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A “carta náutica” do cipoal da prática cultural reisado do Cipó chega ao fim, mais como uma coletânea de referências do que propriamente um quadro definitivo de coordenadas. Nosso esforço, por certo, foi pintar algumas formas, cores, texturas e espessuras desse emaranhado de cipós para provocar novos olhares sobre o mar infindo da cultura. É assim que lemos este trabalho após tantas escritas e reescritas.

Por essa razão, um primeiro aspecto que desejamos ressaltar nestas últimas palavras é o caráter processual e artesanal da pesquisa. Vivemos nestes últimos quatro anos uma longa caminhada de reinvenções, dúvidas, descobertas, angústias, encantamentos e explorações de novos trajetos de vida: desde o projeto inicial da pesquisa, os teóricos e conceitos refletidos no transcorrer das disciplinas e grupo de pesquisa, passando pelas leituras individuais e provocações do orientador aos momentos solitários de análise dos “dados” e construção das interpretações. Este processo vivo, crítico, sistemático e criativo faz-nos corroborar a certeza de que os saberes são construções contínuas, desestabilizadoras e superadoras.

Por outro lado, o aspecto processual da pesquisa não se restringe ao conhecimento enquanto coisa. Uma investigação acadêmica não é tão somente uma ação cognitiva: trata-se de um complexo processo de vivências e descobertas onde o sujeito pesquisador perquire bem mais do que os registros de seus relatórios. Paralelamente aos desafios que todo pesquisador enfrenta no transcorrer de seu doutoramento, exploramos experiências, sonhos, dúvidas, angústias que dialogam estreitamente com o percurso da pesquisa. Um “momento decisivo” (GIDDENS, 2002), repleto de descobertas e reinvenções pessoais e cognitivas. Mais do que a produção de uma tese acadêmica, vivemos nesse período um forte processo de diálogo interior e aprendizagem que contribuiu para uma transformação da totalidade do que estamos sendo. Essa experiência fez-nos constatar que alguns processos de “qualificação” são mais do que simplesmente uma formação especializada: reunem no decorrer do tempo, além de experiências de conhecimento e autoformação, oportunidades e acidentes singulares que oportunizam significativas transformações incapazes de serem avaliadas objetivamente. Pensamos que essa passagem pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN reuniu muitas possibilidades para outras passagens pela vida. O que nos faz ver que, mais que um processo de formação intelectual/profissional, vivemos uma caminhada

existencial singular. Trajetória esta repleta de perplexidades, com entrâncias e labirintos, com ternuras e sofreguidão.

Mediante essas palavras iniciais, partimos para o cerne deste trabalho: o caráter processual dos fenômenos culturais. Nosso trabalho avaliou, a partir de um estudo de caso do reisado do Cipó, como se comporta uma tradição cultural e seus atores envolvidos: passeamos pelas relações sociais vividas pelos atores do reisado, caracterizamos a brincadeira de Reis e perquirimos sobre que transformações e permanências aqueles atores sociais e a prática cultural do reisado vêm passando. Nosso exercício reflexivo buscou apreender, ao mesmo tempo, o caráter sincrônico e diacrônico do fenômeno cultural reisado do Cipó.

Ano após ano, a brincadeira de Reis, como um sistema de redes sociais que vai bem mais longe do que as fronteiras da comunidade Cipó de Baixo, vem interagindo com fatos novos que passam a fazer parte daquele sistema de redes sociais. O elemento mais emblemático dessa mediação é a redução do número de casas por onde os brincantes circulam, logo, uma limitação das redes sociais em movimento. Alguns dos laços sociais que impulsionavam as rodas de brincadeira do reisado estão fragilizando-se ou extinguindo enquanto outros resistem apesar de todas as pressões externas. Velhos capitães faleceram e seus filhos não demonstram interesse pelo movimento; compadres e parentes de seu Raimundo Milú compartilham de novas expectativas e relações com seus demais parentes e vizinhos; os jovens não se interessam em aprender como brincar; velhos brincantes vão abandonando o movimento pela idade avançada ou por novos interesses. Por outro lado, por onde o reisado passa aglutina um número grande de apaixonados e curiosos, o público que participa do auto vive fortemente o jogo proposto de troças e brincadeiras, o quintal de seu Raimundo Milú no dia de santo Reis ainda reúne inúmeras pessoas que se fazem presentes para prestigiar a festa do amigo, rever parentes e amigos, divertir-se e participar da morte do boi. Na mesma direção, a memória social de seus participantes e apaixonados pela brincadeira apresenta-se como um sistema vivo que registra fatos, paixões, anedotas que ainda motivam- nos e seus familiares para realizar o reisado.

