• Nenhum resultado encontrado

Hemisfério Como “Interface”

No documento Uma Concepção Cibernética de Integração (páginas 91-100)

7. O movimento e a transformação conduzem à superação e não ao

2.9 Hemisfério Como “Interface”

Marx, ainda em 1850138, tratando sobre o papel da descoberta do ouro na Califórnia, anteviu – note-se, mais de uma década antes da Guerra Civil Americana – que a descoberta do ouro teria um papel na modificação da jurisdição territorial do Estado americano, o qual passaria a abarcar vastas porções do sul da América do Norte (então pertencentes ao México), bem como a implicar um controle (Marx chega a cogitar ocupação) na América Central e na construção de um canal que ligasse o Atlântico ao Pacífico. Com isso, Marx também previu que os Estados Unidos se converteriam na grande potência do Pacífico.

Como se sabe, Marx não era religioso, muito menos puritano; portanto, não acreditava em qualquer espécie de “destino manifesto”. No entanto, fez uma projeção estratégica realista que, em essência, cumpriu-se escrupulosamente. A antecipação de Marx não é obra de um visionário. Trata-se da aplicação de um método. Marx via a realidade como algo vivo e dinâmico. “Enxergava” as redes de telégrafo, a malha ferroviária e a rede de canais fluviais a partir da descoberta das minas, envolvendo e recobrindo toda a América do Norte em um único “sistema”. O que aqui, em linguagem cibernética, denominamos “sistema”. Celso Furtado condensou essa percepção na categoria de “centros de decisão” 139. Trata-se da compreensão de que a incorporação das vastidões americanas ao dinâmico núcleo industrial nortista teria como resultado uma redefinição da territorialidade política.

É graças ao fato de Furtado ter “codificado” aquilo que em Marx parece mera intuição– a categoria de “centro de decisão”, é que podemos perceber que o pólo industrial comporta-se como uma interface. Converte as regiões periféricas ao domínio do capitalismo e do industrialismo como condição mesma para o sócio-metabolismo de mercadorias e produtos industriais. A categoria de centro de decisão é que nos dá a medida e a extensão do dilema que vivemos: ou bem o Brasil consolida-se como centro de decisão e, para isto, incorpora à

138 Deslocamentos do Centro de Gravidade Mundial Karl Marx - Fevereiro 1850 - Dados fornecidos pela

Seção Mia em português - Escrito: 1850. Primeira edição: Artigo publicado na Nova Gazeta Renana. Revista Política e Econômica n.º 2 Fevereiro de 1850. Fonte: amavelmente cedido por Geoeconomia. Tradução: Jason Borba. HTML de José Braz para o Marxist Internet Archive

http://www.marxists.org/portugues/marx/1850/02/deslocamento.htm (Acesso 06/01/2004)

esfera de seu sócio-metabolismo os países irmãos da América do Sul, ou bem é incorporado ao sólido centro de decisão representado pela Economia estadunidense.

Em relação ao caso estadunidense, lá as previsões de Marx não se realizaram “por acaso”, ou como mero fruto da “determinação” da Economia. As oportunidades abertas pela Economia (as minas da Califórnia) não poderiam ter sido devidamente aproveitadas, não fora a ação decisiva do sujeito afirmada através da vontade humana. A luta envolvendo a ocupação do meio-oeste (subproduto direto da descoberta do ouro na Califórnia) envolveu a definição da condição de livres ou escravagistas destes novos territórios, o que culminou na Guerra da Secessão. O esforço de Lincoln, como vimos, foi continuado por Theodore Roosevelt e pelos presidentes que enunciaram os corolários que examinamos acima e que permitiram o controle da América Central.

As projeções “fantasiosas” realizadas por Marx em 1850 sobre o futuro da América do Norte converteram-se em obra consumada do realismo político em final do mesmo século (através dos corolários e da ação de Theodore Roosevelt). No entanto, o que era “realista” na virada para o século XX tornou-se anacrônico apenas quarenta anos depois, quando MacArthur continua obstinado na defesa de “Laranja” contra a política de hegemonia mundial Franklin Delano Roosevelt.

