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A curiosa encenação pactuada entre os dois irmãos continua na incorporação das emoções raivosas de Felipe no vídeo do tipo react que foi postado no dia 04 de outubro de 2017 e tem o nome “REAGINDO A VINGANÇA DO LUCCAS! VAI TER VOLTA!”. No vídeo,

ele e o irmão dão continuidade a um ciclo de trollagens49 um ao quarto do outro. Felipe solta um riso no momento inoportuno no qual deveria estar com muita raiva e conserta: “Eu tô rindo, mas a cada “k” é uma lágrima!”:

[Luccas fala] “E agora o “zubumafu” (Luccas pega um boneco de Felipe e começa a imitá-lo) “Olá! Eu sou o Felipe Neto! E hoje eu vou ser afogado no chocolate! Hahahaha! Mata! Morre! E agora eu vou te afogar! Entra! Entra! (afoga o boneco no balde de chocolate)” [Felipe fala ao fundo] Acabou o “Zubumafu”, acabou. Não tem como salvar. [Luccas continua] “Ah, nossa! O “zubuzinho” de chocolate, Felipe, ele agora ficou até mais bonito. “Zubu”, faz a foca! Aih! Aih! Aih! / [Felipe fala rindo] Agora eu ri! Eu to rindo, mas a cada “k” é uma lágrima! [Faz expressão séria] / [Luís fala rindo] “Coloca ele sentado na cadeira do Felipe!”. [Felipe fala ao fundo] Ele não cagou minha cadeira! (Felipe Neto, 04.10.2017, Apêndice D)

Felipe assiste e reage à vingança do irmão que sujou todo o seu quarto com chocolate. Tanto no momento de suposta fúria do irmão que se vinga, quanto no momento de suposta indignação daquele que assiste e se diz injustiçado pela desproporção dos danos que lhe foram causados comparando-os com os que causou, o exagero é um recurso muito utilizado. Os dois vídeos citados – RCR e RVL - foram os mais visualizados da playlist react do canal, somando mais de 35 milhões de visualizações.

O conteúdo para fazer rir no YouTube é caracterizado pela forma de expressar emoções com o mínimo de palavras possível. Sendo cada vez mais econômico no texto que se serve para elaborar as sensações, o recurso da imagem que é veiculada ganha ainda mais espaço com as expressões faciais, gestos e edições no vídeo. Quanto às palavras, é preciso dizer o essencial de forma sintética. Também é característica de tal conteúdo, a exposição de contradições como exemplo do ridículo e as generalizações que podem ser lançadas como rótulo para o outro.

As três características mencionadas não foram criadas com o advento do YouTube, mas são citadas por Saliba (2002) - que traz categorias de uma perspectiva histórica do riso no Brasil - como procedimentos necessários para produzir o efeito cômico desde seus primórdios: a concisão - sintetizar uma ideia em poucas palavras -, a antítese - fazer emergir duas ideias em oposição - e o uso de estereótipos - clichês que trazem uma identidade pronta e fixa a algo ou alguém.

Elas aparecem no vídeo do dia 04 de outubro de 2017: quando Felipe responde ao irmão que o combinado teria sido usar de maior criatividade nos vídeos de trollagem, mas não

que ele o prejudicasse tanto, sujando seus objetos pessoais com chocolate, ele foi conciso nas palavras: “Eu disse criativo, eu não disse para você defecar a minha vida”.

Neste mesmo vídeo, quando Luccas diz que vai fazer a “famosa cama de chocolate”, nele podemos perceber a oposição entre a ideia de grandiosidade das “criações” de Luccas e o fato de essas coisas nem sequer existirem - pelo menos até que ele mencione - é o que causa o efeito engraçado no momento em que Felipe rebate:

Quê que tem de famosa na “cama de chocolate”! Ninguém nunca ouviu falar nesse troço! Tem nada de famoso! Tu adora ficar falando que tudo que tu faz é famoso! [Imita Luccas] A famosa “Nerf” gigante! Ninguém nunca ouviu falar! A famosa banheira de “Nutella”, quem conhecia isso! Tem nada de famoso! (Felipe Neto, 04.10.2017, Apêndice D)

