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2 PARTE II – DE QUEM É O PROBLEMA?

3.2 CICLO ECONÔMICO

Considerando reais as circunstâncias descritas por alguns estudiosos como Dória (1915) e Corrêa (1926), observa-se que a maconha estaria presente no Brasil desde os primórdios da colonização portuguesa porque os africanos escravizados a teriam introduzido clandestinamente e difundido seu uso para finalidades que os autores denominavam “entorpecentes” e, contemporaneamente, pode-se chamar de recreativas ou ritualísticas. Assim, teria havido um momento inicial de transações com maconha em meio a um universo mágico- espiritual e recreativo próprio à cultura de povos africanos escravizados no Brasil. Contudo, a revisão da literatura não identificou muitas hipóteses acerca desse tema; não havia, à época dos primórdios da colonização brasileira, uma cultura letrada capaz de legar à posteridade muitos indícios fiáveis sobre o modo de vida dos escravos.

Assim, subscreve-se a hipótese de Hutchinson (1975), identificando nos registros econômicos o que é possível chamar de um primeiro ciclo de atenção à maconha no Brasil. A revisão da literatura permitiu identificar que o cultivo desta planta foi estimulado pela Coroa Portuguesa no sul do Brasil-Colônia a partir de meados do século XVIII (BENTO, 1992; MENZ, 2005; WEHLING, 1979). Segundo Menz (2005), a medida buscava reduzir importações da Espanha, França e Rússia para Portugal; no entanto, Wehling (1979) e Bento (1992) também postulam que a iniciativa tenha representado um esforço de povoamento e consolidação de domínios portugueses no sul da América. O incentivo alcançou São Paulo

“[…] a 4 de agosto de 1785, [quando] o Vice-Rei enviava carta ao chefe do governo pedindo esforços no sentido de promover o cultivo do cânhamo […] remetia ao porto de Santos dezesseis sacos com 39 alqueires de sementes desse vegetal” (FONSECA, 1994, p. 16).

Sabe-se que havia derivados têxteis do cânhamo nas primeiras embarcações portuguesas, cujas cordas e velas eram feitas com esse material (PINHO, 1975; ROBINSON, 1996). Sabe-se também que, nos primórdios da exploração portuguesa no Novo Mundo, os viajantes lusitanos já conheciam o uso recreativo da planta, como demonstra relato de Garcia Orta40 sobre usos

40 Este autor alcançou uma posição de grande celebridade no séc. XVI, tendo vivido nas Índias Ocidentais com o também célebre Luís de Camões, Orta é o responsável pela publicação da principal obra de sua época acerca

que observou em Goa, no século XVI (ORTA, 1891 [1563]).

Pouco mais de dois séculos se passaram entre a chegada dos portugueses às Américas e a decisão de estímulo oficial da Coroa Lusitana à produção e beneficiamento da planta no Brasil; o Império promoveu testes de cultivo nas regiões de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, no século XVIII (CORRÊA, 1926). Menz (2005) relata estímulo semelhante no Rio de Janeiro, à mesma época. Além disso, as missões jesuíticas já cultivavam a planta para a produção de tecido (MIRANDA NETO, 2010). Os missionários jesuítas de diferentes nações europeias a cultivavam visando à produção de tecidos que servissem para “cobrir as vergonhas dos indígenas” que pretendiam catequisar entre o século XVI e sua expulsão em 1759 (MIRANDA NETO, 2010).

Tomando todos estes registros como indícios, pode-se apontar como bastante relevante a hipótese de que a planta também tenha sido introduzida por europeus com finalidades geopolíticas e econômicas que contavam com anuência da Igreja Católica e do Império Português.

Assim, constata-se que as controvérsias sobre a maconha são longas, largas e profundas; elas comportam dimensões diversas e altamente complexas. Alguns historiadores remontam a introdução da planta a período anterior à expulsão dos jesuítas – que teriam-na trazido para estas terras com a finalidade de inseri-la no processo de catequização da população indígena (MIRANDA NETO, 2010) por meio da produção de tecidos. No entanto, é mais corrente a hipótese de que seu cultivo tenha se consolidado ao longo do século XVIII devido ao interesse lusitano de dominar o extremo sul das Américas e desenvolver a economia colonial neste território então disputado com os espanhóis (BENTO, 1992; MENZ, 2005). Apesar de toda essa controvérsia e, considerando também o texto de um ex-presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (WEHLING, 1979), parecem confiáveis as fontes historiográficas que apontam a importância do cânhamo para o desenvolvimento da economia em época anterior à Independência do Brasil.

