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3.4.1 Conceito de Educação

De uma forma muito simples, educação pode ser descrita como a produção, dentro do homem, da humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelos homens em seu conjunto. Nessa tarefa, caminham juntas uma concepção antropológica – afinal, o que nos torna humanos – como também os meios pelos quais esse intento pode ser realizado – metodologias da educação (SAVIANI, 2013, p. 13).

Temos implícita, aqui, a noção de cultura histórica, uma vez que a concepção do que é

humano é algo herdado, reproduzido e reinterpretado dentro de cada um dos períodos

históricos, e pressupõe diversas coisas: formas de se comportar, linguagens próprias para cada contexto, estilos de música, maneirismos diversos, um humor benevolente ou sarcástico, etc. O ponto principal aqui é a síntese, dentro do corpo individual, de uma cultura histórica – tarefa que foi realizada, ao longo dos séculos, de diferentes maneiras: dentro da própria comunidade, em uma indistinção do processo de vivência cotidiana; pela tutelagem, que deixava os jovens aos cuidados de homens de reconhecida sabedoria e conhecimento (como na relação de Alexandre o Grande e Aristóteles, ou na de Maquiavel e César Bórgia); ou através da instituição escolar moderna.

Aqui se torna imprescindível retomar o conceito de habitus apresentado por P. Bourdieu, tanto no que se refere ao “funcionamento sistemático do corpo socializado” (2012, p. 62), quanto na noção de história incorporada:

Para escapar as alternativas mortais nas quais se encerrou a história ou a sociologia e que, tal como a oposição entre o acontecimento e a longa duração ou, noutra ordem, entre os “grandes homens” e as forças coletivas […] basta observar que toda a ação

histórica põe em presença [grifo do autor] dois estados da história (ou do social): a história no seu estado objetivado, quer dizer, a história que se acumulou ao longo do tempo nas coisas, máquinas, edifícios, monumentos, livros, teorias, costumes, direito, etc., e a história no seu estado incorporado, que se tornou habitus. Aquele que tira o chapéu para cumprimentar reativa, sem saber, um sinal convencional herdado da Idade Média no qual, como relembra Panofsky, os homens de armas costumavam tirar o seu elmo para manifestarem as usas intenções pacíficas. Esta atualização da história é consequência do habitus, produto de uma aquisição histórica que permite a apropriação do adquirido histórico (BOURDIEU, 2012, p. 82-83).

O habitus, uma vez que pode ser entendido como a incorporação de uma determinada cultura histórica, o que pressupõe, por sua vez, uma determinada relação com o passado, em um processo que passa pela noção de consciência histórica anteriormente ditada. Assim, temos, em certo sentido, influenciada pela nossa relação com o social, tanto a maneira pela qual enxergamos o presente, mas também fazemos as perguntas ao presente – aquilo que, para nós, são considerados problemas válidos. A sociedade, em certo sentido, pergunta através de nós.

É importante salientar que existe uma relação política intrínseca entre a cultura histórica e tudo aquilo que ela oferece, e a consciência histórica (“determinada” pelo habitus). Isso porque, todo esse saber acumulado ao longo do tempo, só se torna acessível aos indivíduos no instante em que estes estão aptos para recebê-lo – Bourdieu descreve essa “propensão do corpo” como não somente um dado “saber” adquirido (mesmo inconscientemente), como também o interesse em torno daquilo que é referente a este saber – somente reajo contra aquilo que me atinge. Ou, retomando uma velha frase, as estruturas são

estruturantes porque estão estruturadas (p. 9). O habitus é, ao mesmo tempo, garantia da

incorporação do saber como também garantia de sua reprodução.

3.4.2 Aprendizagem Histórica

Aprendizagem histórica é o processo pelo qual se adquire autonomia e liberdade em relação a nossa própria cultura histórica, o que pressupõe, por um lado, um desenvolvimento qualitativo tanto da forma pela qual se experiencia o passado (simplesmente conhecemos melhor nossa história), como, também, pela qual formulamos perguntas para este mesmo passado na relação dialógica com o presente. Ou, falando em outros termos, como se dá o processo de melhoria e complexificação da consciência histórica.

Nesse sentido, essa melhoria só é possível mediante o cumprimento de certos requisitos, tais como: o caráter histórico da realidade – o que existe nem sempre foi e provavelmente não sempre será; a relação entre o conhecimento histórico e a subjetividade dos alunos, o que pressupõe estranhamentos e questionamentos que somente podem ser resolvidos com o apelo ao passado; uma relação argumentativa entre dos sujeitos diferentes;

e, por fim, o apelo a natureza estética e diversa da história humana em suas diferentes manifestações (RÜSEN, 2010, p. 48). Assim sendo, abandona-se a disciplina enquanto um mero acúmulo de informações e converte-se o passado em conhecimento histórico15.

Essas questões passam também pela necessidade de reafirmação da história enquanto ciência dentro da sociedade que, em certo sentido, somente ganha sentido no contato com os “não iniciados dentro do saber histórico” (RÜSEN, 2010, p. 32). Ganha sentido porque retoma sua função social que lhe fora tomada (pela cientificidade historicista fechada em si mesma pela sua autoimportância dada), de organizar a experiência prática dentro do tempo; e também porque legitima sua função política dentro da sociedade (uma vez que os entes coletivos que lhe davam sentido, tais como nação e Estado, entraram em declínio), uma vez que o desenvolvimento da consciência histórica, ao mesmo tempo, permite a autonomia dos indivíduos frente ao seu contexto cultural e social e também lhe dá possibilidades de futuro, de modo que esse contexto não lhes limita mais (ou limita menos e de outras formas – deixa de ser legítimo por si só).

