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Cidadania no Brasil: a figura do não-cidadão

CAPÍTULO 3 CIDADANIA ABSCINDIDA E A CONCRETIZAÇÃO DO MÍNIMO

3.2 Tríade em reflexão: alienação, ideologia e consumo

3.2.6 No mundo globalizado uma indagação: o consumidor é o cidadão?

3.2.6.6 Cidadania no Brasil: a figura do não-cidadão

A cidadania no Brasil nunca se completou, a miséria, o desemprego, os preconceitos, o sub-trabalho, as péssimas moradias, o descaso com os serviços públicos... A lista não cessaria, fato que no nosso país a figura do cidadão jamais existiu: direito não se confunde com privilégio.

Ao “esquecer” a distinção de oposição entre o cidadão e o consumidor, transforma-o em um não cidadão, pois o consumismo e competitividade levam ao emagrecimento moral e intelectual da pessoa, à redução da personalidade e da visão do mundo.340

No Brasil, salienta Milton Santos341, nunca houve a figura do cidadão. A

classe média quer privilégios e não direitos, assim, relegando sua própria cidadania por alguns privilégios que não se confundem com direito, esta dinâmica dá o tom na sinfonia da não-cidadania no espaço, agravando-se ante aos processo de globalização no Estado com um soberania enviesada no túmulo da política.

No que toca aos pobres, a estes é reservada sorte ainda pior: sequer podem ter privilégios, pois seus direitos são espoliados reiteradamente no cotidiano, em suma, não querem direitos, mas privilégios.

340 SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal.

19º ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.49.

3.2.6.6.1 O privado se apodera do público: firmas hegemônicas e o esvaziamento da cidadania

Na globalização é revelado um Brasil, ou melhor, um Estado Brasileiro em que o privado se apodera do público, trazendo uma curiosa indagação em relação as estruturas organizacionais: firmas ou instituições?342

As firmas hegemônicas, os bancos, tomam o das instituições governamentais. Usurpam das assembléias eleitas um poder legislativo que não têm, impondo regras á totalidade dos cidadãos343.

Mediante essa invasão descabida, a vida social é ilegalmente regulada em função de interesses privatistas344.

As firmas usurpam o Estado e se travestem de instituições de fato e consigo trazendo um esvaziamento da figura do cidadão suplantado pela do consumidor:

Que as firmas se assemelham a instituições nos países onde funciona o capitalismo monopolista do Estado é fato já arquiconhecido. Mas em certos países como o Brasil, onde a figura do cidadão é praticamente inexistente, as firmas se comportam impunemente e de forma abusiva.345

Milton Santos traz um exemplo sobre o tal Serviço de Proteção ao Crédito, uma entidade que parece ter se revestido de um ente estatal como uma verdadeira instituição, onde o desrespeito ao cidadão parece ser a praxe de sua atividade, na medida em que se revela uma verdadeira central ilegal de informações que deveriam, ao menos, ser confidenciais, mas servem para julgar, condenar ou perdoar os consumidores segundo suas próprias regras:

Veja-se, por exemplo, o famigerado Serviço de Proteção ao Crédito. Entidade impossível de se conceber onde haja um mínimo de respeito pelas pessoas, em nosso país age naturalmente e se comporta como se fosse uma verdadeira instituição pública. Esse SPC funciona ao mesmo tempo como uma central ilegal de informações que obtém e que deveriam, ao menos, ser confidenciais, para julgar, condenar ou perdoar os consumidores segundo suas próprias regras. Veja-se o que a Folha de S.Paulo, na edição de 12

342 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p. 22.

343 Milton Santos em nota de rodapé aponta que um banco, o Itau, discrimina os seus clientes

segundo estrela, cujo numerário indica regalias ou preterições, como a existência de filas especiais ou exclusivas.

