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3. Brincadeira do reisado e memória – solidariedade, diversão e narrativas

3.1 O contrato do reisado

A brincadeira acontece mediante um acordo prévio de uma pessoa interessada e o dono do reisado – o contrato. Trata-se de um compromisso firmado por meio da palavra onde uma pessoa, geralmente do sexo masculino, compromete-se em receber a trupe de brincantes do reisado em sua casa. Este compromisso, como descreveremos no decorrer das próximas páginas, gera obrigações de ambas as partes que serão cumpridas mediante os julgamentos pessoais sobre o que é o dever de cada um. Certamente que esses juízos pessoais se pautam muito pelos juízos morais dominantes naquela comunidade.

Como explica o ex-brincante Chicó, os contratos aconteciam do seguinte modo:

(eles contratavam vocês em que época? Assim, antes já vinham com antecedência pra marcar o dia? Como é que era?) Vinha. Eles marcavam uns dias antes do reisado, nera? Quando a gente saía daqui, já sabia pra onde é que ia,

nera? Pra casa de fulano, de sicrano, de seu fulano. Já ia sabendo as casas tudim. (CHICÓ. 2009)

Esse procedimento sofreu algumas mudanças. Na atualidade, Raimundo Milú que procura os amigos, parentes e compadres para oferecer a brincadeira: já não é comum os chefes de família tomarem a iniciativa de “contratar” a brincadeira. Para tanto, Milú apoia-se na sua rede de amizades, na sua representatividade social, no seu caráter de “homem público” e numa espécie de apelo da continuidade da tradição do reisado para sensibilizar as famílias e firmar os contratos. Por essa razão, observei a realização de somente uma brincadeira por noite: “até quatro casa ainda chegou época de brincar. Hoje, arruma uma na marra, como se diz” (brincante Antônio João, 2010). Diferentemente dos velhos tempos, já não há tantos contratos: poucos são os que desejam a vadiação do reisado em seus terreiros.

Os contratos implicam, por parte dos brincantes, realizar a brincadeira de Reis no dia marcado na casa do capitão. Por parte deste último, cabe-lhe convidar a sua comunidade para vir receber os brincantes em sua casa. Também é obrigação do capitão alimentar a comitiva que acompanha os brincantes; alguns oferecem-lhe janta, outros, apenas um lanche. Ao término da brincadeira, é dever do dono da casa “pagar” a brincadeira. Este pagamento pode ser feito por meio de legumes (arroz, feijão, milho), farinha, animais (bode, porco, capão) ou também em dinheiro; a diversidade e quantidade dependerão das posses, da generosidade do capitão e da capacidade persuasiva dos caretas. O dono do reisado, por sua vez, vê-se obrigado a receber o capitão, sua família e convidados, no último dia de folia em sua casa – dia de santo Reis. Também no quintal da casa do dono do reisado, os capitães, suas famílias, brincantes e amantes da brincadeira reúnem-se todos para brincar, conversar, assistir e participar da matança do boi. Como obedecendo a uma “moral das dádivas” (MAUSS, 2003, p. 203), todos se colocam moralmente comprometidos com um sistema de prestações sociais a partir do acordo firmado pelo contrato entre dono do reisado e “capitão”.

Quando questionados sobre as possíveis razões por esse desinteresse, os brincantes apontam a existência de novos “movimentos” nas comunidades (festas e bingos em bares, clubes ou churrascarias) que competem com o tradicional sistema de prestações sociais; na atualidade, o divertimento vivido nos “movimentos” novos pode ser individual ou restrito ao núcleo familiar ou grupo de amigos. Também alegam que as novas gerações já não demonstram tanto interesse pela continuidade da brincadeira e pelos extensos e complexos laços sociais revividos pela folia de Reis. Outra razão elencada por eles são a televisão e as novas visões de mundo propagadas por esse meio de comunicação que contribuem para a construção de novas ideias e conceitos sobre o mundo e também sobre a velha brincadeira do

reisado. A oposição entre o “velho” e o “novo” perpassa intimamente o dinamismo da tradição do reisado do Cipó: interesse/desinteresse, resistência/alterações, memória/esquecimento, tradição/mudança, comunidade/juventude etc. Ao descrever a comunidade Cipó de Baixo, ressaltamos a oposição entre o novo e o antigo nos costumes e visões de mundo. Neste e no próximo capítulo, analisamos, repetidas vezes, os movimentos dessas oposições; elas são os combustíveis da dinâmica cultural do reisado.

