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4. Brincadeira do reisado e identidade – cipós de resistência e transformação

4.6 O cipó do espetáculo teatral

Uma outra linha (ou cipó) de leitura da brincadeira do reisado é compreendê-la como uma experiência estética. O reisado é um auto teatral.

Forma teatral de enredo popular, com melodias cantadas, tratando de assunto religioso ou profano, representada no ciclo das festas do Natal (dezembro- janeiro). Lapinhas, pastoris, fandango ou marujada, chegança ou chegança de mouros, Bumba-meu-boi, boi, boi calemba, boi de Reis, congada ou congos etc. (...) Dos autos populares brasileiros o mais nacional, como produção, é o Bumba-

meu-boi, resumo de reisados e romances sertanejos do Nordeste, diferenciados e amalgamados, com modificações locais, pela presença de outras personagens no elenco. (CASCUDO, 2001, p. 29)

Consiste numa narrativa já conhecida por todos onde a esperteza, o improviso e a brincadeira são elementos fundamentais. Tem a forma de começar e o modo de concluir: hino de Santos Reis, apresentação dos caretas com suas lodaças, a participação das damas, a brincadeira da burra seguida do boi e, por fim, a despedida. Há também recursos cênicos previamente definidos: figurinos, adereços (lenços, os panos – aquele colocado sobre a porta da casa quando se canta o hino de Santos Reis e é presenteado ao capitão e o que representa a fussura do boi), bonecos, músicos etc. Cada episódio da narrativa conta com uma forma própria de condução feita pelos caretas que pode sofrer variações conforme a visão que os mesmos estão tendo do espetáculo.

Se esses elementos caracterizam os elementos técnicos obrigatórios do auto, na nossa trama interpretativa é o que conta menos. O que se destaca sobremaneira na nossa leitura é o fato de que aquele auto só se consuma como espetáculo graças à forte interação entre brincantes e plateia. São nos recursos de mediação entre artistas e espectadores que o espetáculo do reisado do Cipó se realiza fortemente como experiência identitária. As brincadeiras e piadas contadas dialogam visceralmente com as referências linguísticas e os sentidos de risível da plateia. Por vezes, como espectador estranho não compreendia as razões do riso, motivado por um gesto ou por uma expressão linguística, empregado pelos caretas. Sobre essa compreensão significativa da oralidade do reisado do Cipó importante lembrar as reflexões de Paul Zumthor sobre a “espeficidade linguística de toda comunicação vocal”:

Esta comporta, com efeito, na sua própria condição vocal, pelo menos por parte de dois sujeitos – locutor e ouvinte –, o mesmo, mas não idêntico, investimento de energia psíquica, de valores míticos, de ‘sociabilidade’ e de linguagem. Tão fortemente social quanto individual, a voz mostra de que modo o homem se situa no mundo e em relação ao outro. Efetivamente, falar implica numa audição (...), atuação dupla em que interlocutores ratificam, em comum, pressupostos fundamentados em um entendimento, em geral tácito, mas sempre (no centro de um mesmo meio cultural) ativo” (1997, p. 31 e 32).

Além dessa comunhão cultural, alguns espectadores das plateias são pessoas conhecidas pelos brincantes. Assim, a “dama” brinca com aquele amigo machista ou tímido; o “boi” corre em direção daquela conhecida medrosa ou do amigo valente; o “careta” sabe quem pode dar mais ou menos dinheiro para o boi e explora esse conhecimento por meio de seus versos interpelativos. Por outro lado, a própria plateia não é composta por estranhos. São amigos, parentes, vizinhos e compadres. Reage ruidosamente quando um amigo é interpelado pelo careta ou comenta a reação do mesmo frente ao apelo do brincante. Nada escapa a essa platéia co-participante da brincadeira: as pessoas interagem com os artistas e jamais são tratadas como estranhos anônimos.

