• Nenhum resultado encontrado

Freud [1925(2011)] partindo da negação de conteúdos inconscientes nos relatos clínicos de seus pacientes, desenvolve uma elaboração teórica no tocante ao estatuto do pensamento. A eminência do texto freudiano é de colocar a identidade como uma cadeia de representações familiares que estão diretamente ligadas à formação de sentenças - que apontam uma negação - no âmbito do intelecto. Destarte, é preciso partir da negação, pois a identidade só pode ser estabelecida depois de uma diferença demarcada.

Segundo Freud (2011), quando o analisante no divã afirma que a mulher em seu sonho não é a sua mãe, o processo que ocorre é o de a informação negada se tratar de um conteúdo reprimido de uma ideia ou imagem que chega até a consciência por meio da condição de ser negado. Deste modo, a negação seria uma forma de tomar conhecimento do que foi recalcado, mesmo que este conteúdo ainda assim não possa ser aceito. Freud aponta a separação entre afeto e intelecto na instância da consciência, que mantém uma parte fundamental do conteúdo recalcada mesmo que ele emerja na consciência.

É posta, então, a função do juízo como parte desse processo. Tal função deve se posicionar entre duas decisões: recusar ou aceitar uma representação da realidade. Para isso, o

autor evoca os momentos mais prematuros da vida psíquica e mostra como a dualidade dentro- fora tem origens que estão para além da aparente onipotência da razão que se assenta na cultura positivista em voga depois do Iluminismo:

Na linguagem dos mais antigos impulsos instintuais — os orais — teríamos: “Quero comer” ou “quero cuspir isso”; e, em uma versão mais geral: “Quero pôr isso dentro de mim” e “retirar de mim”. Ou seja: “Isso deve estar dentro” ou “fora de mim”. O Eu-de-prazer original quer introjetar tudo que é bom e excluir tudo que é mau, como afirmei em outro lugar. Para o Eu, o que é mau e o que é forasteiro, que se acha de fora, são idênticos inicialmente. (FREUD, 2011, p. 251-252)

No que concerne à representação do “dentro” e do “fora”, estes se acham em nível de razão/consciência como representações de realidades/objetos opostos se convertem em uma moeda de duas faces. Se existe representação, ainda que em forma de negação, ela já aponta a positividade do que é negado, ou seja, sua existência. A oposição colocada nem sempre existiu. “Ela se instaura apenas pelo fato de o pensamento possuir a capacidade de mais uma vez tornar presente algo percebido, reproduzindo-o na imaginação, sem que o objeto necessite mais existir no exterior” (FREUD, 2011, p. 252). Freud está assegurando que na análise não há qualquer “não” vindo do inconsciente e de que o reconhecimento do inconsciente por parte do Eu se expressa em uma fórmula negativa.

Danziato (2012) tece comentários baseados em algumas considerações lacanianas sobre a negação. Nesta linha, seria a negação que permitiria ao sujeito a possibilidade do pensamento. A faculdade de pensar teria por necessidade uma negação originária, livrando o sujeito dos efeitos do recalcamento e da compulsão do princípio do prazer.

O que Freud parece querer dizer, é que a verdade do sujeito aparece aí velada, sem que o sujeito se implique no significante que a desvela. Isso nos faz pensar exatamente na relação do sujeito com o significante e suas consequências, pois mostra a ineficiência de uma intervenção clínica no âmbito do esclarecimento. (DANZIATO, 2012, p. 40)

A dialética contida no esclarecimento sendo ele um processo não oposto à barbárie que diz controlar já foi apontada por Adorno e Horkheimer como perspectiva filosófica (1985). Os filósofos tiveram influência da psicanálise e a proximidade ainda que parcial no pensamento de Freud é a da inutilidade do esclarecimento para intervir em contradições imanentes a ele mesmo. Como o pensamento necessita da negação para acontecer, conclui-se que originalmente não existiria nem pensamento, nem negação, mas sim uma condição de radical afirmação:

