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Consumidor imperfeito: o emergir do cidadão

CAPÍTULO 3 CIDADANIA ABSCINDIDA E A CONCRETIZAÇÃO DO MÍNIMO

3.2 Tríade em reflexão: alienação, ideologia e consumo

3.2.6 No mundo globalizado uma indagação: o consumidor é o cidadão?

3.2.6.2 Consumidor imperfeito: o emergir do cidadão

Este individuo cidadão liberta-se do mercado e se impõe como um consumidor imperfeito, caminhando para a reconstrução de sua individualidade e de sua cidadania:

Onde o indivíduo é também cidadão, pode desafiar os mandamento do mercado, tornando-se um consumidor imperfeito, porque insubmisso a certas regras impostas de fora dele mesmo. Onde não há o cidadão, há o consumidor mais que perfeito. È o nosso caso.319

Em verdade a idéia de cidadania passa indubitavelmente pela revelação do indivíduo enquanto consumidor imperfeito, não se submetendo aos preceitos do mercado e da mercadoria, sendo, pois o sujeito de sua própria historia e não seu objeto, consciente de que onde por meio de uma alienação sistêmica o consumo e o individualismo tentam forçosamente se firmar como naturais e criando o não cidadão.

Este paradigma pode ser superado e a reflexão de Milton Santos ressalta que a possibilidade de mudança poderia ser através do resgate da individualidade, de

317 SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal.

19º ed. Rio de Janeiro: Record, 2010. p.139.

318 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p. 41. 319 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.41.

sua liberdade e emancipação, afinal é “uma grande tarefa deste fim de século é a crítica do consumismo e o reaprendizado da cidadania”.320

O consumo veio a determinar uma dinâmica de mercado que impôs a cada indivíduo a perda de sua individualidade e por conseqüência de sua personalidade, tornando-o uma espécie de coisa, preso em si mesmo e distante do que se pode conceber como cidadania:321

Por certo a grande perversão do nosso tempo, muito além daquelas que são comumente apontadas como vícios, esta no papel que o consumo veio representar na vida coletiva e na formação do caráter dos indivíduos.322

Milton Santos afirmar que o consumidor não é o cidadão em uma singular reflexão que revela as ilusões que o consumismo pode induzir o individuo a confundir seu espírito:

O consumidor não é o cidadão. Nem o consumidor de bens materiais, ilusões tornadas realidade como símbolos:? A casa própria, o automóvel, os objetos , as coisas que dão status. Nem o consumidor de bens imateriais ou culturais, regalias de consumo o turismo e as viagens, os clubes e as diversões pagas; ou de bens conquistados para participar ainda mais do consumo, como a educação profissional, pseudo educação que não conduz ao entendimento do mundo.323

Prossegue Milton Santos324 ampliando a reflexão crítica de cidadania ao eleitor, um “imbecil feliz”, afinal as dimensões da cidadania ultrapassam o momento do voto, momento esse que muitas vezes não passa, para muitos brasileiros, de mais uma obrigação em suas vidas, opinião essa que deriva tanto da falta de informação como da própria descrença no sistema político, diante de injustiças e desigualdades que se arrastam há séculos sem a devida resolução:

320 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.125.

321 Não entendido apenas como possibilidade de participação política na sociedade, mas em uma

amplitude muito maior como direitos e garantias asseguradas a cada pessoa na construção de um mundo onde possa se desenvolver enquanto ente singular e coletivo, ainda, um conjunto de prerrogativas que visa possibilitar a construção de um mundo da dignidade humana, uma unidade ou um conjunto harmonizado de consciências.

322 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.33 323 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.41 324 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.41

O eleitor também não é forçosamente o cidadão, pois o eleitor pode existir sem que o individuo realize inteiramente suas potencialidades como participante ativo e dinâmico de uma comunidade. O papel deste não-cidadao se esgota no momento do voto; sua dimensão é singular, como é a do consumidor, esse “imbecil feliz”. 325

Fazendo Milton Santos destacar que “o clientelismo326 é um elemento da não-

cidadania, porque distorce a orientação eleitoral, afastando o individuo da meta da consciência possível”. 327

Os shopping centers e os supermercados são “catedrais”328 do “consumo que é verdadeiro ópio”329, no qual o “poder do consumo é contagiante, e sua capacidade

de alienação é tão forte que sua exclusão atribuía às pessoas a condição de alienados”.330

A alienação como o processo de fragmentação do conhecimento e, conseqüentemente, distorção da realidade humana aponta destes indivíduos acarreta em seu desvirtuamento e degenerescência. Esta “coisificação” do homem o indignifica e o corrompe.

O cidadão não é estático e o reflexo de sua natureza é o desenvolvimento de suas potencialidades enquanto ente na esfera singular integrado ao coletivo na construção do mundo, ou “dos mundos”, é pois, o cidadão multidimensional, onde cada dimensão se articula com as demais na procura de um sentido para a vida.331

Milton Santos analisa uma perspectiva da cidadania sob o prisma diante da organização e produção do espaço brasileiro nos sistema vigente, no qual o progresso material alcançado pela sociedade estabeleceu uma racionalidade econômica, esta arraigada na cultura moderna e repassada aos países pelo mercado e também pelo discurso e ação estatal, responsáveis pela criação e manutenção de uma ideologia do dito progresso.

325 Milton Santos aponta H. Laborit que inspirou o termo”imbecil feliz”.

326 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987.p.71. - .Milton Santos define

clientelismo como o movimento que confunde o ato de votar com a afinidade pessoal.

327 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.73. 328 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.34. 329 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.34. 330 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.34. 331 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. p.41.

Assim, o denominado "mercado consumidor brasileiro" vem crescendo, ao passo que a miséria de seu povo também. Este consumo alienado dentro de um modelo cívico, político e econômico que nada tem a ver com cidadania, acaba por amputá-la:

O progresso material obtido nestes últimos anos no Brasil teve como base a aceitação extrema de uma racionalidade econômica, exercida pelas firmas mais poderosas, estrangeiras ou nacionais, e o uso extremo da força e do poder do Estado, na criação de condições gerais de produção propícias à forma de crescimento adotada. Estas condições gerais de produção não se cingiam à criação de infra- estruturas e sistemas de engenharia adequados, mas chegavam à formulação das questões políticas que assegurassem o êxito mais retumbante à conjugação de esforços públicos e privados no sentido de ver o país avançando, em passo acelerado, para uma forma "superior" de capitalismo. Por isso, a noção de direitos políticos e de direitos individuais teve que ser desrespeitada, se não freqüentemente, pisoteada e anulada. Sem esses pré-requisitos seria impossível manter como pobres milhões de brasileiros, cuja pobreza viria de fato a ser criada pelo modelo econômico anunciado como redentor. Aliás, muitos pobres acreditaram nos slogans com que se popularizou o discurso cientificista e acabaram mais pobres ainda. O modelo político e o modelo cívico foram instrumentais ao modelo econômico. As esperanças com que este último acenava às massas eram despertadas para a necessidade, o interesse, a vantagem de ampliação do consumo, mas não para exercício da cidadania, que era cada vez mais amputada.332