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Cibernética e Filosofia: O Dilema da Síntese

A Cibernética é um conceito cuja formulação devemos à Filosofia, a Platão mais especificamente. Mas a Cibernética não é mero objeto da Filosofia. Trata-se de um processo pelo qual, ao dialogarem, Cibernética e Filosofia “informam-se”, isto é, criam reciprocamente determinações e possibilidades. Na atualidade, a Cibernética traz para Filosofia, senão a solução de velhos problemas, a possibilidade de novas equações para os impasses que perpassam a história da disciplina. Evidentemente, o conceito de “interface” é atual. Entretanto, é sempre com os olhos do presente que reconstruímos o passado e, nesta medida, o modificamos. É justamente aplicar este “olhar” que pretendemos no presente estudo.

A expressão “interface”, no sentido que utilizamos aqui, serve para facilitar a compreensão do quanto a noção de cibernética de “controle” é relevante à Filosofia nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, procuraremos demonstrar que a própria noção de cibernética deve sua existência ao conceito de controle, lembrando que os laços que ligam cibernética e controle já estavam desenvolvidos, e articulados, na própria Filosofia clássica.

Atualmente, discutir Cibernética e controle implica também compreender o papel das “interfaces”, já que a noção de “interface” tem uma importância decisiva tanto do ponto de vista lógico e filosófico como, sobretudo, político e prático. A definição do dicionário pode ser um bom começo:

“Interface s.f. 1 elemento que proporciona uma ligação física ou lógica entre dois

sistemas ou partes de um sistema que não poderiam ser conectados diretamente. 2

área em que coisas diversas (dois departamentos, duas ciências, etc.) interagem 3 INFORMÁTICA fronteira compartilhada por dois dispositivos, sistemas ou

programas que trocam dados e sinais 4 INFORMÁTICA meio pelo qual o usuário interage com um programa ou sistema operacional (por extensão, DOS, Windows)

5 GEOFÍSICA superfície que separa as camadas sísmicas da Terra 6 FÍSICA

superfície definida pela fronteira entre dois sistemas ou duas fases INFORMÁTICA meio de interação do usuário com um programa ou sistema operacional que emprega gráficos (ícones e janelas) na edição de documentos, na utilização de programas, dispositivos e outros elementos, tendo como principal dispositivo de entrada o mouse ETIMOLOGIA inglesa. interface (1882) idem.” 64 (Grifos nossos).

Entretanto, antes de tratar do papel da interface na formulação estratégica, na construção de um novo tipo de Estado, cabe recuperar o sentido da relação original existente entre a Cibernética e a Filosofia, estabelecida ainda pela Filosofia clássica.

Nos dias de hoje, a importância da Cibernética para a Filosofia, está baseada em dois aspectos cruciais: uma nova perspectiva para a abordagem da “dualidade” (das “contradições”) e um estatuto inovador para a construção da “síntese”. Naturalmente, tratamos da Cibernética atual, que lida com a noção de “sistema aberto”, e não dos conceitos dogmáticos estabelecidos pela Cibernética no século passado. A própria noção de um “sistema aberto” seria incongruente para os conceitos cibernéticos baseados no estrutural Funcionalismo, e na Teoria da Informação, muito em voga nos anos 70 do século XX. O que procuraremos demonstrar é que tanto a Filosofia quanto a Cibernética foram concebidas a partir da perspectiva de “sistemas fechados”, enfoque que, atualmente, procuram superar. Trata-se de um processo em andamento, mas o fato é que Cibernética e Filosofia procuram hoje conceber a si mesmas e a própria realidade desde a percepção de “sistemas abertos”. Para compreendermos melhor a possibilidade de “encontro” e de “diálogo” entre a Cibernética e a Filosofia, em sua luta para superarem o dogmatismo e atualizarem sua percepção, é importante entender, no interior da Filosofia, como foram abordadas as questões relativas ao problema da dualidade e a natureza do estatuto da síntese.

A Cibernética representa a possibilidade de retomar, simultaneamente, o sistema ternário de Platão e a unidade (“substância”) de Spinoza. Algo pode ser “muitos” e “uno” ao mesmo tempo. Isto é possível porque, para a Cibernética, as contradições (múltiplas ou duais), jamais se desfazem na síntese. Com isso, a cibernética desfere um poderoso golpe no dogmatismo, seja ele encarado como um sistema dual em que há o “necessário” predomínio de um contrário sobre o outro (ficando a história humana como uma mera trajetória de um destino já prefigurado), seja como uma unidade absoluta que formalmente reconhece a dialética, mas que já contém dentro de si (onisciência) a chave de todo o futuro humano.