344 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p. 22. 345 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p. 23.

de janeiro de 1985, escreveu sobre o mesmo: ‘’O SPC é um sistema de centralização de informações sobre clientes criado pelas associações comerciais com o objetivo de identificar os maus pagadores. A principal argumentação contrária a ele é a sua força no mercado e a falta de base legal. Os críticos do serviço alegam que inicialmente o SPC tinha uma atuação regional. Hoje, a informatização e a centralização dos dados permite que um consumidor que atrase uma prestação em Quixeramobi, por exemplo, seja emitido de comprar em qualquer outro ponto do país. Além disso, há abusos por parte de alguns comerciantes, Hã casos de proibição de credito para parentes de pessoas negativadas, ou seja: um problema do SPC pode se transformar num verdadeiro estigma’’346

Esta prática do tal SCP acaba por fazer sentir um esvaziamento da cidadania e do próprio Estado de Direito, aliás, os bancos não fazem diferentes criando regras próprias revelia da lei.

Pior ainda é o aparelho judicial não coibir, mas chancelar esta prática negadora de cidadania e tão estigmatizadora. Este estado de desinformação jurídica das pessoas, acaba por promover uma cidadania mutilada, no qual estigmatizando e “negativando” o cidadão dentro de sua cidadania, cristaliza manifesta uma verdadeira abominação que vergonhosamente passa a ser aceita como “natural” diante de tantas humilhações a que desgracadamente estão acostumados.

O direito de atrasar é “punível” com ferocidade, até mesmo pelo Estado, inclusive em relação a serviços essenciais como energia elétrica, água, telefonia, entre outros, em sua maioria privatizados, assim, a lei do mais forte347 prevalece em detrimento da dignidade e da cidadania:

O SPC não é o único a cobrar juros e ágios extorsivos e indevidos,, sem a mínima possibilidade de apelação. Tal prática se verifica até mesmo nos bancos, que, aliás. Adotam regras particulares na circulação dos cheques apresentados, recusando inclusive certos pagamentos com cheques de outras instituições bancárias, quando a Lei claramente estabelece que o cheque é irrecusável. Pois ninguém pode pré estabelecer que o outro é desonesto até que legalmente o comprove. O que é grave, e revela o estado desse informação jurídica da população, é que poucos se dão conta de que os seus direitos de cidadania estão sendo esbulhados. Desinformação jurídica ou certeza de que nada adianta reclamar? E o direito de

346 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.p.23. 347 Queremos dizer, o mais $$$$$$$

atrasar? Num país onde é tão elevado o percentual da população que tem ocupação, mas não propriamente emprego, e a grande maioria ganha muito aquém do mínimo necessário,a intolerância com o atraso de pagamento de bens e serviços essenciais como a água e luz, por exemplo, é, certamente, inaceitável, e o é ainda mais por partir de empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos.348

3.2.6.6.2 O serviço público abastardado e o “usuário”

Desta cidadania mutilada o conceito de serviço público foi abastardado, reflexo direto das privatizações, apelidando os consumidores de “usuários”:

O conceito de serviço público foi, aliás, abastardado a um tal ponto que as entidades fornecedoras trabalham na base do lucro, que buscam aumentar gulosamente. Os clientes, isto é, toda a população ganharam o apelido de “usuários”349.

Milton Santos aponta dois objetivos na reconstrução da cidadania que não podem ser alcançados separadamente: a crítica do consumismo e o reaprendizado da cidadania:

Uma grande tarefa neste início de século é a crítica do consumismo e o reaprendizado da cidadania, objetivos que não podem ser alcançados separadamente. A ideologia do consumo mediante suas aparências, está fortemente impregnada na população. O pobre no Brasil é neste momento o único ator social com o qual podemos aprender algo de verdadeiro. Na sabedoria da escassez no âmbito de sua experiência é que se faz a ponte entre a necessidade e o entendimento. Tem se que ser cidadão é pertencer a um corpo amplo, ser identificado como uma particular nação, ter direitos e deveres garantidos pelo Estado correspondente a esta nação, além de estar relacionada a idéia de exclusão e inclusão.350