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Intervenção da música num filme

1.2 Significação musical em contexto fílmico

1.2.6 Intervenção da música num filme

A música nunca está “sozinha”, i.e., é sempre recebida num contexto discursivo e é da interacção entre actores, texto e contexto fílmico que o significado é construído, tal como o resultado de um significado atribuído a um dado material variará de acordo com as circunstâncias da sua recepção. Desta forma, será errado falar em música de cinema contendo significados particulares e próprios que agem isoladamente, mas antes, em algo que comporta um potencial significado que emerge em circunstâncias específicas. Os vários autores estudados nesta tese transmitem-nos a noção que as qualidades e significações dos vários elementos que interagem no contexto fílmico resultam de uma reciprocidade e complementaridade. Os vários parâmetros musicais que formam o objecto musical constituem apenas uma das partes do todo significante, juntamente com os diálogos, imagem, etc. O julgamento estético articula-se numa comunicação expressiva por um significante formal que o espectador situa imediatamente segundo uma classificação sociocultural, ou por identificação ou por estranheza (Francès, 1984: 385).

A música não possui características representacionais mas possui a capacidade de contribuir para uma significação através de convencionalismos. Qualquer música comporta associações culturalmente identificáveis e muitas dessas associações são produto da codificação e convencionalização do produto cinematográfico ao longo da história. A inferência de significação através da música é suportada e enfatizada pelo contexto da imagem condicionando e manipulando a experiência do espectador, seja ela individual ou colectiva. Esta questão remete-nos para o conceito de valor acrescentado proposto por Chion e abordado um pouco mais adiante. Nas narrativas convencionais, a

música encontra-se normalmente subordinada às exigências narrativas e o significado produz-se não só apenas de acordo com os códigos puramente musicais, mas a partir de uma interacção com os códigos musicais culturais e cinemáticos. Qualquer música comporta associações culturais e muitas dessas associações são produto da indústria musical e cinematográfica. Grande parte dos convencionalismos surgem na era clássica do cinema americano, como fica expresso na seguinte afirmação de Gorbman:

“Todos sabemos como a música de uma batalha índia ou romântica soa num filme; Sabemos que um filme típico da década de 40 escolheria para a sua introdução sedutora um saxofone interpretando uma melodia de Gershwin”48.

Um dos convencionalismos mais presentes na história do cinema é o uso do

leitmotiv, recurso relacionado com a memória auditiva e associações a elementos

fílmicos, sejam eles um personagem, um espaço geográfico, um espaço temporal, etc. Baseado nos princípios wagnerianos, um tema surge associado a um personagem, um lugar, uma situação ou uma emoção (Gorbman, 1987: 3). Este procedimento é sinónimo de uma associação a um destes elementos e produz sempre uma qualquer significação, trabalhando com a memória do espectador. O motivo de duas notas de John Williams em

Jaws surge como um leitmotiv da aproximação do tubarão, mesmo com este fora de

campo, e é utilizado para acentuar e amplificar um elemento central na narrativa – o tubarão. Sem este motivo, as imagens tornar-se-iam ambíguas e a reacção dos personagens tornar-se-ia, também ela, ambígua. Um leitmotiv pressupõe uma repetição que, neste caso, pretende anunciar a presença de perigo através da aproximação do tubarão.

Um tema musical, ou simplesmente um motivo, é, por definição, um elemento que é repetido durante o curso de um trabalho, adquirindo uma associação narrativa que se vai adaptando aos novos acontecimentos numa lógica de continuidade. Se um dado elemento X é repetido, já não será somente X mas algo mais, acumulando significados. A acumulação de significados pode manifestar-se a vários níveis, mantendo uma função fixa na identificação de um mesmo personagem, lugar ou situação ou variar a sua função                                                                                                                

48 “We all know what «Indian music« battle music and romance music sound like in the movies; We know

that a standard forties film will choose to introduce its seductress on the screen by means of a sultry saxophone playing a Gershwinesque melody.”

de identificação numa evolução mais dinâmica (Gorbman, 1987: 27). Para Chion (2011: 12), o cinema cria uma ilusão audiovisual, onde som (ou, neste caso, música), texto e imagem interagem criando uma significação através de uma conjugação de factores, incluindo a percepção, e que são interpretados pelo espectador. Sobre o peso de cada uma das partes e a sua contribuição para um todo, Chion propõe a noção de valor acrescentado que corresponde à contribuição de cada um destes elementos através de um processo de síncrise49. O que se considera estar contido e garantido a partir de uma imagem com som, e cujo resultado perceptivo só é garantido através da conjugação dos diferentes elementos, corresponde à noção de valor acrescentado proposta por este autor. O valor acrescentado é recíproco. Se, por um lado, o som faz ver a imagem de uma maneira diferente de uma imagem sem som; a imagem, por outro lado, faz ouvir o som de maneira diferente do que se ouviria se este soasse no escuro, tendo o ecrã como suporte principal desta percepção. O som contribui para a materialidade e consistência do que se vê e que supostamente não estaria garantido apenas com a imagem. E vice-versa. Veja-se o exemplo de motivos musicais que nos remetem para algo que se encontra fora de campo, não pela realidade acústica do som em si mas por aquilo que o som nos narra por convenções e códigos culturais que essa música transmite ao espectador. O exemplo da cena de aproximação do tubarão, em Jaws, constitui disso um caso paradigmático. O efeito de síncrise, ou seja, a combinação e sincronia de um determinado som (ou música) com um objecto ou fenómeno visual, é susceptível de ser influenciado, reforçado e orientado por hábitos culturais, se bem que com uma base inata – veja-se a reacção de recém-nascidos a determinados fenómenos sonoros e visuais sincronizados (Chion, 2011: 24, 55).