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1.1 Estado da Arte

1.1.3 Cinema europeu

“A Nouvelle Vague francesa constitui um excelente exemplo de como escolhas não convencionais encontram expressão numa banda sonora na segunda metade do século XX”31 (Kalinak, 2010: 73).

A Nouvelle Vague32 francesa nascida em finais dos anos 1950 fez mais para revolucionar as técnicas e perspectiva estética da música para cinema – e todos os outros parâmetros de produção fílmica – do que qualquer outro movimento na história do cinema (Cooke, 2008: 319). A importância da Nouvelle Vague prende-se, pois, com o facto de ser unanimemente reconhecida como uma época de inovação e ruptura com o

mainstream e com as convenções construídas e cimentadas ao longo dos primeiros 50

anos de cinema. É possível, e constitui um anseio deste trabalho, estabelecerem-se paralelos entre a técnica musical utilizada na composição musical e o efeito a transmitir ao espectador, como no caso de Claude Chabrol no filme La Femme Infidèle, de 1968. Ao optar pela atonalidade, num contexto de trio de piano com vibrafone e órgão eléctrico, o compositor Pierre Jansen pretende manter o espectador atento ao que se passa nas imagens e retirar-lhe as referências auditivas, características da linguagem atonal, mas criando simultaneamente um estado de alerta e pressentimentos (Cooke, 2008: 330). O compositor apresenta uma linguagem de cariz erudito caracterizada pela atonalidade e instrumentação variadas com influência da escrita para piano de Olivier Messiaen. Jansen compôs cerca de trinta bandas sonoras para Claude Chabrol, nomeadamente para La

Rupture, de 1970, numa sonoridade igualmente marcada pela atonalidade e pela busca de

motivos desconcertantes para o espectador. Sans Toit ni Loi (1985) de Agnés Varda,                                                                                                                

31 “The French New Wave is an excellent example of the ways in which unconventional choices found

expression in the filmscore in the second half of the twentieth century.“

32 Segundo Mendes (2009, 78), “é comum distinguir nela [Nouvelle Vague] três períodos: um inicial,

«romântico» e de ruptura, de 1959 a 1962; um segundo período, de 1963 a 1967, em que os seus estilos e características se tornam progressivamente no novo establishment generalizado das cinematografias europeias, tão «normativos» e tão «moedas de acesso» ao sistema da critica como qualquer outro «classicismo»; e um terceiro, de 1968 a meados ou finais da década de 70, em que a sua herança se metamorfoseia e se refunde em cinematografias e autores menos referenciais, dando origem ao que alguns designam por cinema «pós-moderno».”

embora mais recente, é outro exemplo da presença e adopção da linguagem atonal, neste caso para a música para cordas composta por Joanna Bruzdowicz, que a relaciona com o ambiente frio vivido pela protagonista (Cooke, 2008: 331) e a atmosfera pretendida pela realizadora para este filme, numa clara colagem da música à temática narrativa. Encontramos outro exemplo de opção pela atonalidade em Le Rayon Vert (1986), de Eric Rohmer, obra contemporânea de Sans Toit ni Loi. A linguagem musical utilizada e o efeito que provoca dá azo a analogias e Cooke refere-se à empatia entre a narrativa do filme e a solidão, frieza, desabrigo da atmosfera musical, proporcionada, por sua vez, pela escolha da técnica utilizada. Todos estes fenómenos surgem num contexto de experimentação e busca de novas linguagens iniciado com a Nouvelle Vague no final dos anos 1950. Há agora uma maior presença e consciência por parte do espectador dos meios técnicos, nomeadamente da banda sonora, devido, essencialmente, à forma como esta é apresentada e manipulada através da edição, o que é facilmente observável em filmes de Jean-Luc Godard como Pierrot le Fou ou Prénom Carmen, de 1965 e 1983, respectivamente. A analogia entre a abordagem musical e uma narrativa segmentada ou fragmentada está em sintonia com a linguagem e processos fílmicos segundo os padrões estéticos pretendidos pelo cineasta. A música apresenta-se-nos mais intrusiva e artificial. O papel do realizador torna-se mais presente e decisivo, crescendo o seu protagonismo e consequentemente o conceito de cinema de autor. Vivre sa Vie, de 1962, é um dos casos paradigmáticos da edição godardiana. Godard liga os inícios e cortes abruptos da música a outros aspectos do filme. A dialéctica música/silêncio leva-nos a reflectir sobre relações presentes no filme como vida/morte, arte/realidade ou significado/não-significado. Estamos numa época de vigência e coexistência de diferentes abordagens, uma mais conservadora e na linha da tradição através de compositores como Bernard Herrmann ou Georges Delerue, ambos colaboradores de François Truffaut e ligados à tradição romântica europeia, e outra, de ruptura com o passado, não só ao nível da linguagem musical mas principalmente ao nível da montagem e edição, com destaque, como vimos, para Godard. Um exemplo de deliberada incongruência entre estilo musical e/ou instrumentação e tempo é o caso de La Religeuse (1966), de Jacques Rivette. Um claro e evidente traço de modernidade que aufere uma hibridez temporal entre a época em que se desenrola o filme, o século XVII (a partir de um romance homónimo de Denis Diderot), e