Essa compreensão, fornecida pela Cibernética e posta à disposição da Filosofia, que permite retomar a percepção ternária e aberta do mundo, deve-se ao processo pelo qual a

Cibernética concebe a síntese: um momento que tem estatuto de realidade (é cognoscível, tangível, materialmente determinado), mas que é simultaneamente provisório, recorrente às condições que lhe deram origem. Faz, assim, uma notável síntese entre duas das principais tradições da Filosofia: a que percebe o mundo como realidade articulada (totalidade) e a que percebe a realidade como algo dinâmico que nunca pode ser completamente conhecido65 (ceticismo, de Heráclito a Kant).

Essa percepção da Cibernética tem uma decorrência (como teve o sistema de Agostinho/Aquino/Hobbes) sobre o conceito de Estado enquanto realidade teórica e prática. Como os nexos particulares não se “desfazem” no momento da síntese, o Estado como totalidade articulada representa, sim, o corpo social, mas deixa de ser sua “encarnação absoluta, onisciente e onipotente”.

Essa preocupação é claramente exposta no documento66 redigido por Daniel Herz67, para o FNDC68, do qual citamos um fragmento:

“A primeira estratégia é a construção do controle público, como base de relações democráticas que atribuam à sociedade condição de iniciativa diante do Estado e do setor privado. Estas novas relações pretendem revolucionar as bases do poder real, neste país, com a superação da mistificação do Estado como encarnação

onisciente e onipotente da universalidade e detentor exclusivo do monopólio da

65 Adelmo Genro Filho retoma, com particular felicidade, este aspecto da tradição cética sem, no entanto, deixar

de reconhecer a cognoscibilidade do mundo. “(...) O pensamento pode, em certa medida, prever o que está nascendo se compreender a totalidade do fenômeno em seu desenvolvimento anterior e suas contradições atuais. O que está morrendo, então, não desaparece sem deixar vestígios, ele morre e passa a viver na substância do outro e, assim, deixa sua herança, mas não é mais ele. b) O que está nascendo não é o que morreu sob outra forma, já que aquele morreu efetivamente. Assim, há algo de surpresa real, inesperado, que nunca pode ser previsto e compreendido inteiramente antes de aparecer. E mesmo depois, a compreensão é relativa e

provisória, pois não sabemos integralmente o que o novo vai deixar ao tornar-se velho e sucumbir. Não fosse assim, uma filosofia genial poderia apreender, de uma vez por todas, a realidade em todos os seus desdobramentos.” 65 (Grifos nossos). cf. GENRO FILHO, Adelmo. Marxismo Filosofia Profana, Porto

Alegre: Ed. Tchê Ltda., 1986, p.45.

66 HERZ, Daniel. Bases de um programa para a democratização da comunicação no Brasil - Proposta de

caminhos e atitudes para transformações revolucionárias na esfera pública do país, (FNDC), Plenária de

Salvador: julho de 1994.

67 Daniel Herz jornalista e escritor, escreveu o livro “A História Secreta da Rede Globo”. Para efeitos deste

trabalho, o que importa é que Daniel idealizou e levou à prática o Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional (CCS). O CCS inaugurou um novo método de operar transformações revolucionárias na esfera pública, presidido pelo controle dos custos. Boa parte da trajetória de Daniel, na luta pela democratização da comunicação, é uma ilustração prática sobre o uso da cibernética aplicada à política. No caso, com o próprio Daniel fazendo às vezes de “interface”. A mudança revolucionária do Estado (pouco importa se operada por métodos pacíficos ou não) é, na realidade, a criação de um novo Estado.

68 Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC). Entidade que congrega a OAB (ordem dos

Advogados do Brasil), a CNBB (Confederação Nacional de Bispos dos Bispos do Brasil), a CUT (Central Única dos Trabalhadores), e outras dezenas de entidades, nas questões da democratização da comunicação no Brasil.

fortalecido no seu papel de regulador e qualificador das práticas sociais, com uma

ação substantivamente legitimada pelas novas relações. Estas transformações serão buscadas com o estabelecimento de relações multilaterais, nas quais se destaca um sistema de mediações institucionais que deverá permitir a interação da sociedade com o Legislativo, com os órgãos administrativos do Governo Federal, com as "entidades pensantes" do Estado, com a representação do setor privado e

com as massas de consumidores de meios de comunicação. Também deverão possibilitar a capacitação e a integração dos setores organizados da sociedade entre

si. A construção do controle público deverá corresponder ao advento de práticas democráticas na elaboração de políticas públicas” 69(Grifos nossos)

Despida de sua “onisciência”, a própria noção de soberania perde o sentido reificado e fantasioso que adquiriu com o Tratado de Westfália (1648); torna-se possível uma soberania que, sendo efetiva (territorial, armada, com aduana), seja compartilhada por um sistema de múltiplos Estados que não “se desfazem” no momento da síntese, o Estado multinacional.