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QUADROS E MOVIMENTOS EM MEIO À AÇÃO, EMOÇÃO E MORAL

2 PARTE I – TEORIAS E MÉTODOS

2.3 QUADROS E MOVIMENTOS EM MEIO À AÇÃO, EMOÇÃO E MORAL

Também é importante destacar que a ação coletiva desenvolvida pelo Coletivo Marcha da Maconha – e, mais tarde, pelo Coletivo Antiproibicionista – tem todos os elementos de “VUNC” que caracterizam os movimentos sociais na concepção de Charles Tilly (2010 [2009]). O acrônimo VUNC representa as características de valor, unidade, número e comprometimento no modelo traçado por Tilly em que estes elementos aparecem com a seguinte acepção:

[…]

valor: comportamento sóbrio; roupas asseadas; presença de clérigos, dignatários e mães com crianças;

unidade: emblemas, faixas, bandeiras ou vestimentas combinadas; marchas em formações organizadas; canções e cantos;

número: contagem de participantes; número de assinaturas em petições; quantidade de mensagens dos partidários; capacidade de encher as ruas; comprometimento: enfrentamento do mau tempo; participação visível de idosos e portadores de deficiências; resistência à repressão; sacrifícios, subscrições e/ou atos de benemerência ostensivos (TILLY, 2010 [2009], p. 137-8).

Por mais estranho que possa parecer a afirmação de que há “valor” em uma marcha que reivindica uma questão historicamente estigmatizada, espera-se que o relato da pesquisa possa demonstrar um quadro de ação em que estão presentes não apenas um dos exemplos de valor listados por Tilly, mas todos eles. As fotografias que demonstram a presença de crianças, cadeirantes e portadores de síndromes, bem como o vídeo de um jovem que se apresentou como pastor anglicano na edição de 2012, não serão utilizados por diversos motivos, desde aqueles de ordem técnica até os limites legais da exposição não-autorizada. Porém, a dimensão descritiva da Tese tentará atestar essas presenças pela caracterização das performances empreendidas por estes atores de valor. Ademais, esta não é uma característica eventual que pôde ser observada em um ou outro momento da Marcha da Maconha, mas se trata de uma constante do Movimento que progressivamente tem ampliado o emprego de crianças e pessoas doentes, acompanhadas de familiares e médicos, em uma clara demonstração do processo de atribuição deste tipo de valor à causa. O ápice deste processo em Recife se mostra na presença de uma criança acompanhando uma parte da Marcha em 2015 em uma cadeira de rodas conduzida por seus pais e pelo médico que lhe prescrevera medicamento à base de maconha. Os demais elementos do modelo de Tilly também serão explicitados na descrição dos processos de reivindicação, incluindo a consideração da polêmica sobre o “número” – este grande fetiche da opinião pública.

Seja por constatar as características postuladas pelas teorias da política contenciosa (de Tilly), dos novos movimentos sociais (de Touraine e Melucci) ou ainda porque o elenco principal e alguns roteiros da experiência analisada utilizam a expressão26, esta Tese se refere à Marcha da Maconha como parte de um “Movimento”, em clara referência à noção de “movimento social” presente neste universo teórico. Contudo, vale ponderar que a pesquisa não ratifica as noções de que o movimento social seja a experiência de “grupos sociais que não têm recursos próprios” e sempre têm por base a “ação coletiva de confronto”, conforme disposto por Tarrow (2009, p. 18-9). A terceira parte deste trabalho expõe situações de colaboração de atores bastante

26 Há inúmeras referências à noção de “movimento” e “movimento social” nos arquivos dos ativistas da Marcha da Maconha. Cf.: GMM-MMM Yahoo Group with public archive. Disponível em: <http://health.groups.yahoo.com/group/mmmworld/>. Acesso em: 16 de jul. 2012. Assim como, a experiência nacional vem sendo apresentada sob este termo. Cf.: Movimento Marcha da Maconha. Carta de Princípios. Disponível em: <http://blog.marchadamaconha.net/carta-de-principios-da-marcha-da-maconha-brasil>. Acesso em: 21 de out. 2016.

empoderados do Movimento Marcha da Maconha em Recife com alguns de seus principais antagonistas.