A transição, aqui examinada, dos Planos Vermelho e Laranja para os Planos Rainbow, em especial “Rainbow 5”, Plano Dog e ABC-1, equivalem à renúncia à cláusula da Doutrina Monroe de que os EUA não se imiscuiriam em assuntos europeus, já que todos planos supunham a intervenção de maciços contingentes terrestres de forças americanas para definirem uma guerra em território europeu. Como tal intervenção era pensada para libertar a Europa ocupada pelo nazismo, a idéia de restituir o direito ao autogoverno aos povos cativos do III Reich tinha legitimidade inquestionável. Foi a “globalização” da Doutrina Monroe.

A II Guerra Mundial e o advento da Guerra Fria marcam a transição dos Estados Unidos da condição de potência regional à condição de potência mundial140. No entanto, um aspecto essencial deste processo é incluso. A construção da “territorialidade” estadunidense, que é dada através de dispositivos supranacionais, muda constantemente de configuração e, atualmente, através da “guerra contra o terror”, impõe uma agenda que implica um novo processo de “territorialização”. Desta feita, efetuados através de controles crescentes sobre diversos aspectos da vida de Estados soberanos (como acesso a tecnologias, posse de armas, atitude frente a grupos insurgentes ou terroristas, regime político interno), estendem-se para o mundo controles que antes eram exercidas no âmbito exclusivo das Américas. E, como na América Central, amiúde através da força.

Com alguma preocupação, é preciso constatar que as “fronteiras” da influência norte- americana serão definidas do mesmo modo que se iniciaram, ou seja, por meio da definição do grau de soberania real dos demais Estados americanos frente aos EUA. Em outras palavras, a condição mesma para o reconhecimento de um limite à expansão territorial americana (ainda que admitindo que será feita em bases supranacionais) está na construção de um Estado soberano territorial na América do Sul; este Estado, como implicitamente reconhece Mearsheimer141, imporá algum limite à influência dos EUA sobre as Américas.

140 Foi só durante a Guerra Fria que os Estados Unidos converteram-se em “superpotência”. Isto só foi possível,

em grande medida, devido ao advento da OTAN em 1949. Foi graças à Aliança Atlântica que capitais europeus e japoneses serviram como subsídio aos supergastos militares estadunidenses por mais de 40 anos. Esta relação entre os gastos militares e a conversão dos Estados Unidos em superpotência, com destaque ao papel cumprido pela Europa e o Japão, é examinada por Giovanni Arrighi no seu livro “O longo século XX”. “A nova orientação política que propuseram – o maciço rearmamento norte-americano e europeu – forneceu uma solução brilhante para os grandes problemas da política econômica norte-americana. O rearmamento nacional proporcionaria um

novo meio de sustentar a demanda, de modo que a economia não mais ficasse dependente da manutenção de um superávit de exportações. (...) e a estreita integração das forças militares européias e norte-americanas proporcionaria um meio de impedir que a Europa, como região econômica, se fechasse para os Estados Unidos. (...) Essa nova orientação política foi proposta ao Conselho de Segurança Nacional no início de 1950, e

o documento que a expunha (NSC-68) foi examinado e aprovado em princípio pelo Presidente Truman em abril. (...) As estimativas do Estado Maior eram da ordem de gastos anuais três vezes superiores ao valor

originalmente solicitado pelo Pentágono para 1950.” (Grifos nossos) ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: Editora da Unesp,

1996, p. 306.

141 DINIZ, Eugenio. Relacionamentos multilaterais na unipolaridade: Uma discussão teórica realista.

PUCMinas, 2004. Eugenio Diniz é professor do Departamento de relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas; membro do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos – IISS (Londres); membro do Grupo de Estudos Estratégicos.

Esta é a condição mesma para a existência de uma multipolaridade, alicerçada em um equilíbrio mínimo, que faça frente à perspectiva sombria de um Estado mundial.

Esta constatação não deve conduzir à conclusão precipitada de que a “missão” do Brasil é conter o Estado mundial. Seria uma percepção romanesca, quase bufa, do Destino Manifesto às avessas. Trata-se, isto sim, de perceber a importância relativa do Brasil (e principalmente da América do Sul), nos cálculos de poder dos competidores estadunidenses. Em suma, trata-se da percepção de que no âmbito do hemisfério pode ser decidida a equação acerca do equilíbrio mundial.

