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4.5 Perspectivas de engajamento com as iniciativas comunitárias de TV

4.5.3 O ciclo da colaboração

Mauss (2003, p. 306) aponta que a noção de interesse está relacionada à busca individual do útil. Assim o interesse está atrelado ao prazer de encontrar algo que se buscou. Como exemplo, a atividade laboral é o ato de dar a vida, compartilhar seu tempo. No caso da TV Comunitária, cuja missão envolve o interesse comum, atos típicos da colaboração (a ação de compartilhar, receber e retribuir informações, conteúdos e saberes) podem promover atividade dialógica e intensificar a relação com a população local.

De acordo com a teoria da dádiva de Mauss, ações pautadas pela obrigação e pela liberdade se misturam e se sobrepõem numa dinâmica movida mais pelos sentimentos e sensações do que pelo valor pecuniário. Trazendo essa concepção para o estudo aqui proposto, e considerando as trocas que permeiam os produtos culturais, entendemos que além da noção de interesse e utilidade, o ciclo da colaboração (dar-receber-retribuir) proporciona a canalização de autoafirmação e em certo sentido, de poder. Sob este aspecto, a individualidade pode se sobrepor ao coletivo – questão que é alvo de debates em virtude dos objetivos sociais impostos à cultura pelos estudos críticos.

No entanto, nos processos de trocas oriundos de conteúdos culturais, em que a experiência vivenciada e o compartilhamento do vivido se complementam, torna difícil imaginar que o individualismo e a construção do coletivo sejam ações excludentes. Ao que parece, a individualidade não se configura como ameaça ao espírito comum, ao viver em comunhão. Nas relações sociais estabelecidas em comunidades a relação complementar entre ambos parece ser mais evidente.

Ora, ao consumir um produto cultural, internalizar a experiência daquele momento e usufruir deste simbólico para compartilhar, reapropriar ou alterar há em si prática voltada para o coletivo que, contudo, poderá ser amplificada se houver o engajamento ou a participação dos demais. Assim, se um indivíduo assiste um filme, sua identidade não deve ser diretamente relacionada ao produto em si, sendo mais importante o modo como se relaciona com esse conteúdo (CAMPBELL, 2006, p. 53) ou como ocorrem as mediações citadas por Martín- Barbero (1997). Segundo Campbell (2006), a observação desta contínua construção indica “quem somos”. Portanto, nosso eu real se configura a partir de gostos, combinação do que consumimos e dedicamos atenção, com base nas nossas reações e interações.

Nesse sentido, podemos ampliar a discussão para conjecturar como nossa identidade se consolida a partir das ações individuais direcionadas para o coletivo, visando o diálogo e a interação com o outro, tendo em vista a dinâmica das variáveis sócio, política, econômica e cultural em contexto macro. Por esta vertente, voltando ao exemplo do filme assistido, o ato de simplesmente compartilhar numa rede social online um trailer, ou realizar montagem de uma cena, ou ainda desenvolver um novo final para o roteiro, indica não somente uma construção artesã, mas também uma ação voltada para o coletivo. Como um estímulo ao debate e à troca, tal iniciativa pode desencadear o ciclo dar-receber-retribuir.

Em síntese, a partir de sentimentos e emoções individuais traduzidas em mensagens, o outro pode fazer parte deste universo construído e iniciar um envolvimento com o conteúdo divulgado, instaurando a possibilidade de retribuição seja através de uma simples menção, seja através de uma crítica ou produção de outro conteúdo. Através das NTICs e do espaço virtual possibilitado pela internet, a resposta pode ser entendida como um retorno ao ato de dar, compartilhar. E, por sua vez, pelas regras sociais estabelecidas nas atividades online, após receber a contribuição, é pertinente retribuir de algum modo.

Com esta indicação, devemos observar a reação das pessoas em relação aos conteúdos disseminados pelas TVs Comunitárias, buscando compreender não somente como se expressam através dos gostos individuais constituídos, mas também pela mediação de produtos culturais. Cabe levarmos adiante a questão: como as TVs Comunitárias se inserem no ciclo dar-receber-retribuir? Como são estabelecidas as relações presenciais? O que compartilham nas mídias sociais é útil e interessante para demais os indivíduos ao ponto de atraí-los e gerar envolvimento com a mobilização social em prol da comunicação comunitária?

As trocas desenvolvidas e disseminadas através da internet apontam que a estética nem sempre é fator determinante para atrair a atenção dos internautas. Vídeos caseiros com poucos recursos tecnológicos e sem orçamento geram engajamento e desencadeiam a evasão, a construção artesã e o ciclo do compartilhamento pautado pelo dar-receber-retribuir. Aliás, durante a entrevista (ver seção 4), o coordenador técnico da TV Comunitária de Niterói comentou sobre a similaridade dessas construções hoje disseminadas na rede social YouTube (com vídeos criados pela sociedade), sendo que no início do século XXI já eram transmitidas pelo canal comunitário a partir das contribuições da comunidade local.

No caso da comunicação comunitária, sua própria origem e missão são norteadas pelo ciclo da colaboração (PAIVA, 2007). Portanto, diante de possível atuação complementar através das mídias sociais, cabe avaliar em estudo futuro se o engajamento com um conteúdo

produzido pelos indivíduos do local e falando para a própria comunidade pode gerar empatia, sentimento de pertença e envolvimento compartilhado pelos valores comuns. Além das raízes sociais, fatores culturais podem ser importantes aliados para gerar envolvimento e consequentemente, atrair a atenção.

Pelo exposto, a construção artesã, a evasão e o ciclo da colaboração são ações identificadas por antropólogos nos processos de construção social. Aqui entendemos como três eixos principais, que embora não excludentes e únicos, possam indicar um caminho para avaliar o modo como a comunidade se relaciona com os conteúdos, sendo os meios de comunicação mediadores de relações sociais que implicam no estabelecimento de vínculos e na constituição de ações engajadas. Isto porque,

Há, nessa observação concreta da vida social, o meio de descobrir fatos novos que apenas começamos a entrever. Em nossa opinião, nada é mais urgente e frutífero do que esse estudo dos fatos sociais. Ele possui uma dupla vantagem. Primeiro, uma vantagem de generalidade, pois esses fatos de funcionamento geral têm chances de ser mais universais que as diversas instituições ou que os diversos temas dessas instituições, sempre mais ou menos acidentalmente tingidos de uma cor local. Mas, sobretudo, ele tem uma vantagem de realidade. Consegue-se assim ver as próprias coisas sociais, no concreto, como são (MAUSS, 2003, p. 311).