No vídeo do dia 19 de setembro de 2017, o uso do estereótipo é feito por uma das crianças e ressaltado por Felipe no momento em que Bruno, seu amigo e assistente, é comparado com um bote pelo menino e completa justificando a associação por conta do tamanho de Bruno. Em resposta, Felipe diz que o menino vai ser acusado de gordofóbico pelo público. Esta foi uma acusação que fizeram ao próprio dono do canal por suas constantes piadas com a aparência física de Bruno. Também é possível perceber no vídeo do dia 16 de abril de 2018, no qual Felipe vai fazer uma propaganda da sua peça de teatro:

Lembrando que o APEI é um quadro que não pode ter nada politicamente incorreto, que é muito legal e autorizado pelo IBAMA. E sabe o que mais é autorizado pelo IBAMA? O uso do Bruno no “Felipe Neto Mega Fest”, galera. O IBAMA permite que o Bruno faça a peça comigo! Então vai assistir ao espetáculo, porque agora chegou a hora do Rio de Janeiro. (Felipe Neto, 16.04.2018, Apêndice G)

Deste modo, ele compara o amigo - que é gordo e negro - com um animal que deve ser protegido pelo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Surgem acima, duas questões: a relação entre estereótipo, riso e preconceito, em como a relação deste tripé com as formas de censura decorrentes de seu aparecimento. Segundo Saliba (2002), os estereótipos em uma anedota humorística são alcançados mediante uma concentração de significados históricos acumulados em uma redução drástica, na qual todos que entrem em contato logo se reconheçam.

A compreensão decorreria de um acordo prévio da memória coletiva com uma sintetização de todo o efeito da representação nas rápidas simplificações da anedota. Para o autor, o estereótipo é uma condição do humorismo por sua capacidade de juntar fragmentos do passado e concentrá-los naquele instante rápido e fugidio da anedota. Os significados históricos acumulados em uma redução drástica remetem a conflitos sociais, políticos e econômicos do

passado que reforçam o preconceito em forma de um alvo para as piadas politicamente incorretas:

Nos programas radiofônicos humorísticos, o macarronismo cosmopolita volta a ficar intenso, assumindo, contudo, outras cores, não raro cheias de rebarbas de preconceitos e ressentimentos que o humor, afinal, na chave hiperbólica da paródia, nunca soube ou mesmo mostrou-se incapaz de esconder. Nos primeiros programas humorísticos do rádio brasileiro, realizados ao vivo nos estúdios chamados de “aquários”, ou até mesmo em acanhados auditórios, as piadas e paródias não filtravam, como em tempos mais recentes, os preconceitos e os ressentimentos: em muitos casos, o efeito cômico só se produzia pela ausência de quaisquer traços de hipocrisia nos humoristas, que não hesitavam em nomear as coisas pelos seus verdadeiros nomes, sem aquele manto de fingimento, sempre bordado por metáforas e alusões à cor e/ou ao cheiro da população negra brasileira. (SALIBA, 2002, p. 289)

Antes disso, os primeiros sinais de censura ao humor no Brasil apareceram em 1911, quando frei Pedro Sinzig publica um ensaio para demarcar fronteiras éticas e morais nas produções humorísticas. Cômico não desejável e digno de ser extinto era aquele que provocava o riso à custa de algum ressentimento ou conflito social. Em contrapartida, alguns humoristas acreditavam na vocação política do humor para canalizar ódios e ressentimentos em relação às mazelas sociais (SALIBA, 2002).

Não apenas no que diz respeito ao humor, mas também o preconceito tem como base a relação entre indivíduo e sociedade. Como foi apontado por Crochík (2006), por meio de uma visão teórico-crítica, as ideias sobre o alvo do preconceito não surgem do nada, mas da própria cultura. Partindo da perspectiva do indivíduo preconceituoso, os estereótipos com que este reveste seus objetos correspondem a uma fixidez no comportamento deste.

O autor define a diferença entre estereótipo e preconceito: o primeiro seria um dos elementos do segundo. Enquanto o estereótipo é um produto cultural, o preconceito é uma reação individual. Não se pode mensurar até que ponto o YouTube pode fomentar o preconceito que já existe por determinados grupos na sociedade - até por conta das medidas institucionais da plataforma para evitar escândalos, mas os estereótipos continuam sendo reforçados, inclusive em vídeos voltados para a faixa etária infantil.