• Nenhum resultado encontrado

QUEBRANDO A PROPRIEDADE E EMOLDURANDO UM QUADRO MAIS

2 PARTE II – DE QUEM É O PROBLEMA?

3.6 QUEBRANDO A PROPRIEDADE E EMOLDURANDO UM QUADRO MAIS

Neste estudo das controvérsias históricas sobre a maconha no Brasil, a noção de “propriedade do problema” (GUSFIELD, 1981, 2012 [1989]) foi associada à ideia de “jurisdição profissional” – difundida por Abbott (1988, 2003) para identificar aquilo que é reconhecido como sendo propriedade exclusiva de um determinado subgrupo profissional.

O conceito de “propriedade de problemas públicos”

[…] é derivado do reconhecimento de que nas arenas de opinião e debate público, os grupos não têm os mesmos níveis de poder, influência e autoridade para definir a realidade do problema. A habilidade de criar e influenciar a definição pública de um problema é o que eu me refiro como 'propriedade'. A metáfora de propriedade é escolhida para enfatizar atributos de controle, exclusividade […] (GUSFIELD, 1981, p. 10).

Quanto ao que leva Gusfield a se referir a um fenômeno como “problema público”, pode-se perceber que é a frequência com que ele é disputado em conflitos que envolvem diferentes segmentos interessados em “[…] definir ou evitar a definição de uma questão como algo de que a ação pública deva se ocupar ('do something about')” (GUSFIELD, 1981, p. 10). Seguindo as ideias do autor: quem tem credibilidade para despertar a atenção pública, tem autoridade no campo em que gera atenção. Opondo-se a outros indivíduos e grupos, as pessoas que detêm

autoridade podem dar visibilidade e audiência para suas formas de considerar um determinado problema e, por este caminho, elas influenciam a percepção moral e cognitiva de determinadas questões. Sob este aparato conceitual, Gusfield analisou especificamente a influência da União de Mulheres Cristãs pela Temperança no processo de definição das estratégias de controle dos problemas envolvendo álcool nos Estados Unidos na virada do século XIX-XX.

Este caminho para abordar a formação da autoridade sobre um tema segue o mapa traçado por Gusfield (1981) que ressalta operações dramáticas, narrativas e retóricas que asseguram reconhecimento. Neste mapa, há uma vereda de atividade científica, na qual estudos avalizados por pares ganham repercussão e passam a influenciar opiniões que ultrapassam as fronteiras da jurisdição profissional em que são produzidos. Contudo, a ciência não é como a Terra, que precinde da ação humana para avançar; ela é feita por homens e mulheres que têm práticas e interesses diversos. O reconhecimento e a aplicação dos achados científicos depende também da capacidade de fazê-los parecer reais e necessários para quem não os produziu. A ciência não é o único caminho que permite alcançar a autoridade. A atividade propriamente política, incluindo o poder persuasivo da propaganda e a força da organização coletiva – bem como o recurso da força física – são outros modos de alcançar algum nível de autoridade.

Em resumo, pode-se afirmar que autoridade e propriedade de problemas públicos pressupõem, como em qualquer sistema econômico, o reconhecimento de outros proprietários, o interesse e alguma subserviência da parte de não-proprietários. À medida que as resistências e questionamentos se multiplicam e crescem em publicidade, pode-se configurar o processo de ruptura descrito por Gusfield (2012 [1989], p. 118-129) em que as disputas de significado se ampliam e dão lugar à produção de novas alternativas de enquadramento e solução do problema. O sistema de Abbott (1988) também dá relevo a disputas, neste caso se trata de disputas permanentes pelo que o autor denomina “jurisdição” de uma profissão. Estas disputas jurisdicionais estão diretamente associadas com o que a tradição sociológica tem enfocado como sendo a “profissionalização”. Como bem sintetizou Silke Weber, isto representa a dinâmica de divisão do trabalho especializado, algo que foi analisado:

[…] como resposta a necessidades sociais (PARSONS, 1954; GOODE, 1957), como construção social resultante de interações (HUGHES, 1971), como ação coletiva voltada para assegurar o controle ocupacional (JOHNSON, 1972) ou para garantir o monopólio do poder profissional – neste caso englobando exercício, formação, acesso e avaliação do trabalho realizado (FREIDSON, 1970; 1998) –, como monopólio e fechamento social sobre um mercado de serviços profissionais mediado por projetos de mobilidade social (LARSON,

1977). Mais recentemente, Bourdieu (1989) apresenta o sistema de profissões como campo de poder simbólico, como elemento estruturado e estruturante que legitima a dominação (WEBER, 2007, p. 181).