Teríamos que pressupor um momento mítico de gênese do sujeito no qual tudo se afirma, tudo se inscreve em uma “simbolização originária”, em que o sujeito se dispõe em uma condição, segundo Lacan (1988) de alienação fundamental, e na qual não haveria propriamente um sujeito. (DANZIATO, 2012, p. 41)

Deste modo, foi suposto um tempo mítico de afirmação primordial, aceitação do sujeito em uma inscrição original de forma alienada em que nada ainda seria possível de se negar; todavia, uma parte deste todo deve ser expulso, colocado para fora. Cria-se, então, um buraco no todo e estruturalmente ocorre uma mudança que permite a movimentação dos significantes em cadeia. A tradição freudiana coloca em oposição a confirmação/afirmação [Bejahung] e a negação [Verneinung], a primeira como substituta da unificação e pertencente a Eros/pulsão de vida e a segunda como sucessora da expulsão, pertencente a pulsão de morte.

A retificação subjetiva na análise só é possível por conta deste movimento em cadeia dos significantes. O sujeito dividido insiste em não perceber sua divisão, defendendo uma narrativa na qual ele está em um lugar fixo na cena de seu próprio adoecimento. A retificação acontece quando o sujeito se desloca para outros lugares onde outrora ele insistia em se ver fora - aquilo que era expulso/negado, deixando o campo aberto para que haja uma autopercepção da divisão imanente do mesmo.

Destarte, o que acontece nas relações grupais aproxima-se, de certa forma, ao que Freud descreve a nível de constituição do pensamento no indivíduo se o olhar for ampliado para questões subjetivas mais complexas e coletivas. A identidade buscada em uma denominação grupal como a das corujas e a separação/hostilidade para o que está fora de tal identidade se aproxima da divisão mítica dentro-fora.

O ciclo reconhecimento-estranhamento foi tratado por Adorno (1983) em seus textos sobre indústria cultural e música popular56. O valor que é vendido nos produtos da indústria cultural se impõe não pelo produto em si – música ou filme, por exemplo, mas sim por seu consumidor poder compartilhar da mesma identidade com outras pessoas que consomem o mesmo e, assim, esses podem se destacar dos que possuem um gosto diferente/oposto/estranho ao que é do seu domínio. Esta identidade em torno dos produtos é fabricada pela repetição exaustiva das propagandas - sejam as músicas tocando no rádio ou os anúncios do filme - que exercem um efeito similar ao de uma palavra de ordem que faz com que os sujeitos se dividam entre si de acordo com os “gostos” que melhor o adaptam ao seu grupo, aproximando o que é bom, familiar, desejável e incluso dentro de tal identidade e expulsando o que é mal, estranho, desagradável e que deve ser jogado para fora da identidade.

Dessa forma, o que se produz mediante o imperativo da identidade é uma divisão constante, a busca pelo dualismo, a polarização entre extremos. No momento em que os sujeitos se dividem entre si baseados em tais identidades fajutas, as contradições internas não são percebidas. O resultado desses processos nos quais os bens culturais - principalmente aqueles voltados para o entretenimento - exercem influência direta é uma visão totalitária que não dá espaço para o singular. Como é colocado por Adorno (1986a), a fabricação de tais afetos repletos de enunciados identitários são consequentemente frágeis e o próprio sujeito não acredita que realmente ame ou odeie aquilo que assim se apresenta e ele automaticamente reproduz.

O papel da arte seria o de desvelar, em sua construção fictícia, a verdade da contradição interna ao indivíduo. O efeito de angústia desejável na criação artística legítima, tal como colocado por Adorno (1983), é o sinal de que houve um momento de abertura à experiência no contato com aquele material artístico. Tal experiência seria a autopercepção de si como sujeito rachado, que comporta algo de indizível. Portanto, a experiência exige uma meta-negação, uma não-identidade. Esta seria a incapacidade dos produtos da indústria cultural que apenas produz cada vez mais identidade, sufocando a contradição.