O fato de reunir pessoas conhecidas e desconhecidas, em um momento diferente daquele do trabalho, em um período específico do calendário anual, é capaz de gerar relações sociais (brincadeiras, rever amigos, trocar idéias/informações, etc.), de viver momentos de intensidade febril do brincar e festejar (momento de explosão dos sentidos humanos), de criar situações inesperadas de convívio social etc.

Esse caráter de pessoalidade e co-participação cria um espetáculo singular onde ninguém é anônimo. Do capitão à criança sentada no colo de sua avó, todos se veem naquela encenação. Se há uma história previamente definida a ser encenada, outras histórias vão se somando à brincadeira. Nesse sentido, apesar das trocas entre a “administração” do reisado e a modernidade, algumas referências resistem.

Desse ponto em diante, tomamos as reflexões de Paul Zumthor para ponderar acerca do exercício do falado na brincadeira do reisado do Cipó de Baixo. A poesia oral e a fala são recursos fundamentais à realização da brincadeira. Tanto para seus principais atores, os caretas, como aqueles que contribuem com ela, o capitão e seus convidados (a plateia). Neste trecho mais destaco caracteres gerais do cipó da fala performática do que faço uma análise exaustiva do auto de Reis do Cipó de Baixo, a partir da performance da fala. Continuo no inventário dos cipós da brincadeira e de suas relações com o mar de sociabilidades das comunidades rurais onde se reproduz o reisado.

Jamais podemos esquecer a forte associação entre a memória oral e a literatura. Na antiguidade, no medievo e ainda em muitas comunidades e sociedades modernas, a memória é um dos elementos constitutivos da Literatura. Le Goff (1994) registra esse caráter como marcante nos tempos das sociedades pré-históricas, antigas e medievas. As narrativas e poesias mantinham-se preservadas na memória oral coletiva: “na medida em que a mensagem poética, para se integrar na consciência cultural do grupo, deve recorrer à memória coletiva, ela o faz em virtude de sua oralidade” (ZUMTHOR, 1997, p. 41). Talvez resida nesse caráter a dificuldade de manter-se a tradição dos caretas cantadores de lodaças. As crianças e a juventude das comunidades rurais, mais afeitas ao mundo da escrita, graças à expansão da escolarização e do acesso à rede mundial de computadores, vivem, de modo mais atroz, as contradições entre a socialização por meio da cultura oral e o aprendizado social, por meio da cultura escrita. De outro modo, o mundo da indústria fonográfica reproduzido nas rádios e nos cds pirateados apresenta-lhes uma outra via da reprodução da linguagem. A transmissão oral das lodaças dos caretas carece do desenvolvimento de competências que tanto as canções da indústria cultural como as escolas formais desconhecem além do fato de que as lodaças, no ambiente escolar, não são apreciadas como uma valiosa experiência literária.

Como bem descreve o Francisco, filho de seu Raimundo Milú, além de estar sempre presente nas apresentações do reisado, aqueles que querem aprender necessitam, continuamente, estar exercitando a sua memória em reuniões espontâneas ou “ensaios” esporádicos.

E o reisado... e assim é como o reisado. Tem dia que a gente nem tá nem aí. Quando dá fé, se junta seis, sete, oito menino aí. Aí o Vítor (sobrinho) e o Douglas (filho) começam brincar. Aí, os menino começam.

– Aí, Chiquim, pega a sanfona! Aí, eu pego a sanfona.

– Aí, tio Raimundo, venha mandar o boi aqui!

Aí já começa a brincadeira e é meia hora, uma hora de brincadeira. (FRANCISCO MILÚ, 2009 – parênteses nossos).

