• Nenhum resultado encontrado

Necessidade de música no cinema

1.2 Significação musical em contexto fílmico

1.2.2 Necessidade de música no cinema

Uma das temáticas recorrentes nas abordagens científicas sobre música no cinema centra-se em questionar a necessidade da presença de música num filme. De que forma a música difere dos outros elementos cinematográficos como a posição da câmara, edição, iluminação, actores, etc? Segundo Gorbman, pela diferenciação e rapidez de absorção de informação por parte dos diferentes sentidos, que contribuem e complementam a compreensão do que é observado (1987: 11). A presença da música não pode deixar de estar relacionada também com questões históricas e de vivência do espectador. Desde o teatro grego que a música é utilizada como elemento de acompanhamento, e tanto a antiguidade como os fenómenos de habituação a que se refere Wingstedt (2005) legitimam a sua presença. Gorbman chama a nossa atenção para um fenómeno interessante: a voz de um narrador ou uma qualquer outra voz não diegética constitui uma intrusão à diegesis, o que não acontece relativamente à música e que leva a autora a considerar que esta goza de um estatuto especial por parte dos espectadores (1987: 3). Há

que recordar que nem todas as correntes estéticas viram na música não diegética um elemento imprescindível na elaboração de um filme. Basta referir o grupo de cineastas ligados ao movimento Dogma 95, o cinema de Taiwan, no caso de grande parte da obra de Hou Hsiao Hsien, ou novas correntes “realistas” emergentes em países como o Irão, apenas para citar alguns exemplos. Todas estas correntes actuam segundo uma lógica de busca de realismo. No entanto, estes exemplos não deixarão de constituir uma pequena minoria. Para grande parte da produção cinematográfica, a música seleccionada para um filme constitui-se num elemento integrante e imprescindível com uma intencionalidade própria de produzir afectos e efeitos nos espectadores

A noção semiológica de códigos é crucial para o estudo da significação da música no cinema (Gorbman, 1987: 2), códigos esses que podem ser definidos como práticas de comunicação num determinado quadro cultural (Wingstedt, 2005: 18). Ser membro de uma determinada cultura implica compreender e decifrar tais códigos e a sua relação, interligação e os contextos em que são apropriados e característicos (Chandler, 2002, citado por Wingstedt, 2005: 18), já que não é possível obter um discurso inteligível sem a operacionalidade desses mesmos códigos (Hall, 1980: 95). Segundo Gorbman, o significado na música, como discurso organizado, pode ser observado segundo três níveis distintos: (1) por códigos puramente musicais, pelo discurso musical puro e tendo em conta apenas a estrutura musical. A lógica interna de um objecto artístico, como a música no contexto fílmico, nunca poderá produzir efeitos e significados independentes, como se se apresentasse fora desse contexto ou isoladamente, como no caso de Chronicle of Anna

Magdalena Bach, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Embora o filme retrate uma

família, a de Bach, em que a música desempenha um papel central, não é a música que se constitui como objecto central do filme. Apesar de serem apresentadas variadas obras durante todo o filme, estas assumem um significado dentro de um contexto narrativo que pretende dar a conhecer a vida para além da esfera musical. (2) Códigos musicais

culturais: este aspecto pode revelar-se importante na condução narrativa, nomeadamente

através de antecipações da acção, o que implica que o grupo social a que se destina um filme conheça a “deixa” transmitida pela música. Mas o importante neste contexto é que esse grupo social a que um filme se destine reconheça traços comuns entre os seus membros e se identifique com as “deixas” veiculadas musicalmente, num processo de

associação entre o significante, neste caso a música, e o seu significado ou aquilo a que pretende aludir. (3) Códigos musicais cinematográficos numa relação e coexistência com elementos do filme. Aqui, a música é codificada pelo contexto e assume um significado pelo seu lugar e posicionamento no filme.

A música no cinema estabelece e situa com enorme eficácia a imagem, histórica e geograficamente, ou em termos de atmosfera, através de signos e códigos culturais estabelecidos (Gorbman, 1987: 59). A música, como a fotografia, ancora a imagem em significado através de uma rede em torno do significante visual, conduzindo o espectador ao significado através de conotações e associações (Larsen, 2007: 68), conotações essas que funcionam segundo estereótipos culturais. Estes são factores a ter em conta no processo de composição. A necessidade de incluir música num filme tem a ver, entre outros aspectos, com a aceitação da música num sistema codificado como o cinema através de um fenómeno de habituação de estilo, onde actuam códigos e convenções que se configuram e vão ao encontro das expectativas criadas por experienciação e habituação a um determinado sistema de códigos (Wingstedt, 2005: 19). Muitas vezes, é através da música que compreendemos o que vemos – o que pensamos que vemos é determinado pelo que ouvimos (Wingstedt, 2005: 17):

“Na narrativa multimedia temos tendência para nos focarmos no que percebemos como sendo os aspectos concretos, normalmente os aspectos visuais (como as faces das pessoas) e o significado léxico da palavra falada. Somos menos conscientemente preocupados com os ângulos fotográficos, luzes, movimentos de câmara, edição, desenho sonoro ou música – mas estes elementos afectam mais a nossa experiência geral e entendimento de significado do que nós nos apercebemos de forma consciente. Tal como na linguagem falada, o significado léxico, prosódia, inflecção e entoação, qualidade vocal, linguagem corporal, expressão facial, etc. são percebidos como uma unidade contribuindo para o nosso entendimento de significado. Experienciamos o colectivo de todas as partes constituintes, mas tendemos a focar a nossa análise consciente nos elementos mais intelectuais ou salientes, usualmente na escolha habitual das palavras como elemento primordial. Nesta perspectiva, talvez o papel da música num filme ou em jogos não apareça tão estranho. Seguindo mecanismos similares que utilizamos na linguagem falada, a música aparece num sentido idêntico ao da prosódia da linguagem num diálogo. Neste sentido, a música pode ser pensada como entoação ou timbre vocal num texto fílmico”41 (Wingstedt, 2005: 17-18).

                                                                                                               

41 “It seems that in narrative multimedia we tend to focus on what we perceive as being the most concrete

features, usually visually salient aspects (like people’s faces) and the lexical meaning of the spoken word. We are less consciously aware of factors such as photographic angles, light, camera movements, editing, sound design or music – but chances are that these elements affect our total experience and understanding

Para que compreendamos os códigos a que Wingstedt se refere, será necessário que estes nos sejam familiares para que nos seja possível inferir significado. Para a semiótica musical não existe nenhuma relação e conotação “natural” entre a música utilizada e o que traduz emocionalmente, sendo que os padrões associativos actuam com base em construções histórico-culturais (Larsen, 2007: 69). Para a sua compreensão, o espectador deverá ter activa uma escuta semântica, aquela a que se refere a um código ou a uma linguagem para interpretar uma mensagem (Chion, 2011: 29).