Segundo Abbott (1988), no processo de definição das fronteiras de uma profissão, a ideia de jurisdição profissional é importante para compreender os interesses e as disputas que emergem ao se atribuir critérios de competência para atuar sobre determinados temas. Neste quesito específico, vale ressaltar que a arena de disputas não é apenas interprofissional: as disputas jurisdicionais são eivadas de embates no interior de uma mesma profissão. Portanto, o processo de profissionalização passa também por combates intraprofissionais, como o próprio Andrew Abbott (2003) postulou sobre a medicina em Nova York ao longo do século XIX. O autor analisou conflitos de jurisdição que – em determinados períodos – resultaram na negação do reconhecimento médico aos adeptos de determinados métodos. Considerando o caso específico de Nova York, o autor informa que em certas épocas os alopatas conseguiram este reconhecimento exclusivo para seu próprio grupo, mas na maior parte da história, alopatas, homeopatas e ecléticos compartilharam com o Estado o poder de definir o que qualificava um determinado agente como sendo médico.

Muito diferente do caso analisado por Abbott (2003), os homeopatas brasileiros passaram mais de um século afastados do reconhecimento oficial de competência para se ocupar de problemas médicos, sendo oficialmente reconhecidos como profissionais da medicina apenas na década de 1970 (LUZ, 1996). Nesta parte da Tese, tentou-se demonstrar que a noção de competência fundada na ideia de “conhecer cientificamente” foi utilizada pelos médicos alopatas para desqualificar o conhecimento homeopático e se auto-afirmar como autoridade no que tange à maconha e à profissão médica em geral. Controvérsias políticas contribuíram para o detrimento da homeopatia no Brasil a partir da segunda metade do século XIX. Deste modo, os conhecimentos da medicina alopática foram os mais expressivos na regulamentação e nas práticas relacionadas com a planta e com todos os produtos utilizados como medicamento e circunscritos à jurisdição da medicina que, por aproxidamente um século, foi exclusivamente alopática. Assim, os médicos alopatas se afirmaram e foram reconhecidos como “donos do problema público da maconha” neste país.

Finalmente, vale destacar que, ao questionar “Como o conhecimento pode estabelecer uma relação consequente com o mundo cotidiano?”, a pesquisa seguiu a resposta apontada pelo

próprio autor do questionamento:

Para ter algum impacto sobre o mundo natural ou social, o conhecimento precisa dispor de agentes ou portadores humanos e o impacto que ele tem é influenciado, em parte, pelas características destes agentes. Assim, não se pode entender o papel do conhecimento formal no nosso mundo sem entender as características daqueles que o criam e aplicam (FREIDSON, 1986, p. 9).

Por isso, enfatizou-se a trajetória de alguns autores que se interessaram pela maconha no Brasil do século XVIII à primeira metade do século XX. Esta digressão sobre a história da maconha e de pessoas que se interessaram por ela neste território, teve a finalidade de apresentar os caminhos pelos quais o país adotou uma política restritiva que vem sendo progressivamente questionada. Buscando evitar o risco de tratar conhecimentos e discursos como base exclusiva para a ação, abordou-se também ações e interações entre diversos atores que postularam autoridade sobre o tema e, eventualmente, conseguiram se fazer reconhecer como detentores de saberes e práticas inquestionáveis que lhes faziam donos de um determinado enquadramento do objeto discutido.

Espera-se ter deixado claro que a propriedade do problema da maconha no Brasil foi coisa de profissionais e também se espera ter conseguido demonstrar a existência de pelo menos três propriedades (ou quadros) deste problema ao longo da história do Brasil: a econômica, a homeopática e, finalmente, esta da medicina alopática que até o presente é uma das principais influências do ciclo securitário. Essa demonstração foi tentada a partir dos indícios oriundos da literatura que permitiu afirmar que determinados conhecimentos (assim como seus difusores) tiveram seu momento de grande autoridade sobre o tema, mas a pretensão aqui não é dissecar os processos de formação da propriedade do problema da maconha em diferentes momentos da história nacional. Pelo contrário, o interesse maior desta investigação se inicia no momento em que os quadros se quebram e a propriedade começa a ruir devido à repercussão de controvérsias sobre o tema ao final da ditadura militar.