Por outro lado, partilha-se o entendimento de que não há movimento social sem “ação coletiva”27 e, por isto, também se emprega esta noção que parece mais ampla e isenta da adoção

precipitada das perspectivas de “luta de classes”28 e “conflito”29 que rondam as teorias dos

novos movimentos sociais e da política contenciosa. Adotar esta perspectiva não significa negar denúncias, contestações ou disputas, mas expressa a preocupação de observar e descrever antes de classificar e analisar. Ainda ponderando sobre uma teoria dos movimentos sociais, vale destacar que as características que conformam um movimento social e permitem reconhecer uma identidade coletiva são muitas vezes formadas e reformadas ao longo de experiências concretas, perceptíveis e, portanto, passíveis de descrição e análise. Nestas experiências de ação coletiva, como destaca Jasper (1997, p. 101), “emoções, moralidade e conhecimentos são inseparáveis”.

Considerando ainda que nem todos os movimentos sociais partilham características herdadas por seus membros desde o nascimento ou construídas antes da identificação coletiva, buscou- se compreender nesta pesquisa quais características têm garantido a identificação de membros a uma causa coletiva que conforma um conjunto de experiências que vêm sendo desenvolvidas há alguns anos e continuam a se transformar. Se, por um lado, o conjunto revela linhas de continuidade, há que se considerar também a grande diversidade e mudança que o Movimento Marcha da Maconha tem experimentado ao longo de seus dez anos de atuação em Recife. Nada disso, comprometeu ou negou a existência de uma identidade coletiva, mas permitiu nuançar qualquer teorização que a tome como um recurso apriorístico sem o qual não haveria movimento social, bem como deu condições de empreender uma análise em termos de reconhecimento, usos e desusos dessa identidade de acordo com as situações em que seus membros se envolvem e as expectativas que desenvolvem.

27 Aqui, vale destacar a coerência com revisão da literatura brasileira acerca dos movimentos sociais: “Um movimento social é sempre expressão de uma ação coletiva e decorre de uma luta sociopolítica, econômica ou cultural” (GOHN, 2008, p. 14).

28 Segundo Touraine (1974, p. 104), “o movimento social é a conduta coletiva organizada de um ator de classe lutando contra seu adversário de classe pela direção da historicidade em uma coletividade concreta”. 29 Segundo Tilly (2010, p. 136), os movimentos sociais são “uma forma específica de política contenciosa – contenciosa, no sentido de que os movimentos sociais envolvem a elaboração coletiva de reivindicações que, alcançando sucesso, conflitariam com os interesses de outrém; política, no sentido de que governos, de um ou outro tipo, figuram de alguma forma nesse processo, seja como demandantes, alvos das reivindicações, aliados desses alvos, ou monitores da contenda”.

Em alternativa ao desenvolvimento de uma análise focada exclusivamente em termos de identidade e movimento, tomou-se o caminho que Cefaï (2007) apontou como sendo oriundo de um legado pragmatista de Dewey e Mead que foca o conceito de “sociedade de públicos”, sendo a noção de “públicos” apontada como

[…] processos de associação, cooperação e comunicação que emergem sem parar de modo transversal às esferas de experiência […], simultaneamente ciosos das tensões entre indivíduo e coletivo, instituição e emergência, interesse e significado, contexto e ação. Uma reflexão menos preocupada em revelar a unidade de um sujeito político, identificar a estrutura de classe ou recensear recursos de mobilização do que em apontar ambiências de experimentação e comunicação, crítica e conflito, fazer conhecer e tornar inteligíveis momentos de configuração dos problemas públicos (CEFAÏ, 2007, p. 466).

