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2. A jurisprudência

2.15. A cirurgia geral

Num caso que remonta à década de noventa do século passado, um médico aconselhara determinado doente a submeter-se a uma intervenção cirúrgica para a colocação de uma rede. A operação foi efetuada, mas o clínico acabou por não colocar a rede, pois considerou, no próprio ato de intervenção cirúrgica, que tal seria inútil. Posteriormente, o estado de saúde do doente piorou e o mesmo foi informado de que deveria ter de passar a usar uma funda (cinta medicinal).

O médico provou que não se justificava a colocação da rede, a qual constituía um corpo estranho ao organismo do doente, criando um risco acrescido de infeção, desaconselhado pela própria história clínica daquele paciente, e só no decurso da operação, perante o facto de os bordos da ferida terem unido sem tensão e os tecidos se encontrarem em boas condições, abdicou efetivamente de colocar a rede.

Por isso, o Tribunal da Relação de Lisboa concluiu que a atuação do médico não merecia censura, pois a não colocação da rede era uma das opções que podiam ser seguidas e ficou assente que a decisão final só era suscetível de ter sido tomada durante a intervenção cirúrgica. A circunstância de o doente não ter apresentado melhoras não provava, sem mais, um mau tratamento. Resumidamente, “se um médico atuou segundo a normalidade da prática clínica, a circunstância de os resultados dessa atuação terem sido nocivos para o paciente não determina a existência de um erro que configure um caso de negligência médica”307

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Noutro exemplo, decidido pelo Ac. RLx 2-Mar.-2006 (GIL ROQUE) (Proc. nº 653/2005-6), a doente fora inicialmente submetida aos seguintes atos cirúrgicos: artrodese do punho esquerdo, neurólise do nervo mediano e remoção de enxerto cortico- esponjoso do ilíaco esquerdo, para enxerto no punho esquerdo. Sofreu dores intensas até a uma segunda operação. As referidas dores resultaram da compressão de um nervo sobre o fragmento ósseo não consolidado e tal é possível de suceder quando se realizam enxertos ósseos de grande dimensão, como foi o caso. O Tribunal concluiu, por isso, que o médico que realizara as primeiras intervenções não havia praticado nenhum facto ilícito, antes tendo agido segundo as legis artis existentes à data da intervenção cirúrgica.

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Diferentemente, o STJ, em sede recurso, concluiu assim: (i) “Tendo a Autora sido submetida, em 14-07-1998, no Hospital do Réu (SAMS), a uma operação de transplante do osso, em resultado da qual sofreu compressão do nervo por um fragmento ósseo não consolidado, o que lhe causou dores, situação de que a Autora se queixou, em consulta médica realizada no mesmo Hospital, em Janeiro de 2000, mas que apenas foi diagnosticada e resolvida por outro médico do mesmo Hospital, com a sujeição a nova operação, em Agosto de 2000, é de concluir que deve ser indemnizada pelas dores que sofreu no período compreendido entre Janeiro e Agosto de 2000 pela falta de atempado diagnóstico e resolução do problema, o qual era resultado normal de uma operação como aquela a que tinha sido submetida em 1998”; (ii) “Com efeito, era exigível ao médico que a operou inicialmente e consultou em Janeiro de 2000 ter ligado as dores de que a Autora se queixava à primeira operação e cuidado de confirmar o diagnóstico por ressonância magnética, como veio a fazer, mais tarde, outro médico, que lhe reenviou a doente para operar, o que aquele não fez, remetendo-a para outro médico que, por sua vez, requisitou os TACs determinantes da operação de Agosto de 2000”; (iii) “Aquele primeiro médico podia e devia ter agido de modo a confirmar o previsível diagnóstico e operado a Autora em devido tempo, poupando-a a meses de dores. A culpa do médico da Ré, estende-se a esta, nos termos do art. 800.º, n.º 1, do CC, e foi causa adequada dos padecimentos da Autora, danos não patrimoniais suficientemente graves para merecerem a tutela do direito (art. 496.º do CC), mostrando-se, pois, verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar (art. 483.º do CC)”308.