Neste sentido, faz-se importante refletir que esse dinamismo diz respeito a todo um processo de transformação das sociedades modernas onde memória e tradições são postas em xeque. Em outras palavras, as mudanças do reisado do Cipó não são inerentes àquela comunidade. Práticas culturais tradicionais e as memórias de grupos, comunidades e sociedades transformam-se continuamente na modernidade. A pesquisadora Myrian Sepúlveda dos Santos pontua:

A perda da memória aparece (...) tanto na arte e literatura, quanto nas Ciências Sociais, como sendo uma das grandes ameaças do mundo moderno. Podemos dizer que a memória enquanto aprendizado se perde no mundo da informação. A partir da substituição do artesão pelo operário de fábrica, o trabalho se reduz a atos mecânicos e repetitivos sem que seja necessário para o desenvolvimento das atividades previstas o aprendizado acumulado durante a vida. O tempo se desvincula de experiências de vida, torna-se autônomo, regulado, impessoal e passa a exercer controle sobre os passos de cada um. O fim da tradição oral e o surgimento da escrita também apontam a perda de transmissão de conhecimento e valores entre gerações. A memória, que é transmitida por textos, objetos, pedras, edifícios e máquinas, embora dê a impressão de preservar o passado em sua totalidade, reproduz apenas parte do que foi vivenciado anteriormente. (2003, p. 19)

Em sociedades onde a informação toma um relevo singular acompanhada do acelerado desenvolvimento de tecnologias que automatiza muitas das tarefas anteriormente manuais, os processos de memória oral perdem condições de reprodução frente a um tempo “autônomo, regulado, impessoal”. Desse modo, o aprendizado e a consequente reprodução de antigas tradições (como o reisado do Cipó) sofrem com a expansão da modernidade. Multiplicação de informações diversificadas, aparecimento e consolidação de outros padrões de entretenimento e lazer, valores e costumes novos, expansão da educação formal, eletrificação, estradas e tantas outras políticas públicas, proliferação dos meios de comunicação, enfim, todo um mundo novo se expande e se consolida. A modernidade apresenta outros tantos caminhos possíveis para o universo das relações sociais cotidianas.

Deste modo, fazer um “contrato” com os brincantes do reisado é um modo de reafirmar os compromissos sociais que unem as pessoas de uma comunidade e uma maneira

de resistir às pressões modernas. A festa do reisado é oferecida pelo “capitão” a seus parentes, compadres e vizinhos. É uma oportunidade de reunir as pessoas com as quais mantém algum grau de solidariedade social. A brincadeira não é para o “capitão”: pelo contrário, ela está a serviço do universo de relações sociais vividas nas comunidades45. Nas palavras de Bitter, “... homens, mulheres, crianças, jovens e idosos se envolvem intensamente em amplas teias de reciprocidades sociais” (2010, p. 9). Assim, se ainda há brincadeira de Reis na comunidade Cipó e circunvizinhas deve-se ao fato de ainda haver “teias de reciprocidades sociais” entre os seus moradores: a festa é feita, pois ainda há laços sociais que aproximam os habitantes da mesma comunidade. Por essa razão, os contratos atualmente acontecem mais entre seu Raimundo Milú e parentes, amigos ou compadres: atores sociais que compreendem a importância da manutenção dessas teias de reciprocidade social (amizade, parentesco, favores sociais, memórias, vida comunitária, valores e crenças comuns etc.). Dificilmente aparece um convite alheio a esse círculo mais próximo de convivência46. Diferentemente, no pretérito, o grupo de contratantes do reisado extrapolava o círculo de relações do dono do reisado, pois aquele desejava festejar com suas comunidades – os círculos de reciprocidade eram independentes e organizavam-se sem depender da mediação do dono do reisado e de sua família. Na atualidade, a brincadeira vem se restringindo ao campo de relações de amizade, parentesco e compadrio de Milú e sua família.