Tentou-se seguir uma teoria da ação coletiva, conforme Cefaï (2007) apresenta a partir dos pressupostos de produções científicas que englobam: 1) o legado da sociologia de Chicago, 2) as teorias da Ação Racional e da Mobilização de Recursos, 3) a teoria dos (novos) movimentos sociais e 4) as postulações de Goffman sobre a análise de situações e o que se pode traduzir como “molduras interpretativas da ação social”, para usar uma conceituação que vem sendo aplicada no Brasil por Silva (2013). Sem expectativas de colocar em revista a ampla bibliografia que compõe este quadro teórico, vale destacar que seu emprego evita análises excessivamente racionalistas, utilitaristas e estratégicas, sendo os polos dos pressupostos de Cefaï (2007) as principais referências para a observação participante da Marcha da Maconha em Recife. Isto posto, vale ainda destacar um aspecto frequentemente desprezado em trabalhos científicos. Trata-se da dimensão emocional que atravessa a vida cotidiana das pessoas e dos movimentos. Como diz Dewey (apud QUÉRÉ, 2012, p. 135): “É preciso que um problema seja sentido para poder ser enunciado”. Apoiando-se em uma dezena de textos de John Dewey e revisando alguns outros estudos acerca da “configuração emocional”, Louis Quéré estabelece uma agenda de pesquisa acerca das “emoções na experiência pública” que não se limita a analisar a gestão das emoções. A natureza objetiva do pensamento pragmatista emerge na teoria deweyana das emoções apresentada por Quéré (2012), servindo de base para a crítica de qualquer argumentação exclusivamente subjetiva e apoiando um raciocínio em que a emoção não tem uma natureza própria a si mesma, mas está diretamente ligada à situação e seus “referentes objetivos”. Não é possível separar uma emoção de seu(s) objeto(s) nem da situação que a suscita.

Voltar ao hipotético exemplo do elevador30 em pane pode contribuir para esclarecer que as emoções suscitadas em uma situação como esta não permitem estabelecer paralelos e fronteiras claras entre razão, ação e emoção. Assim como as perspectivas, as emoções têm uma natureza objetiva que se estabelece não apenas devido ao sujeito, mas também em função do ambiente situacional e dos recursos materiais de que ele dispõe. Quéré destaca o uso por Dewey do termo “função” que, na sua acepção matemática, não implica causalidade, mas estabelece relação entre elementos de conjuntos distintos. Assim, o elevador e o fato dele não funcionar corretamente são apenas aspectos relacionados com as emoções que têm lugar em uma situação como esta de um elevador que falhou com alguém dentro dele. Mas dizer que determinados fatores são “apenas relacionados” não quer dizer que eles não tenham importância.

Para Dewey, segundo Quéré (2012, p. 146), “[...]a emoção é mais suscitada pelo caráter 'problemático' de uma situação: ela é uma resposta ao incerto, ao duvidoso, ao precário e ao ambíguo (…). Ela tanto pode paralisar quanto energizar para a ação em busca de soluções”. A indeterminação de uma situação é, portanto, algo particularmente capaz de suscitar emoção, atenção, raciocínio, buscas, descobertas, decisões etc. A relação de aspectos tão distintos é determinante para agir ou não agir. Para compreender e imaginar saídas para problemas públicos, Dewey convida a reunir dois aspectos que foram muito distanciados na modernidade: razão e emoção.

As lógicas de mercado e de guerra, que subjazem em trabalhos inspirados por muitas vertentes racionalistas e marxistas, ofuscam a dimensão emotiva da ação coletiva, reservando-lhe a enfoques exclusivamente subjetivistas. Contudo, na prática, o que se vê em protestos sociais são pessoas movidas por muitas coisas, inclusive emoções. Assim, vale registrar que a observação participante empreendida nessa pesquisa também foi inspirada por esta perspectiva objetiva de relevância emocional para a ação.

Para operacionalizar a pesquisa, recorreu-se à história31 da maconha no Brasil, subordinando-a

30 A frequência deste exemplo deve deixar claro que a semelhança com situações corriqueiras nos elevadores do CFCH-UFPE não é mera coincidência.

31 Trata-se de uma referência interdisciplinar à história como “[…] uma ciência humana como as outras […] [que] estabelece conexões no tempo, busca uma concatenação rigorosa, narra uma trama” (SCHWARCZ, 2008, p. 161). A historiografia forneceu pistas teóricas e metodológicas que contribuíram para buscar compor uma história baseada na empatia, na “[…] capacidade de identificação do historiador com os motivos dos agentes da história” (SCHWARCZ, 2008, p. 180). Assim, vale ressaltar que a ciência histórica também influencia esse projeto investigativo pela leitura prazerosa de ecléticos pernambucanos, como Gilberto Freyre; de Thompson (1971), apoio para tratar da “normalização” como linha de continuidade entre os costumes e a lei, passando pela norma social; ou ainda da “configuração narrativa” à la Ricœur (1983). Tudo isso, sob a perspectiva de uma “história a