A idéia de hemisfério, retirada de seu contexto histórico e social, freqüentemente é enganosa; deduzir alianças internacionais, correlações de força e poder, a partir de artifícios geométricos, pode ser tão enganoso quanto trágico. Não foi esta construção a que fizemos aqui. Procuramos, ao contrário, demonstrar a construção da geografia a partir da intervenção humana, dos processos de integração e de formação dos centros de decisão econômica. No entanto, consideradas estas premissas – os processos políticos e sociais – não há porque ignorar as particularidades dadas pela geografia. De fato, o hemisfério ocidental une o norte ao sul do planeta e separa a Europa da Ásia. Reconhecer as determinações impostas pela geografia não implica, todavia, submeter a sociedade humana a seus ditames, configurando uma espécie de determinismo geográfico. Mesmo porque a história da epopéia humana é a história de como o homem escraviza e coloca a seu serviço o meio natural (onde se inclui o meio geográfico).

Aqui há que se perceber que o movimento que interessa ao Brasil não se resume na união, dada pelo meio geográfico, do sul com o norte. Ela tão-somente nos remeteria à ALCA. Reconhecida esta determinação, é preciso compreender que, para cumprir um papel mundial, ou mesmo subsistir como unidade estatal, o Brasil deve dispor do que a geografia lhe nega: ser o elemento de união, de intercâmbio, de ligação entre a Europa e a Ásia. Trata-se

de pensar a América do Sul como a interface que une o Oriente ao Ocidente142. Esta é a leitura de hemisfério que nos convém.

De resto, é preciso perceber que, além dos Estados Unidos, a América do Sul é o único continente do mundo que pode sediar um único Estado. Caso pareçam anacrônicas as considerações da velha geopolítica acerca de “hemisfério”, cabe resgatar uma reflexão de inegável atualidade. Trata-se do trabalho de Mearsheimer, um dos expoentes do “realismo ofensivo” estadunidense, analisado por Eugenio Diniz143.

Como leciona Diniz, a categoria principal de Mearsheimer é o reconhecimento do “poder parador da água” 144 (stopping power of water). O autor americano salienta que, a despeito dos avanços do transporte e comunicações, os oceanos são um enorme obstáculo à projeção de forças; a conquista de um território é feita pelas forças terrestres, são os exércitos que consolidam a ocupação. Portanto, a distribuição do poder mundial dependeria, em larga medida, da possibilidade da consolidação de uma territorialidade rodeada de água por todos os lados; de um Estado continental.

Mearsheimer considera que o país que lograr obter o domínio de um continente é o mais sério candidato àquilo que denomina de “hegêmona mundial”. Em resumo, o que Mearsheimer faz é uma síntese entre as antigas teses de Mahan145 e a experiência histórica

142 Constituir-se como síntese entre duas civilizações é, na realidade, erigir uma nova civilização. Este foi o

sonho de Cartago, destruída pelos romanos. Foi o projeto cartaginês de constituir um meio caminho entre Oriente e Ocidente que motivou Portugal a afirmar-se enquanto herdeiro deste aspecto do legado cartaginês. Portugal das grandes navegações pretendia ser uma síntese de civilizações. Como se sabe, Portugal sucumbiu à decadência de seu anacrônico sistema colonial. Nós, brasileiros, temos de elidir o risco de sermos destruídos como Cartago, ou de padecer da lenta decadência que acometeu Portugal. Mas, para encontrar nosso lugar no equilíbrio mundial, somos igualmente compelidos a nos reconhecermos como herdeiros das melhores pretensões de Cartago e Portugal: nos constituirmos enquanto uma nova civilização.

143 DINIZ, Eugenio. Relacionamentos multilaterais na unipolaridade: Uma discussão teórica realista.

PUCMinas, 2004. Eugenio Diniz é professor do Departamento de relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC-Minas; membro do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos – IISS (Londres); membro do Grupo de Estudos Estratégicos.