Nos terreiros das casas dos brincantes, sob o estímulo dos mesmos, são reunidas as crianças para vadiar em torno do boi. Durante aquela reunião, além de ouvirem e repetirem as lodaças, exercitam os passos diferenciados, as manhas e passos dos caretas, suas artimanhas burlescas e toda a estrutura do auto. Paul Zumthor ressalta que a “presença da voz” instaura uma “ordem própria” eivada de valor simbólico:

Para aquele que produz o som, ela rompe uma clausura, libera de um limite que por aí revela, instauradora de uma ordem própria: desde que é vocalizado, todo objeto ganha para um sujeito, ao menos parcialmente, estatuto de símbolo. O ouvinte escuta, no silêncio de si mesmo, esta voz que vem de outra parte, ela a deixa ressoar em ondas, recolhe suas modificações, toda ‘argumentação’ suspensa. Esta atenção se torna, no tempo de uma escuta, seu lugar, fora da línga, fora do corpo. (1997, p. 17)

Os poucos meninos que ainda se interessam pela brincadeira são acolhidos pelos brincantes que recriam aquele tempo de jogo, fantasia e apropriação do discurso oral. Naqueles momentos particulares, eles têm oportunidade de apropriar-se dessa matéria “enigmática” (ZUMTHOR, 1997, p. 17): a voz e um de seus matizes, que é a poesia oral. Entram em contato com a magia de uma voz performática e encantadora que narra histórias e modos de ver e viver o mundo.

Com o passar do tempo, essas reuniões já não são tão atraentes e estimulantes. A televisão, as novas brincadeiras e jogos, a multiplicação de bares e festas, a rotina escolar e os valores novos apreendidos na mesma, tudo isso vem afastando crianças e jovens daquelas reuniões para brincar o reisado. Brincadeira esta que pressupõe uma oralidade que dialoga com a memória dos brincantes e da vida daquelas comunidades rurais. Não é uma oralidade efêmera, prisioneira de um eterno presente, “despersonalizada” (ZUMTHOR, 1997, p. 29): trata-se de uma oralidade ancorada numa tradição, numa arte poética, em modos de brincar e em padrões de sociabilidade comunitária. Trata-se de uma voz social definida num tempo e espaço. Diferentemente da cultura letrada apreendida no sistema escolar e exigida como um dos pré-requisitos para inserção no mercado de trabalho moderno, a oralidade para aqueles atores sociais é fundamental, pois, além de registrar sua história, é meio vivo de comunicação e interação social. Como bem destaca Zumthor: “é inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-lhe os traços que contrastam com a escritura” (1997, p. 27). A brincadeira do reisado reforça o valor da oralidade para aquelas pessoas que sempre a tomaram como expressão rica de seus conhecimentos, meio fundamental que subsidia as redes de sociabilidade e ancoradouro de suas memórias individual e social.

Durante o reisado, todos falam. Os caretas, o capitão e a plateia. Não são palavras distantes de suas vidas como aquela oralidade da indústria cultural (tv, cinema, rádio, internet). Esta última é impessoal, autoritária, estranha aos interesses e realidades particulares e omite a participação do interlocutor. As palavras daqueles que se reúnem nos terreiros dos capitães são pessoais, criativas, dialogais e refletem as vidas de seus autores. Verificamos que os moradores da zona rural do município de Pedro II não estão indiferentes à oralidade da indústria cultural. Na casa de Raimundo Milú, vivi inúmeras experiências de esperar os

brincantes para sair para vadiar em sua sala, diante da tv ligada: conversava-se e via tv. Mas também participei de muitas conversas na porta de casa ou no terreiro. Nestes diálogos, fala- se de tudo: desde os fatos mais recentes aos mais antigos; dos fatos mais corriqueiros aos segredos; das notícias sobre familiares ao noticiário sobre o mundo. O ato de dialogar é meio de existir – tanto a existência subjetiva como a rotina dos papeis sociais reproduzidos diariamente. Fazer parte de uma roda de conversas é também reaquecer os laços que aproximam os parentes, vizinhos e amigos. São oportunidades para atualizarmos os passos da vida e relembrar as trajetórias trilhadas.