São estes movimentos que transitam entre a permanência e a transformação, a circularidade e as novidades que alimentam um determinado sistema de identidade cultural. Os conflitos de identidade nas comunidades rurais do interior pedrossegundense são marcados pela relação entre o novo e o antigo. A brincadeira do reisado faz parte do mundo antigo assim como as redes sociais de solidariedade (família, compadrio e amizade), a vida religiosa dos festejos, leilões e novenas, as memórias de vida daquelas pessoas, os trajes, o transporte a pé, animal ou bicicleta etc.; o novo reproduz-se na monetarização das relações, o transporte de

motocicleta e carro, a extensão da escolaridade, mudanças nos trajes e modos de entretenimento, a presença da tv, a individualidade, expansão das políticas públicas (assentamentos rurais, eletrificação, projetos de geração de renda, bolsa-família, distribuição de água encanada etc.). O novo é protagonizado pelas pressões da modernidade que, paulatinamente, passam a fazer parte do cotidiano das comunidades rurais piauienses.

Novos modos de viver no campo são construídos à medida que antigas práticas perseveram no mesmo espaço social: é nesse mar de mediações sociais que o reisado do Cipó navega entre o novo e o antigo num modo de resistência e reinvenção cultural capaz de manter antigas formas e incorporar novos modos de fazer o seu brincar.

Referimo-nos a mediações entre o novo e o antigo pois não se trata de uma polaridade estanque entre dois modos de sociabilidade. No mundo social não comprendemos que existam dimensões estritamente bipolares: há sempre trocas, interações, mediações. Como em nossa pesquisa sobre juventude da comunidade rural Lagoa do Sucuruju (SOUSA, 2011), muitos dos jovens recusam antigos costumes e condições sociais do campo, principalmente o trabalho árduo, extenuante e pouco rentável, contudo, amam a família, o aconchego comunitário e as lembranças de suas vidas. A vida social é um cadinho de interações e movimentos.

Assim, compreendemos a cultura como fenômeno social e dinâmico. Os dramas culturais vividos por aqueles brincantes do reisado bem como por aqueles que se colocam como platéia e “contratantes” da brincadeira levam a crer que as formas de existência cultural são densas, tensas e dinâmicas. Aquilo que se imaginava como uma vivência cultural uniforme, integradora e territorialmente delimitada não é mais defensável.

Como se comportam os atores e comunidades diante das novidades que chegam ao Cipó de Baixo e encontram um cabedal de tradições, memórias e costumes consolidados? Assim podemos sintetizar a inquietação mestra deste trabalho. Os brincantes de Reis e os apaixonados pelo “movimento” navegam num cipoal de relações, mudanças e permanências. A pesquisa, ao buscar respostas para aquele questionamento, percorreu alguns cipós sociais de suas vidas: tradição e memória, juventude e sociabilidade, a vivência do reisado, e, a modernidade como padrão social que interfere na vida social do Cipó e demais comunidades.

Este último capítulo aparece para reafirmar as provocações expostas em todo o trasncorrer do trabalho: não trazemos respostas definitivas (nem acreditamos que é função das ciências humanas). Tecemos provocações e reflexões baseadas em observação e pensamento sistemáticos. É no escopo deste esforço cognitivo que situamos esta pesquisa sobre tradição e dinamismo cultural.