a instrumentação utilizada. A música composta por Jean-Claude Éloy recorre a técnicas da música concreta, presente noutros filmes da Nouvelle Vague, nomeadamente em inúmeras curtas-metragens experimentais33. Noutra perspectiva, na busca de maior realismo, a música pode estar totalmente ausente como em Belle de Jour, filme de 1967 realizado por Luis Buñuel. Neste filme, o realizador não utiliza música de qualquer espécie (Lim, 2010: 44). Todos os realizadores focados até ao momento nesta secção acabam por se encontrar numa linha de herança com a Nouvelle Vague.

Para além do cinema francês, o cinema italiano também merece destaque quando se fala de cinema europeu. Apesar das diferentes fases discerníveis, essencialmente e primeiramente por razões de ordem politica, a primeira fase do cinema italiano que se destaca coincide com um movimento denominado por neo-realismo, surgido na década de 1940, mais concretamente com o filme Ossessione (1943), de Luchino Visconti e com música de Giuseppe Rosati (Cooke, 208: 365). A música para o filme neo-realista opera segundo uma ambivalência de estilos:

“No cinema do Neo-realismo italiano ouve-se cantar, tocar e dançar e ouvem-se também canções tradicionais, sucessos populares, jazz e fragmentos de ópera. No entanto, estas músicas raramente se ouvem de forma não diegética, em benefício da música de concerto romântica e contemporânea”34 (Mera & Burnand, 2006:

29).

Esta distinção revela-nos duas esferas distintas entre os mundos diegético e não diegético que, segundo estes autores, se justifica pela intenção de criar uma expressividade genuína da realidade popular. Do movimento neo-realista destacam-se cineastas como Roberto Rossellini ou Michelangelo Antonioni, e do lado da composição musical nomes como Alessandro Cicognini ou Giovanni Fusco.

O cinema italiano viria a observar duas das mais longas e bem-sucedidas colaborações, as de Federico Fellini e Nino Rota, e Sergio Leone e Ennio Morricone, neste último par através dos western spaghetti (Kalinak, 2010: 101). Uma das                                                                                                                

33 Ver: http://www.discogs.com/Various-Archival-Series-Musique-Concr%C3%A8te-Soundtracks-To-

Experimental-Short-Films-1956-1978-Volume-O/release/130309.

34 “People in italian neorealism films sing, play and dance and listen to folk songs, popular hits, jazz and

snatches of opera. Yet these forms of music rarely appear in the backgorung music, which runs the stylistic gamut of concert music from mid-romanticism to early modernism.”  

características mais evidentes da música das bandas sonoras italianas, principalmente dos compositores mencionados, incide na variedade tímbrica e na fusão de estilos como o erudito e a música popular. A utilização de instrumentos da música popular constitui uma das características principais, nomeadamente em compositores como Morricone.