O próprio desprendimento do tempo das experiências sociais cotidianas das comunidades rurais transforma a realidade em algo alheio ao exercício diário e às atividades apreendidas comunitariamente. Por essa razão, os homens e mulheres da zona rural de Pedro II se afastam paulatinamente de suas antigas festividades e brincadeiras comunitárias. Nessas relações entre as comunidades e a sociedade moderna observa-se o enfraquecimento47 de tradições como o reisado, leilões e novenas. Coincidentemente, o período do reisado coincide com o tempo das férias de homens e mulheres que migraram para São Paulo e outros grandes

45 Em relatos obtidos durante a pesquisa, verificamos que alguns poucos capitães tomam a brincadeira também como modo de demonstrar seu status e poder econômico e social nas comunidades: como sujeitos de status social privilegiado necessita constantemente reafirmar socialmente sua condição diferenciada. O reisado também serve para mediar as trocas sociais sustentadas em status sociais distintos. Como explica Marcel Mauss, ao estudar o sistema de trocas de tribos do noroeste norte-americano – o potlatch –, o sistema de trocas sociais entre as tribos apresenta dois elementos essenciais: “o da honra, do prestígio, do mana que a riqueza confere, e o da obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob pena de perder esse mana, essa autoridade, esse talismã e essa fonte de riqueza que é a própria autoridade” (2003, p. 195). O sistema de status carece dessa dramatização social.

46 Por outro lado, diferentemente dos velhos tempos, já há alguns anos vem aparecendo convites para apresentações do reisado em escolas e, mais recentemente, em clubes ou bares. No capítulo seguinte tratamos com mais pormenor sobre essa inovação do reisado do Cipó.

47 A temática da crise do reisado do Cipó será recorrente neste e, principalmente, no próximo capítulo onde nos debruçamos mais sobre o processo de transformações da tradição.

centros urbanos. Nas suas bagagens trazem também novas expectativas, costumes novos, carteiras e bolsas “cheias”, maneiras diferentes de encarar a vida. Não é à toa que nesse tempo de férias multiplicam-se as festas em pequenos clubes fechados movidas a bandas de forró e cerveja. A juventude migrante da zona rural de Pedro II traz novas necessidades e anseios e compartilha com os demais jovens que ainda não emigraram. A velha brincadeira do reisado não parece ser uma de suas maiores expectativas para a juventude: como firmar contratos com uma brincadeira que não reflete mais de modo unânime os anseios de todos?

Por outro lado, a multiplicação das escolas na zona rural, bem como o crescimento do número de crianças matriculadas nas séries iniciais do ensino fundamental revela que formas outras de transmissão de conhecimentos e saberes novos passam a circular entre aquelas pessoas. A escola não sabe dialogar com esse cabedal de tradições e memórias dos moradores do campo. Pelo contrário, procura reproduzir saberes e sistemas taxionômicos modernos alheios aos conhecimentos locais e saberes tradicionais. Em outras palavras, a escola transforma o diversificado lastro cultural das comunidades rurais em experiências de folclore, contribui para apagar a memória desses atores sociais e minimiza os sentidos morais das redes de solidariedade social tradicional das quais fazem parte.

Assim, a redução de “contratos” do reisado dialoga com essas tantas outras transformações que Santos aponta como animadoras da “perda da memória” ou “amnésia coletiva” (2003, p. 19). Por que “contratar” uma brincadeira que reforça os tradicionais vínculos os quais muitos jovens rejeitam quando partem para os grandes centros urbanos? Por que desperdiçar “dinheiro” com uma festa aberta a todos da comunidade? Por que ouvir velhas “lodaças” se há uma profusão de novas tecnologias que apresentam piadas e histórias hilárias inéditas como programas de tv, dvds e cds de piadas, filmes de comédias etc.? Por que insistir contratando a antiga brincadeira se é possível fazer uma festa ou churrasco para os amigos e familiares mais íntimos? O velho “contrato” contradiz os novos tempos à medida que sustenta tradicionais laços de sociabilidade social.

A leitura que fazemos do reisado do Cipó procura situá-lo nesse mundo em movimento representado pelas transformações que as sociedades modernas vêm passando: o “contrato” ou compromisso entre o capitão e o dono do reisado passa a contradizer com as transformações protagonizadas pela juventude e novas gerações do campo.