a uma análise pragmatista de experiências contemporâneas de reivindicação de mudança observadas a partir da metáfora performática que integra dimensões discursivas e gestuais sem, contudo, dispensar uma análise do contexto em que estão inseridas e das trajetórias dos atores que as organizam. Estes recursos presidiram a busca da percepção do processo de mudança do enquadramento das transações com maconha na cidade de Recife, seja alterações no âmbito normativo da lei ou das relações sociais que incidem cotidianamente sobre a ação dos atores direta e indiretamente afetados por estas transações. E, neste sentido, é oportuno colocar mais um esclarecimento conceitual do que está empregado na pesquisa: a noção de frame32, conforme

difundida por Goffman (2012 [1974]) e as possibilidades de alinhamento de diferentes quadros. Goffman (1976) indica que os indivíduos que participam de uma mesma situação precisam entender suas posições no ambiente que os cerca, incluindo os demais sujeitos com quem interagem. Isto é o que lhes permite um certo “alinhamento” com o que pretendem expressar de si e a postura que consideram adequada para cada situação. Esta preocupação com a conduta apropriada está presente desde sua Tese de Doutorado (GOFFMAN, 1953) e atravessa sua produção sociológica, bem como tem sido frequentemente retomada para analisar o que se convencionou chamar de “interação face a face”. Porém, a competência individual de perceber a si e aos outros parece ser constitutiva de qualquer interação e as pistas traçadas por Goffman já foram aplicadas para tratar desde as novas tecnologias de comunicação (LING, 2008) até a ação pública frente a autoridades governamentais (GAMSON, 1985), bem como serviram ao próprio Goffman (1976) para analisar anúncios comerciais em que perfilou uma concepção de gênero.

Dentre as aplicações recentes do legado goffmaniano, destaca-se o seminal trabalho de Gamson (1985) que provavelmente inspira um grande número de cientistas sociais dedicados ao que tem sido denominado “frame perspective” em análise de ações coletivamente concertadas e realizadas. Porém, tentando referenciar o que o próprio Goffman (2012 [1974]) aponta como sendo sua ideia de “frame”, aplica-se o conceito para buscar entender tanto o que é significativo para que os sujeitos da Marcha da Maconha de Recife definam sua atuação em um período

contrapelo” que preside a sétima tese de Benjamin sobre o conceito de história e recomenda a busca de pontos de vista dos vencidos, das vítimas.

32 A palavra denota em português dois sentidos principais: “quadro” e “moldura”. Sendo um continente e outro conteúdo do enquadramento. “Quadro” é o que costuma ser apresentado envolvido por uma “moldura”, mas em inglês (e, portanto, no original goffmaniano) a mesma palavra representa as duas coisas, embasando a aplicação de ambos os termos para traduzir a noção de “frame”, conforme se fez, por exemplo, em Silva et al. (2013).

muito recente, quanto para compor um “quadro de referência” de debates e práticas relativas à maconha no Brasil em um intervalo de tempo bem mais longo. A ideia pode ser traduzida como “quadro”, mas também como “moldura” e ocupa posição central neste trabalho. Goffman afirma tê-la extraído da obra do biólogo e antropólogo Gregory Bateson (1972), onde diz ter encontrado o termo “mais ou menos no sentido em que pretendo usá-lo” (2012 [1974], p. 29). Isto atiçou a curiosidade de entender um pouco do sentido aplicado por Bateson e, particularmente, uma concepção se destaca nesta pesquisa:

A moldura à volta de uma imagem, se a considerarmos como uma mensagem para dar ordem ou organizar a percepção do observador, diz: “conceda atenção àquilo que está dentro e não dê atenção àquilo que está fora” (BATESON, 1972, p. 193).

Bateson, na referida passagem, referia-se à metacomunicação que identificou em animais que observava em um zoológico. Ele afirmava que estes animais tinham a capacidade de emitir sinais que permitiam a seus pares diferenciar a luta da brincadeira de luta. Goffman não tratou nem analisou animais não-humanos, mas usou o termo “frame” para ampliar seu enfoque na “análise de situações”, afirmando que

[…] as definições de uma situação são elaboradas de acordo com os princípios de organização que governam os acontecimentos – pelo menos os sociais – e nosso envolvimento subjetivo neles; quadro é a palavra que uso para me referir a esses elementos básicos (…). Minha expressão “análise de quadros” é um slogan para referir-me ao exame, nesses termos, da organização da experiência (GOFFMAN, 2012 [1974], p. 34).