A planta esteve no centro das preocupações dos colonizadores lusitanos no século XVIII, época em que as fronteiras do território português no Novo Mundo ainda estavam se definindo e o

das plantas daquela região e, segundo Carneiro (2002, p. 14), deu “[…] para a medicina uma nova luz, que os antigos não conheciam”. Após sua morte, a Inquisição perseguiu sua família e censurou sua obra, mas ele já tinha atingido uma grande repercussão que autoriza a postular que suas ideias acerca da maconha fossem bastante conhecidas entre intelectuais e viajantes, notadamente portugueses.

que atualmente é o sul do Brasil vivia em contestação com colonos de outra origem, notadamente espanhóis. Isto certamente alimentou as preocupações dos governantes portugueses, motivando a publicação de obras traduzidas por ninguém menos que dois irmãos do patriarca da Independência do Brasil, José Bonifácio de Andrada. Antonio Carlos verteu textos ingleses que constam em um volume (VELLOSO, 1799), enquanto Martim Francisco traduziu o francês Marcandier (1799 [1758]). As obras consistem basicamente em instruções de cultivo, beneficiamento e comércio de cânhamo, a principal matéria-prima para a indústria de cordas e tecidos à época. Estes tradutores, de origem paulista, tiveram grande destaque na política nacional e ocuparam os principais postos da gestão da economia brasileira, tendo sido Ministros do Império do Brasil no início do Primeiro Reinado e, mais tarde (depois do exílio), junto a Pedro II41. Vale lembrar que o primeiro reinado brasileiro coube ao primogênito de Portugal, o que significou a manutenção de muitas diretrizes e lideranças.

Antes da publicação das traduções dos irmãos Andrada, a planta já participava dos principais empreendimentos que aportavam neste território: as Grandes Navegações. Os derivados de maconha circulavam pelo Novo Mundo na forma de tecidos e cordas (HERER, 1985; PINHO, 1975; ROBINSON, 1996 e 1999). Postula-se também que os jesuítas tenham cultivado e beneficiado cânhamo em meio aos indígenas (MIRANDA NETO, 2010; MOTT, 1986; WEHLING, 1979). Porém, não foi possível encontrar indícios de um verdadeiro debate sobre o tema no período, pois, todos os registros até o final do século XVIII, referenciam-na de modo positivo.

Assim, aponta-se um primeiro achado importante desta revisão de literatura: a maconha ganhou sua primeira publicização no Brasil não como problema, mas como parte da solução econômica ventilada por notáveis políticos locais no século XVIII. O vice-Rei Luís de Vasconcellos dedicou várias páginas do relatório final de seu governo para tratar do cultivo de cânhamo (SOUSA, 1789). Os irmãos Andrada gastaram suas penas escrevendo sobre o tema quando viviam na Europa, durante uma estadia que antecedeu o exílio e foi realizada para que pudessem estudar na metrópole lusitana. Ali, verteram os textos ingleses (VELLOSO, 1799) e franceses (MARCANDIER, 1799 [1758]) para o português, sob a rigorosa supervisão de um frei católico – igualmente entusiasmado com o remédio que o cânhamo representava para o desenvolvimento

41 Os mencionados irmãos viveram banidos na Europa entre 1823 e 1829. Como se aprende na educação básica, a abdicação de Pedro I, em 1831, deu condições para que os Andrada retomassem lugar de destaque e o primogênito, José, tornou-se tutor do príncipe herdeiro do trono do Brasil (SOUSA, 1922).

e a economia do Novo Mundo.

Como demonstrado anteriormente (BRANDÃO, 2014a; DOMINGUES, 2001), o referido frei, originário das Minas Gerais e conhecido como José Mariano da Conceição Velloso, contava com o apoio da Coroa Portuguesa devido aos interesses estratégicos daquele Império que estimulava a produção e difusão de conhecimentos necessários para a economia e a saúde. Após o encerramento de sua administração no Brasil, em 1790, o Vice-Rei Luiz de Vasconcellos voltou a Portugal levando o frei que se tornou membro da Academia de Ciências e passou a desenvolver uma intensa atividade editorial marcada principalmente pelo período em que esteve à frente da Tipografia do Arco, entre 1799 e 1801. Organizando dezenas de obras, o frei tratou de história natural, botânica, agricultura, mineralogia e manufaturas. Em seu trabalho, destaca- se “O Fazendeiro do Brasil” – conjunto de 11 volumes de instrução para diferentes culturas agrícolas, editado com o objetivo de esclarecer e estimular a produção agropecuária no Brasil. Em nota introdutória a um dos textos supramencionados, o frei relata a implantação do cânhamo no Brasil, destacando como pioneiro D. João V (Rei de Portugal, 1707 a 1750) e, como restaurador, Luiz de Vasconcellos (Vice-Rei do Brasil, 1778-1790):

