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Cibernética e Soberania: Integração e Comunicação

No Alcebíades I, tido como um esboço de A república, Platão relaciona a noção de cibernética, tida como “arte de pilotagem”, à gestão de governo70, para demonstrar a importância do conhecimento (Filosofia) no exercício das funções públicas. Comparando a direção do governo à condução de um barco, postula que em ambos os casos são exigidos conhecimentos específicos para “pilotagem” caso se queira assegurar um fim; seja ele um destino ou um objetivo.

Parece clara desse modo, a noção da Filosofia como instrumento cibernético de controle. É a Filosofia que articula os elementos cardinais de Platão: a virtude, a justiça e a sabedoria de modo sinérgico, isto é, para produzir o bem-comum. A Filosofia é encarregada de defender a virtude como fundamento, a justiça como critério, e a sabedoria como alicerce

da direção do governo, tal como a “alma” (consciência), deve ser dirigente do corpo71. Como nem sempre virtude, justiça e sabedoria articulam-se desse modo, fazê-lo seria o papel da Filosofia.

69 Herz, Daniel. Programa do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Salvador: julho de

1994, p.p. 09B e 10 a.

70 PLATÃO. Alcebíades I eII, Lisboa: Ed. Inquérito Ltda., s.d, p.p.: 62, 67, 78-79,82,86,102-104,125, 127. 71 PLATÃO. Alcebíades I eII, Lisboa: Ed. Inquérito Ltda., s.d, p. 92.

Na República72, Platão pretende ter provado a utilidade da Filosofia, a partir da constatação prática de sua inutilidade.O paradoxo é aparente. O que Platão reconhece é que a Filosofia é inútil para os que permitem que a exaltação dos sentidos governe o corpo e que o patrimonialismo73 dirija o governo. Do contrário, para que a consciência governe o corpo, e o interesse público presida o governo, considera imprescindível a mediação da Filosofia. Ela é que forneceria ao espírito os instrumentos para subordinar os sentidos à alma (no âmbito do corpo), e as premissas lógicas para submeter os interesses corporativos ao Estado (no âmbito do governo). Como aqui se percebe claramente, na cibernética de Platão a Filosofia é a “interface” que exerce o controle, tanto de organismos, como de sistemas (governo).

De um modo geral, o tratamento da dualidade, seja na lógica formal, seja na dialética, foi mediado pela noção de contradição, que tem um sentido diverso na lógica e na dialética, mas que, igualmente, “resolve-se” pela supressão (superação) de um dos contrários. Desse modo, o resultado possível da contradição (seja na lógica, seja na dialética) até então, tem sido a submissão ou redução de um pólo ao outro. Como veremos a seguir, a cibernética traz consigo a possibilidade da manutenção da contradição, no sentido de que um pólo não é jamais integralmente subsumido ao outro e, com isso, carrega um novo conteúdo filosófico, ético e social para a própria síntese.

Vejamos o sentido que a contradição tem na lógica formal. Ninguém melhor do que Aristóteles, o fundador dos Axiomas (postulados) da lógica formal, para enunciá-los:

72 PLATÃO. A república, São Paulo: Ed. Nova Cultural, s.d, pp.196-198. (488 a-e à 490a).

73 Patrimonialismo empregado aqui no sentido administrativo que, segundo Weber, designa o poder “puramente

pessoal do senhor” (p. 151); “Denominamos patrimonial toda a dominação que, originariamente orientada pela