Fica evidente, dentro deste paradigma, que a educação é um processo político, por onde projetos diversos encontram sua síntese e reprodução dentro dos ambientes educacionais, como, por exemplo, no ambiente formal de ensino. O educador encontra-se entre a cruz e a espada, em um compromisso ético entre o que deseja os seus superiores e, por outro lado, o que será feito de seus alunos (considerando aqui um professor que, espera-se, preocupe-se com eles). No caso do educador ligado à história, é possível afirmar que sua gênese enquanto profissional é intimamente ligada à figura do Estado-Nação, que organiza o sistema escolar moderno no intuito de legitimar-se perante suas populações (HOBSBAWM 2012, p. 44). O que nos leva de volta, por sua vez, ao problema do historicismo enquanto ciência histórica – filho bastardo do iluminismo – que legitima o Estado pela cientificidade, e tem o professor como seu “testa de ferro”. O que, por sua vez, nos traz de volta a questão da consciência histórica: nossa capacidade de compreensão, muitas vezes, é mantida no nível mais elementar – passado como repetição, naturalizado em si mesmo. A educação, assim, torna-se um fator de desumanização do humano, uma vez que priva os educandos da capacidade reflexiva e racional, propriamente humana, de dar sentido à própria existência com liberdade (CUNHA, 2016, p. 86-87).

15 O autor, a fim de ilustrar a questão acima, lembra de uma situação ocorrida há alguns anos. Um amigo, em

uma situação de descontração, desabafou angustiado que tinha um profundo medo de que no fundo poderia ser homossexual, que se talvez tivesse relações com outro cara poderia gostar e mudar a sua orientação. Em resposta, os outros dois amigos presentes soltaram diferentes respostas, mas com profundas relações entre elas. A primeira, que ele seria realmente homossexual no instante em que tivesse um envolvimento emocional com um indivíduo do mesmo sexo biológico; a segunda, formulada por um historiador, de que o fato de ter relações sexuais com um indivíduo do mesmo sexo não era sintoma de absolutamente nada: os antigos gregos praticavam a homossexualidade com toda a naturalidade do mundo, sem que isso fosse pressuposto para coisa nenhuma. Incrédulo, o angustiado amigo respirou aliviado: em certo sentido, o passado, se mal analisado, dá origem e reproduz problemas. Contudo, uma análise histórica realmente abrangente é sanadora.

Se, retomando o conceito de educação, de produção do humano, que sempre é

histórico, temos que ter em mente que o processo de educação histórica é um processo aberto,

no qual, em certo sentido, existem apenas pontos de partidas. O humano nunca deve ser um limite, mas sim um princípio, a ser pensado não somente dentro do contexto histórico que o produziu, em uma análise crítica do que subjaz a esse humano, mas também como um suporte que é incapaz de, por si mesmo, compreender o homem em sua totalidade:

[…] enquanto ser humano, aberto a um mundo que não se reduz ao aqui e agora, portador de desejos e movido por eles na relação com os outros seres humanos; – enquanto ser social que ocupa uma posição no espaço social e que está inscrito em relações sociais; e – enquanto ser singular, como aquele que tem uma história, que interpreta e dá sentido a esse mundo, à disposição que ocupa nele, às relações estabelece com os outros seres, à própria história e sua singularidade. Esse sujeito, que é um ser humano, social e singular age no e sobre o mundo, se produz e é produzido através da educação, num processo nunca completamente acabado e que só é possível mediante a interação com o outro na interação social (CUNHA, 2017, p. 1).

Retomamos aqui um princípio importante: se é história, a escrita dela, baseia-se na amizade e compaixão, então se deve aqui, quando se educar e escrever a história, entender que tudo é histórico, inscrito no tempo e, portanto, digno de nota e de escuta, em uma atitude que deve nortear práticas educativas diversas. Quando F. Nietzsche criticou o homem moderno, preso às suas morais e preconceitos indolentes, comentou: “[…] um rio imundo é o homem. É preciso ser um oceano para acolher um rio imundo sem se tornar impuro” (2011, p. 14). Mas como se converter em oceano? Talvez pelo amor à vida em sua totalidade:

[…] Cada um é necessário, é um pedaço do destino, pertence ao todo, está no todo – não há nada que possa julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir, comparar condenar o todo… Mas não existe nada fora do todo! – O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo do ser não pode ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como sensorium nem como espírito, apenas isto é a grande libertação – somente com isso é novamente estabelecida a inocência do vir-a-ser [….] (NIETZSCHE, 2006, p. 46-47)

A história enquanto disciplina que não se define por um objeto específico, e tomando para si esta função de organizar uma determinada experiência dentro do tempo, não pode ficar fechada em uma única interpretação dada pelos especialistas, mas, pelo contrário, ser aberta a todos os questionamentos que somente podem ser dados com o contato com a humanidade cotidiana. Mas, pelo desenvolvimento assim dado da disciplina, emancipamos, pela via da ampliação da consciência histórica, um acerto desta mesma humanidade com o seu próprio passado, em um caminho cada vez mais emancipador. Ou, falando em termos do próprio Nietzsche, a capacidade de entender que tudo existe no tempo, no devir, e é digno de nota, luta e entendimento, acima dos preconceitos, colocando-nos em estado de constante aprendizagem.