144 DINIZ, idem p. 4.

145 Mahan inspirou-se na supremacia inglesa para escrever seu clássico “A Influência do Poder Marítimo Sobre a

História”. Fazendo-se uma síntese muito empobrecida da obra de Mahan: o Almirante considera que se “a ilha do mundo” (hegêmona de Mearsheimer) semear “bases continentais” no “coração do mundo”, mantendo os países do “continente” divididos, a ilha, ao controlar o comércio e a circulação de riquezas, deterá em suas mão a equação do poder mundial. O livro de Mahan foi publicado ainda em 1859, e teve enorme influência sobre Theodor Roosevelt e sobre as conquistas americanas na América Central, no Atlântico e no Pacífico. Foi Mahan que, pela primeira vez, explicitou em termos programáticos o que os Estado Unidos deviam fazer para converter-

concreta dos Estados Unidos. Naturalmente, tal como Mahan, Mearsheimer conclui que a manutenção dessa vantagem depende de manter os demais continentes divididos entre si. O que, traduzido na linguagem anódina do americano, significa: “atuar no sentido de preservar as balanças de poder nas outras regiões do planeta.” É por isso que o Brasil, ao assegurar a continuidade de sua existência enquanto Estado soberano através da unificação sul-americana, estará (queira ou não) alterando o equilíbrio do poder mundial em benefício da multipolaridade.

Conclusão do Capítulo II

Este capítulo procurou demonstrar que as iniciativas mundiais dos EUA no sentido da integração supranacional tiveram como origem a resposta à iniciativa bolivariana de integração de Estados hispano-americanos, que culminou com a realização da conferência Pan-Americana de 1891. Procurou, em suma, demonstrar que a chave para o aumento de condições de barganha, isto é, de poder relativo a nível mundial, está na obtenção prévia do consentimento pactuado mediante esforços de integração supranacional. Tais esforços servem tanto de suporte “logístico” em nível regional como plataforma de projeção de força em nível mundial. Em resumo, a hegemonia norte-americana no mundo é tributária, em larga medida, dos processos envolvendo as emancipações políticas latino-americanas e de seus esforços de integração supranacional.

Como se vê, em mais de um século de iniciativas integracionistas que, conforme referido, principiam com a iniciativa bolivariana, seguida da proposta americana de pan- americanismo, a única novidade real em matéria de integração foi concebida pela diplomacia brasileira através da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSA). O espírito da CSA, desde logo, apresenta-se como tributário e herdeiro dessas duas grandes iniciativas. Todavia, vai além. Herda a perspectiva de solidariedade, liberdade e igualdade do esquema bolivariano original. Incorpora também o espírito do pragmatismo americano, ao conceber a integração

se na principal potência mundial, erigir-se enquanto Estado continental. Para maiores informações sobre Mahan, ver CROW, Philip A. Alfred Thayer Mahan: O historiador naval. In PARET, Peter (org). Construtores da

estratégia moderna. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exercito, Tomos I, 2001, pp. 589-631. Ver Também TOSTA,

como algo que articula estreitamente a segurança e o desenvolvimento em uma perspectiva factível e realista. Não obstante, a CSA não é uma mera colagem das propostas de integração anteriores, pois, ao fundir pólos opostos (idealismo e pragmatismo), cria a possibilidade de uma perspectiva cidadã de integração, na qual o indivíduo nem é prisioneiro de um ideal romântico do passado, nem mero objeto à disposição das conveniências avaras do vil metal146.

146Padre Francisco Muniz Tavares. In: BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. As Relações Perigosas: Brasil-

A participação dos Estados Unidos nas duas guerras mundiais definiu a configuração do sistema mundial de segurança. Mais uma vez, a Doutrina Monroe e o Destino Manifesto cumpriram seu papel. Woodrow Wilson e Franklin Delano Roosevelt, presidentes dos EUA durante as guerras mundiais, traduzem claramente esta oposição.

O credo de Wilson era uma mescla de puritanismo e liberalismo em doses mais elevadas do que as usuais, mesmo na América do Norte. Como presidente, homologou a Lei Seca; em um comportamento não muito comum para um democrata de sua época147 , associou-se aos grupos puritanos (os quais, curiosamente, na época de Wilson abrangiam os católicos locais148), que pregavam a abstinência, a castidade e como seus antecessores ainda no Velho Continente, a acumulação como sinal da “graça divina”.