tradição, se exerce em virtude de pleno direito pessoal, e sultanista toda a dominação patrimonial que, com suas formas de administração, se encontra, em primeiro lugar, na esfera do arbítrio livre, desvinculado da tradição.” (p. 152). (Grifos nossos). Cf. WEBER, Max. Economia e Sociedade vol. I. São Paulo: Ed. UNB, 2004. No tomo seguinte, Weber reforça este ponto de vista e desenvolve-o, patrimonialismo serve tanto para administração civil como para a militar, como se depreende: “Por fim, um fator que determina decisivamente o grau em que o exército principesco tem caráter ‘patrimonial’, isto é, é exército puramente pessoal do príncipe e, portanto, está a disposição dele contra os próprios súditos...”.(p. 245). Weber também refere à categoria com o sentido que usualmente atribuímos, de fusão de negócios privados com a gestão pública. “Originalmente, a administração patrimonial cuidava especificamente das necessidades puramente pessoais, sobretudo privadas, da gestão patrimonial do senhor. A obtenção de um domínio ‘político’, (...) significa então a agregação ao poder doméstico de outras relações de dominação, diferentes do ponto de vista sociológico somente em grau e conteúdo, mas não na estrutura.” (p. 240). (Grifos nossos). Cf. WEBER, Max. Economia e Sociedade Vol. II, São Paulo: Ed. UNB, 2004. Para efeitos deste trabalho, o significado que nos interessa é a noção de patrimonialismo enquanto “arbítrio pessoal”, mesmo porque o segundo significado era uma mera derivação lógica deste.

seja e não seja, como segundo alguns, teria dito Heráclito. Com efeito, não é

preciso admitir como verdade tudo o que ele diz. E se não é possível que os

contrários subsistiam juntos no mesmo sujeito (e acrescente-se a essa premissa as

costumeiras explicações), e se uma opinião que está em contradição com outra é o

contrário dela, é evidentemente impossível que, ao mesmo tempo, a mesma pessoa admita verdadeiramente que a mesma coisa exista e não exista. Quem se

enganasse sobre esse ponto teria ao mesmo tempo opiniões contraditórias.” 74

(Grifos nossos)

Estas opiniões de Aristóteles foram convertidas pelos matemáticos em “postulados” ou “Axiomas” (verdades que se admite, e não precisamos demonstrar), da lógica:

1) Princípio da identidade – “O que é, é”. Também pode ser enunciado da seguinte forma: “Dada uma determinada proposição ‘x’; ela é ela mesma”.

2) Princípio da não-contradição – “Uma coisa não pode ser, e ser, ao mesmo tempo”, que também pode ser enunciado: “Dada uma determinada proposição ‘x’, ela não pode ser verdadeira e não verdadeira, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”.

3) Princípio do terceiro excluído – “Se ‘a’ e ‘b’ são diferentes entre si, e se tanto ‘a’ como ‘b’ são diferentes de ‘c’, então ‘b’ não pode ser ‘c’, nem ‘a’ poder ser ‘c’”. De outra maneira: “Dada uma determinada proposição ‘x’, ela é verdadeira ou falsa, apenas.” (Não admite possibilidade intermediária, não há “talvez”). Deste modo, para a lógica formal, a “síntese” corresponde à integralidade de um dos pólos da contradição, jamais à sua combinação, como ocorre na dialética.

Há uma diferença sutil, mas significativa, entre os dois enunciados, que reproduzimos lado a lado, ilustrando cada um dos princípios. Os primeiros enunciados aplicam-se a qualquer realidade que possa ser objeto de apreensão lógica; o que inclui as coisas, sistemas e governos. Eles estão em conformidade com o “princípio da não-contradição” formulado por Aristóteles e transcrito acima. O segundo grupo de enunciados já foi elaborado tendo em vista restringir a validade do “princípio da não-contradição” exclusivamente a proposições analíticas, isto é, ao campo estrito da própria lógica. A referência a ambas as formulações, não obstante suas diferenças, visa demonstrar que a concepção de lógica, conforme explicitamente

formula Aristóteles, está baseada no “princípio da não-contradição”. Aqui ele serve de “interface” a partir da qual se infere o primeiro (identidade) e depreende-se o último, o do “terceiro excluído”. Afinal, seria impossível demonstrar o princípio de identidade (que uma coisa é ela mesma), senão pelo princípio da não-contradição. Uma ironia “dialética”, na elaboração da lógica formal, que visava justamente “expurgar” da Filosofia todas as “contradições” de Heráclito.