Este é um referencial importante para toda esta pesquisa, notadamente para a observação participante da Marcha da Maconha de Recife, na qual o pesquisador buscou identificar a moldura e descrever o quadro do qual participou, bem como revelar os enquadramentos (per)formados pela ação de organizadores e marchadores – o que inclui diversos elementos do contexto em que se deu a experiência, mas também se relaciona com uma história pregressa de objetos e sujeitos envolvidos. Empregar Goffman, nesta perspectiva de análise de quadros, molduras e enquadramentos, significa tomar a noção de frame como mediadora entre indivíduo e sociedade ou, ecoando Velho (2008, p. 146), como instrumento analítico da percepção, da construção e da ação de indivíduos na realidade social. Os quadros podem ser identificados na ação de um indivíduo, mas também se mostram na interação. Para analisá-los é preciso apontar uma série de aspectos relevantes da experiência, pois uma mesma sequência de gestos e sons

pode resultar em algo totalmente diferente caso se passe junto a parceiros ou adversários, no trabalho ou no lazer, na casa ou na rua, em público ou no privado.

Da obra de Goffman (1971), toma-se ainda a noção de “aparência normal” para tentar entender como cresceu a tolerância à maconha na Marcha da Maconha de Recife. À progressão da aparência normal, denomina-se “normalização”. Relembrando a raiz comum com a noção de “norma” legal ou socialmente constituída, destaca-se que Goffman (1971, p. 239) afirma que, para um indivíduo, “as aparências normais significam que não há perigo em dar continuidade às atividades que vem realizando”. Deste modo, os indivíduos que organizam, realizam e marcham nas manifestações enfocadas demonstram que seu enquadramento do fumo de maconha como algo “normal” progrediu de maneira significativa e, como será demonstrado adiante (Partes III e IV), fumar maconha já não parece mais uma performance de grandes riscos para a Marcha da Maconha. O processo de normalização do fumo de maconha na Marcha de Recife está relacionado com uma valoração positiva da maconha na escala moral da sociedade afetada pela performance dos marchadores. Assim, o tema entrou em plataformas eleitorais, oportunizou a difusão dos marchadores e a fusão de novos sujeitos à performance de reivindicação coletiva e, sobretudo, fez com que o ato de fumar maconha fosse progressivamente tolerado em diferentes espaços da cidade. Apesar da aparente moralização normalizadora de algumas transações com maconha, persistem riscos que serão discutidos especialmente na Parte IV.

A ação coletiva é frequentemente compreendida como algo violento, radical ou inconsequente, mas os movimentos sociais, como diriam Touraine ou Mellucci, são habitualmente enfocados como ações orientadas a finalidades específicas e compreensíveis. Sejam eles mais ou menos “novos”, muita tinta já correu em textos acadêmicos que tratam da questão. Talvez já tenha ficado claro, mas vale ressaltar que o esforço empreendido ao longo desta pesquisa foi de agir junto a pessoas que partilhavam um mesmo objetivo para buscar identificar o quê e como elas faziam para tentar convencer outras pessoas de que seu objetivo poderia ser bom para todos. Este convencimento decorre da ascensão de valor positivo para o objetivo pretendido na escala moral da sociedade local e, aqui, também é referido pelo termo “moralização”. Assim, apesar do muito conhecimento produzido sobre movimentos sociais no mundo ocidental, o pesquisador foi a campo não para entender em que perspectiva teórica a experiência poderia se enquadrar, mas sim para tentar perceber como aquelas pessoas com quem ele conviveu por alguns anos planejavam, realizavam e defendiam suas ações visando a associar seu objetivo

comum a valores e práticas reconhecidas como positivas pela maior parte da população a que atingiam.

Em temas controversos, a valoração positiva enfrenta necessariamente a disputa com outros grupos e neste processo são mobilizados argumentos, performances, sentimentos, emoções – potenciais de reconhecimento e difusão que contribuem para a produção do que Gusfield (1981) chama de “donos do problema”. Assim, é importante reservar algum espaço nesta reflexão teórico-metodológica para abordar usos costumeiros, modos compartilhados de agir, performances habituais em diferentes sujeitos individuais e coletivos, fronteiras reconhecidas