Para indivíduos com essa concepção, o livre mercado e o trabalho duro são as respostas para todo tipo de problema social. Aliás, foi este o discurso em favor da Lei Seca. Os trabalhadores americanos viviam uma condição de super-exploração, como havia acontecido anteriormente na Inglaterra; os homens trabalhavam mais de dezesseis horas por dia; meninas convertiam-se em velhas antes de chegarem à idade adulta; as tecelarias e minas eram verdadeiras mós que trucidavam vivos meninos ainda imberbes. Ainda assim, grassava a mais negra miséria. Herbert Asbury149 nos dá um panorama das condições degradantes de pessoas vivendo em lúgubres cortiços, de famílias inteiras amontoadas em poucos metros quadrados e da falta de emprego que os deixava à mercê da prostituição e do tráfico de drogas. A resposta de Wilson e do Congresso americano para essa chaga social foi a de

147 A base eleitoral dos democratas no Norte era constituída, sobretudo, de imigrantes e chefes de gangues que

controlavam os currais eleitorais onde votavam as massas de imigrantes miseráveis que sequer falavam inglês. Embora, na “esquerda” do partido democrata, os liberais associassem sufragismo com o combate ao álcool, não era esta a tônica dominante no partido democrata, composto por líderes políticos que viviam da corrupção e da clientela com os gângsteres que controlavam o voto dos imigrantes.

148 Naquela época o epicentro do conservadorismo social era monopólio católico. Só mais tarde, saiu do âmbito

do catolicismo deslocando-se para o protestantismo na medida em que as hierarquias religiosas perderam terreno para o evangelismo de raízes populares. Só bem mais tarde no século XX a nova direita cristã associou-se ao republicanismo. MORRIS, Dick. Jogos de poder, Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Record, 2004, p. 29.

responsabilizar os próprios pobres, porque bebiam – o que resultou na Lei Seca. Esse sentimento do Congresso era partilhado por vasto setor das camadas médias, aterrorizado pela criminalidade150, o qual igualmente punha nos pobres a culpa por seus problemas. As sufragistas151 engajaram-se no combate ao álcool com empenho ainda maior do que em sua própria causa: montavam brigadas que faziam propaganda do voto contra a bebida e invadiam os bares para impedir que os maridos aí gastassem os salários nos bares152.

De modo análogo ao que fazia em seu país, responsabilizando os pobres pela própria pobreza, Wilson responsabilizava o povo alemão pelos atos do seu Estado. Esse é o sentido punitivo do Tratado de Versalhes e de seus equivalentes. Wilson acreditava no império da lei; via na Liga das Nações uma espécie de polícia mundial que preventivamente estabeleceria o castigo justo aos transgressores. Como se vê, a Sociedade das Nações (SDN) 153 situa-se em uma zona cinzenta entre um sistema de governança e um governo mundial, o que gerou as objeções de Cabot Lodge154 e, de resto, inviabilizou a Liga das Nações mesmo como mecanismo de governança.

Para Franklin Roosevelt, pelo contrário, a paz só poderia ser fruto do equilíbrio, resultado da dispersão de potência político-econômico-militar. Nesse sentido, a ONU e Bretton Woods155 dizem respeito a meios diferentes para colimar com este fim. Tratava-se de mecanismos que supõem a integração político-econômica, o financiamento do desenvolvimento sustentado e um Conselho de Segurança da ONU (CSNU), que representaria

150 “(...) os gângsteres e outros criminosos percorriam toda a cidade sem nenhum controle, regalando-se numa

orgia de pilhagens, assassinatos e desordens. Cidadãos respeitáveis eram assaltados à mão armada em plena luz do dia na Broadway e outras ruas importantes, enquanto [guardas] metropolitanos e municipais desancavam-se uns aos outros com porretes, tentando decidir quem tinha o direito de interferir. Gangues de ladrões e arruaceiros invadiam e saqueavam lojas e outras casas comerciais, paravam as diligências e forçavam os passageiros a entregar dinheiro e jóias; as residências não tinham nenhuma proteção a não ser fechaduras, trancas fortes e a valentia de seus donos.” ASBURY, Herbert. As gangues de Nova York, São Paulo: Editora Globo, 2002, p. 118.

151 Adeptas do direito ao voto feminino.

152 MORRIS, Dick. Jogos de poder, Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Record, 2004, p. 29. 153 O mesmo que Liga das Nações.

154 Que exigia, como feito nos anos 70 do século XX, autorização do Congresso para deslocamento de tropas

No documento Uma Concepção Cibernética de Integração (páginas 91-100)