O reisado como festa “... é sempre uma ocasião de descontração, divertimento, envolvendo danças, músicas, bebida, alegria” (TASSINARI, 2003, p. 41). São ocasiões que inflamam os modos de ser, pensar e fazer de seus participantes. Na espontaneidade propiciada pela energia vibrante do encontro coletivo, na segurança e conforto de estar entre pessoas conhecidas e queridas, na condução dos caretas, sempre perspicaz e engraçada, no burburinho que vibra a grande ciranda da brincadeira, nos deslocamentos surpreendentes das damas, caretas e passarinhos, a festa ganha força e comoção social. É neste clima que também verificamos no reisado a materialização daquilo que Zumthor define como performance:

A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, e circunstâncias (...) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis. Na performance se redefinem os dois eixos da comunicação social: o que junta o locutor ao autor; e aquele em que se unem a situação e a tradição. Neste nível, a função da linguagem que Malinowski chamou “fática” realiza plenamente o seu jogo: jogo de aproximação, de abordagem e apelo, de provocação do Outro, de pedido, em si mesmo indiferente à produção de um sentido” (1997, p. 33)

No reisado, a fala poética ou a conversa persuasiva e jocosa dos caretas com o capitão ou com pessoas da plateia possuem fortemente esse traço “fático”: a provocação, o pedido, o chiste caracterizam fortemente aquele jogo de aproximação. Como bem descreve Zumthor (1997), mais que o sentido, o que interessa é o jogo que aproxima locutor e destinatário. É a brincadeira, a troça, o estar juntos que fazem daquele momento de comunicação um momento único para todos os participantes. Como já explicado por Francisco Milú, não importa tanto que as pessoas compreendam as poesias dos caretas: o falar rápido a ponto de não se compreender em alguns momentos já faz parte da performance. O que mais chama atenção de todos é a totalidade do ato performático, que associa exercício espetacular do cômico, a demonstração de sabedoria e habilidades e a construção de situações que “obrigam” todos a participarem com algum agrado. O ato coletivo que agrega, a festa de gargalhadas e

provocações mútuas, o brincar pelo brincar, todos estes elementos fazem daquele momento performático um fato complexo e de singular sociabilidade.

É ainda Zumthor que destaca caracteres dessa profusão do “falado”:

Marcadamente conotativo, ligado a todos os jogos de linguagem cuja combinação forma o vínculo social, ele deve sua legitimidade e sua força persuasiva muito mais ao testemunho que constitui, do que ao que expõe, de modo que o critério de verdade desaparece em benefício de um outro muito mais fluido: a comunicação é memória dócil, flexível, maleável, nômade e (graças à presença dos corpos) globalizadora. (1997, p. 35).

Uma linguagem aberta ao exercício criativo, sob o testemunho e apreço de uma coletividade. O reisado do Cipó pressupõe a vivência desse jogo coletivo onde a linguagem é um forte meio de aproximação e agregação social. A fala compartilhada por uma certa coletividade composta por pessoas conhecidas e/ou parentes faz da brincadeira do reisado um momento de celebração dos vínculos que unem essas pessoas. Os improvisos dos caretas que dialogam com as pessoas e situações compartilhadas por todos fazem do “falado” uma liga que aproxima e vincula os falantes.

O reisado do Cipó, reproduzido em tantas outras situações, é uma oportunidade singular de reunir pessoas, famílias e comunidade. Já tratamos desse caráter comunitário da brincadeira. As pessoas não estão ali tão somente pelo movimento, pelas brincadeiras dos caretas, mas porque todos estão reunidos. Assim como os caretas conduzem aquela pequena multidão pelas peripécias de seus gestos e palavras faladas, são pelas falas compartilhadas com seus parentes, amigos e vizinhos que todos reaquecem suas vidas, relembram suas trajetórias, atualizam seus saberes, reforçam os laços de afeição e convivência comunitária.