O foco principal de atenção ao longo desta pesquisa foi, portanto, a ação coletiva que teve lugar em Recife em período muito recente no qual a ruptura da propriedade já estava configurada73.

Ao falar em foco não se restringe a metáfora para o sentido da visão, mas se engloba um amplo

73 Em nível nacional, a impossibilidade de reconhecer argumentos inquestionáveis sobre o tema embasa a conclusão do Relator da Sugestão 08/2014 da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal (que propõe “regular o uso recreativo, medicinal e industrial da maconha”), a saber: “[…] o debate deve continuar e ser aprofundado” (BUARQUE, 2014, p. 14).

conjunto de aspectos que atraíram atenção do pesquisador. Assim, um primeiro aspecto que se pode ressaltar sobre a manifestação de reivindicação coletiva de mudança de normas relativas à maconha em Recife é que ela só se tornou possível quando deixaram de existir saberes e práticas inquestionáveis. Ao se acabar a propriedade sobre o problema da maconha, tornou-se possível discutir alternativas para solucioná-lo.

Assim como o filme “Quebrando o Tabu” (ANDRADE, 2011)74, esta pesquisa também constata

o fim dos elementos que garantiam a manutenção do “tabu” (nos termos do filme) e da “propriedade” (nos termos de Gusfield). Não há mais tabu nem dono do problema da maconha. O relato da pesquisa doravante (e, particularmente, na Parte III) buscará descrever uma das muitas experiências que contribuíram para destruir esta propriedade. Espera-se também deixar claro que elementos dos diversos ciclos de atenção à maconha estão operando na experiência enfocada, mas há destaque para novos atores e oportunidade para a proposição de alternativas. Tudo isso converge para impossibilitar a identificação de um “dono” do problema da maconha no Brasil de hoje. Como já está claro, a experiência abordada é a Marcha da Maconha de Recife. Contudo, vale ainda ressaltar que a pesquisa permitiu identificar a proeminência de um conjunto de interesses nesta Marcha e no quadro nacional em que ela está inserida. Trata-se de interesses provenientes da jurisdição médica, onde a planta e seus derivados recentemente voltaram a se destacar como elementos positivos. Isto induz ao questionamento sobre a possibilidade do Movimento Marcha da Maconha estar contribuindo para reformar (e não romper nem transferir) o monopólio profissional sobre o tema. Caso o direito de prescrever quem, quando e como consumir cannabis no país se mantenha como uma exclusividade de profissionais de saúde75,

74 Documentário que tem como “âncora” (por vezes entrevistador e, em outras, narrador) o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (FHC), que foi Presidente da República do Brasil e, depois de finalizar seu mandato, tornou-se defensor de uma regulamentação menos restritiva da maconha. Não tendo desempenhado nenhum papel destacável na efetivação de mudanças relativas ao tema quando esteve à frente da Presidência, FHC simboliza a figura do recém-convertido à crença de que a proibição dá origem ao narcotráfico que impõe graves riscos de corrosão do tecido social, da saúde da população e das instituições estatais. O papel de destaque que ele assume no filme – e em muitas outras ações do Instituto que leva seu nome – demonstra a expectativa dos realizadores do documentário (e de alguns analistas, como SOUTHIER, 2016) de que ele seja um ator capaz de converter seus pares a um campo contra-hegemônico. A formação de uma Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, em 2008, e de uma Comissão Global sobre Políticas de Drogas, em 2011, que acumulam contribuições de líderes políticos, intelectuais e empresários de 23 nações diferentes e têm FHC como um de seus ideólogos e mobilizadores é um dos fatores que provavelmente levam a crer no suposto potencial de conversão deste líder político brasileiro. Contando ainda com apoio da poderosa Rede Globo, FHC e o filme em que se envolveu, de fato, parecem ter contribuído para a alteração do debate sobre o problema aqui enfocado, mas estão muito longe de representar a grande diversidade de performances que se referem a ele.

75 A nova Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) responsabiliza a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) pela especificação do que são drogas e pela definição de regras de controle especial a algumas delas que podem gerar benefícios terapêuticos. Assim, em janeiro de 2015, a Anvisa alterou as mencionadas regras e

será ratificada uma nova autoridade reconfigurada sob o mesmo senhorio profissional – hipótese que será retomada na Parte IV.

definiu “[…] os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de canabidiol […] por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde” (ANVISA, 2015). Em março de 2016, a Agência incluiu a substância na lista de controle especial (ANVISA, 2016), não mais em caráter de excepcionalidade.