretende como verdadeira, a partir do relato testemunhal do que foi vivido e entendido.

Esta pretensão em relação à verdade bedece a critérios próprios do contexto histórico e cultural no qual uma determinada narrativa é contada, como forma de garantir a ela inteligibilidade e reconhecimento ao público ao qual ela se destina. Rüsen (2010, p. 162) desdobra as condições de possibilidade de uma determinada narrativa a partir de cinco fatores – tangenciando tanto aspectos internos (psicológicos – identidade e intencionalidade do autor, por exemplo), e externos (há sobre o que se fala e com quem se fala). O autor alemão, aqui

14 Uma digressão nova aqui pode ser buscada, uma vez que as formas pelas quais nos narramos nas sociedades

ocidentais seguem esquemas extremamente antigos: a identidade, muitas vezes, é marcada pela exceção, aonde a normalidade por aonde uma vida corria até então é interrompida, o que nos coloca em movimento para a criação de um novo significado e de uma nova normalidade. Base interpretativa sobre o qual os gregos pensavam o seu teatro e os efeitos que ele causariam no público – somente há história, para esta tradição, quando há exceção (quando o carro quebra, quando se descobre grávida, quando se perde o emprego), em um processo que conduz a catarse (purga dos defeitos) do público. (CARVALHO, 2010).

oferece para nós as chaves que permitem entender estas condições de possibilidade de uma narrativa, abrindo portas metodológicas quanto interpretativas:

a) Pela necessidade de orientação temporal, na tentativa do sujeito, pela via da investigação no tempo, organizar e dar sentido ao contingencial e a experiência no tempo;

b) Por meios de diretrizes de interpretação, por onde a experiência do passado, seja na forma de memória, relato, etc., pode ser codificada e aceita como válida;

c) Métodos, por onde o passado é analisado e alocado dentro das diretrizes de interpretação;

d) Por meio de formas de representação das experiências – uma determinada estética que permite a organização da narrativa para um determinado público;

e) Funções de orientação temporal fundamentada e representada em um agir humano e em concepções de identidade. Falando de outro modo, as experiências temporais orientadas se convertem em modelos interpretativos e morais a nortearem as ações do grupo.

Em certo sentido, retomando a discussão acerca da consciência histórica, estamos tratando aqui dos elementos sobre os quais uma determinada consciência no tempo se desenvolve (pelo exercício da narrativa, mediante as “ferramentas conceituais” disponíveis em uma determinada cultura), como também auxilia o desenvolvimento da consciência histórica da cultura de onde ela saiu. É uma discussão relativamente hegeliana: se a contradição entre vontade individual e a coletiva levou o espírito se desdobrar dentro do tempo, em uma perspectiva de progresso, o mesmo se dá na alquimia histórica de uma determinada forma de narrativa e identidade.

Em uma história ao autor mostrada (escrita por um colega de faculdade), uma mulher, em recusa à obrigação imposta pela sua tribo de se casar com o pajé local, atirava-se de uma cascata, diante dos olhos de todos, desaparecendo para sempre. A partir daí, incorporou-se dentro da tribo esse mesmo salto feito pela moça, aonde os jovens da aldeia, em prova de coragem, deveriam repeti-lo em um feito que as levava a arriscar a própria vida. O que se quer dizer aqui? Que a transgressão da norma moral, serviu de exemplo, por aonde toda uma nova interpretação das velhas regras é refeita, transformando essa transgressão em nova norma. Em certo sentido, o ato da jovem, ao se atirar da cascata, feriu a identidade do grupo mantida até então – sendo incorporada ao conjunto de leis morais que constituíam a tribo como forma de restaurar (em parte) a identidade ferida.

Claro, trata-se se um exemplo hipotético retirado da literatura, mas exemplifica a dinâmica por aonde a identidade, pela narrativa e organização dentro do tempo, configura uma dada experiência e se converte em moral. Outros exemplos de convencimento e

reconhecimento são possíveis, em uma dinâmica imputadora de sentido pela narrativa que Rüsen identificou em três elementos (2010, p. 163):

a) Estratégias políticas de memória coletiva: quando a necessidade de orientação temporal dentro do tempo converge com as funções de orientação temporal. Os próprios vlogs, enquanto narrativas autobiográficas expostas na rede, servem tanto para significar os vlogueiros que as produzem quanto os próprios jovens que as assistem;

b) Estratégias cognitivas de produção de saber histórico: aqui, o convencimento se dá pelas formas pelas quais o passado é interpretado e transformado em narrativa histórica. Nas modernas sociedades, tais processos são científicos; em sociedades tradicionais, o processo é dado pela organização poética (os rapsodos gregos e griot africanos, por exemplo);

c) Estratégia estética e poética da retórica e representação: o como falar é tão importante quanto o quê falar. Então, o convencimento e reconhecimento de uma narrativa histórica se dá pela dimensão estética.

Tais elementos não são estanques: muito pelo contrário, organizam-se de formas mil a fim de garantir o convencimento a partir de uma determinada estratégia narrativa. Formas contemporâneas de ciência e relatos testemunhais se pautam muito mais no segundo aspecto, enquanto que a questão estética é mais próprio de narrativas de caráter literário (uma ficção que não consegue passar sua mentira enquanto verdade é um bom conto?). Mas o fato de um elemento sobressair-se sobre os demais não significa que os outros não estão presentes. Combinavam-se em diferentes graus, mas estão sempre presentes.

Entra aqui a questão paradigmática de uma narrativa – uma vez que os critérios que organizam e definem como as narrativas em um determinado momento devem ser são definidos pela cultura histórica, em sua historicidade. Cada cultura, conforme o que já foi escrito, possui critérios próprios para validar suas sentenças – o que inclui a moderna sociedade ocidental e a história enquanto ciência.