Nosso interesse neste ponto é duplo: registrar o impacto “subliminar” da lógica formal (psicológico, lógico, e lingüístico) e as objeções ao Estado multinacional. De um lado, procuramos explorar as dificuldades psicológicas, lógicas e lingüísticas que cercam as objeções à noção de soberania supra-estatal ou, como preferimos, de Estados multinacionais. Aqui, qualquer argumentação, a despeito de sua racionalidade, é demolida no “muro invisível” desta. Pois, aos olhos da lógica formal, parece uma incongruência, um absurdo em termos, falar de uma soberania que congrega soberanias.

A hipótese para elidir essa aparente incongruência e decifrar dialeticamente essa “esfinge” diz respeito ao papel que a comunicação cumpre no interior da cibernética. Em alguma medida, Habermas parece ter razão no que tange a uma imanência no processo de linguagem, a qual converteria as próprias palavras em “interfaces” que, ao aproximarem significados, conciliam também opiniões. Embora não se possa subsumir toda a ontologia a este aspecto benigno, a realização de uma “razão comunicativa” no processo de comunicação parece imprescindível a uma integração que se traduza em hegemonia coletiva. Sem levar em conta o papel da comunicação humana, no sentido da persuasão e do convencimento, parece impossível explicar uma soberania que congregue soberanias. Mais do que meras “salvaguardas”, há de haver um espaço real para a interlocução humana. Este “espaço” não é só físico ou virtual, construído apenas como instituição reconhecida (“Poder”), mas como “código” – como “processo” de comunicação. Aqui entra o papel do Direito, como um “código aberto”, processo em permanente construção, em sua tensão infinita de arbitrar direitos concorrentes, como os da liberdade e da igualdade. E, naturalmente, a oposição a qualquer “automação” do processo de decisão humana que, então, mesmo com instituições

abertas, fechará no “código” dogmático da norma toda a multiplicidade da vida. Então, o sonho da soberania que congrega soberanias se torna o pesadelo da prisão de povos e nacionalidades.

É o que ocorreria se a referência ao controle tivesse a Informática (e não a Filosofia) como sua origem e fonte principal. Com isso, quer-se registrar uma conclusão provisória: a despeito da presença de computadores, do peso específico da tecnologia ligada à disciplina da Informática (que é apenas um dos ramos da Cibernética), o processo de digitalização, do ponto de vista ontológico, é presidido mais pelas categorias da comunicação que, propriamente, da lógica formal. Afinal, a lógica formal é sinônimo do domínio da linguagem binária da informática, um código em que não existe lugar para o “talvez”.

Passemos, porém, a nos ocupar dos traços do método dialético para aprofundar a análise envolvendo sua oposição ao princípio aristotélico da “não-contradição” que, como vimos, é o principio reitor da lógica formal, da formação da percepção do senso-comum e da linguagem binária.

Para Adelmo Genro Filho (AGF), o método dialético possui traços específicos, que foram sintetizados em oito pontos. Note-se que sublinhamos a expressão “traços” porque Adelmo rejeitava qualquer espécie de dogmatismo, sobretudo aplicado à dialética, que implique o uso de termos como “propriedades” ou “leis”. Para esse autor a própria práxis humana (o movimento do Ser) faz e refaz os traços característicos do método, como se observa:

“1. A dialética se propõe a revelar “a coisa em si” do objeto. Isso implica em dois aspectos que se relacionam. Em primeiro lugar, aponta que a dialética quer desvendar internamente o objeto, o movimento e as conexões que emanam do seu interior e constituem sua concretude. Em segundo, que a dialética não acredita que

os objetos sejam incognoscíveis, ou seja, que contenham um segredo íntimo, o qual

jamais poderia ser revelado. A dialética crê nas possibilidades plenas do conhecimento, embora considere a verdade como um processo infindável que tem na práxis o seu critério.

2. A dialética supõe a existência de uma inter-conexão universal e estruturada. Seu