A primeira lembrança do estabelecimento do Linho Canamo ao sul do Brazil foi do Augusto Avô, e Bisavô de VOSSA ALTEZA REAL, que mandou passar para aquelle continente cultivadores que lhe dessem princípio mas não se conseguia fruto algum de hum estabelecimento de primeira necessidade para a Marinha Portugueza pelo desleixo dos Generaes que o governaram; o que sendo constante ao Excellentíssimo Luis de Vasconcellos e Sousa nos dias de seu governo promoveu o seu reestabelecimento com tanto ardor e energia quanto era o conhecimento que tinha da grandeza do bem que resultaria a huma Nação navegadora e ao seu Supremo Imperante (VELLOSO, 1799: intro).

A importância destas obras se complementa com a informação de que foram traduzidas justamente por dois irmãos Andrada que, depois de concluírem seus estudos na Europa, retornaram ao Brasil e tiveram grande destaque na política, ocupando os principais postos de coordenação da economia brasileira após a Independência, sendo Martim, Ministro da Fazenda em dois períodos (1822-1823 e 1840-1841) e Antonio, Ministro dos Negócios do Império (1840-1841). Considerando ainda que missionários jesuítas de diferentes nações europeias também cultivaram cânhamo no Brasil visando à produção têxtil entre o século XVI e sua expulsão em 1759 (MIRANDA NETO, 2010), torna-se bastante relevante a hipótese de que a planta tenha sido introduzida por europeus com finalidades geopolíticas e econômicas que

contavam com anuência da Igreja Católica e do Império Português. Obviamente não se pode afirmar que esta tenha sido a única porta de entrada da maconha no Brasil. Por outro lado, a literatura permite atestar que interesses da elite nacional e europeia favoreceram a adaptação desta planta ao atual território brasileiro e que seu cultivo aqui se desenvolveu também em função de sua relevância econômica.

No mesmo período em que os portugueses desenvolviam o cultivo de maconha no sul e sudeste do atual território brasileiro, há indícios de que os jesuítas experimentavam-no em diversas missões no Novo Mundo (LEVENE, 1952; MIRANDA NETO, 2010) e outros lusitanos tentavam consolidar um empreendimento produtivo no Grão-Pará (ALBUQUERQUE, 1784; DOMINGUES, 2001). O atual território nordestino, até esta época, não parecia integrar o mapa do cultivo de maconha no Brasil – o que é apenas mencionado como uma possibilidade viável por Burton (1869). Porém, vale ressaltar que a cultura do cânhamo nas colônias não era uma particularidade dos jesuítas ou do Império Lusitano: a busca de substituir importações (notadamente da França e da Inglaterra) foram fatores que também orientaram cultivos desta natureza em colônias americanas do Império Espanhol, como se depreende das análises de Levene (1952, p. 106) sobre o cultivo com finalidade de produzir o tecido linho-cânhamo no Vice-Reino da Prata nesta mesma época.

A substituição da planta na indústria têxtil por outras espécies (das quais não se conhecem propriedades psicoativas) fez com que o entusiasmo econômico pelo cânhamo se reduzisse bastante no século XIX, mas – como se depreende de relatos de viajantes (TSCHUDI, 1953 [1840]) – a planta já estava aclimatada no atual território nacional e seus usos haviam se difundido. Em paralelo às mudanças na indústria têxtil, o Brasil assistiu à chegada de uma nova tendência médica nas primeiras décadas do XIX: a homeopatia. Considerando que os arautos da homeopatia afirmavam valores terapêuticos da maconha, pode-se compreender que a partir desta época tenha emergido o ciclo de atenção que será focalizado na próxima seção e que inaugura a profusão de controvérsias e disputas sobre utilidades e riscos desta planta para a saúde humana.

Apesar dos dois ciclos posteriores não estarem mais orientados pela importância econômica da planta, adiante será demonstrado que este argumento não foi inteiramente dispensado e – de modo cíclico – tem voltado aos debates mais recentes acerca do tema, contribuindo para a formação do derradeiro ciclo de atenção identificado na pesquisa.