Uma referência também ao Ac. RLx 29-Junho-2006 (EZAGUY MARTINS) (Proc. nº 2270/2006-2): na origem, esteve um acidente de trabalho (traumatismo na virilha). O lesado demandou a seguradora para a qual a sua entidade patronal havia transferido a responsabilidade civil por acidentes de trabalho e dois médicos dos serviços da referida seguradora, que o operaram para remover massa inguinal. Os referidos médicos garantiram, após a intervenção, que a massa inguinal drenada não provinha de qualquer perfuração ileal, tendo igualmente assegurado aos pais do doente a

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Ac. STJ 20-Jun.-2006 (AFONSO CORREIA) (Revista nº 1641/06), cujo sumário se encontra em A

responsabilidade civil por ato médico na jurisprudência das Seções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça - Sumários de Acórdãos de 1996 a Julho de 2014.

inexistência de tumor. Posteriormente, já depois de lhe haver sido dada alta, o paciente sentiu fortes dores, começou a não reter comida e a perder peso. Constatou-se, então, a presença de massa inguinal no preciso local onde deveria ter sido retirada na intervenção cirúrgica. Perante o agravamento do estado de saúde do doente, o mesmo voltou a ser operado, já num quadro de peritonite generalizada e perfuração do ileon terminal, com hemicolectomia (colectomia de metade ou de parte do cólon) direita, ablação parcial do intestino e anastomose ileon terminal - cólon transverso. A seguradora assumiu a responsabilidade por esta segunda operação, que os seus médicos entenderam como absolutamente necessária, dada a deficiente execução da primeira, em resultado do incorreto e incompleto diagnóstico, pois não havia sido detetada a perfuração ileal. No entanto, sobrevieram ao paciente dores intensas na perna direita, que obrigaram a uma nova intervenção, realizada num hospital público. Mesmo assim, as referidas dores persistiram. Finalmente, foi-lhe diagnosticada oclusão da artéria ilíaca externa direita, com necessidade de revascularização do membro inferior direito por

bypass femural com prótese. Tudo acabou numa incapacidade parcial permanente de

51%. Não obstante o cerne do caso residir na divergência de entendimento, entre as partes, quanto à existência de nexo de causalidade entre o primeiro diagnóstico errado e o resultado final, o Acórdão também analisou a natureza da responsabilidade dos médicos que prestaram assistência no âmbito de uma prestação de serviços contratada com uma seguradora, concluindo ser a mesma extracontratual (logo com o ónus da prova da culpa a cargo do lesado) e, para o que aqui interessa, entendeu que não se tinha verificado qualquer comportamento culposo ou ilícito por parte dos clínicos (“foram sempre pedidas as análises e exames necessários, recorrendo-se à intervenção cirúrgica de acordo com o diagnóstico que tais meios auxiliares permitiam”).

Em 2012, o Ac. RGm 27-Set.-2012 (RITA ROMEIRA) (Proc. nº 330/09.6TBPTL.G1) tratou de um caso de responsabilidade médica, embora mais diretamente ligado à falta de nexo de causalidade: o doente, por força de dores lombares, consultou um neurocirurgião. Foi-lhe, pelo mesmo, diagnosticada uma lombalgia aguda, com bloqueio dos movimentos de flexão e extensão. Posteriormente, o médico efetuou uma infiltração nas costas do paciente. O referido Tribunal considerou que a ilicitude e a culpa no ato médico danoso eram conceitos diferentes. O primeiro indicava o que tinha havido de errado na atuação do médico e o segundo se esse erro

devia ser-lhe assacado a título de negligência. Seguidamente, a Relação de Guimarães decidiu: ”Provando-se que o réu fez uma infiltração nas costas do autor, com observância do protocolo exigido, após ter feito o diagnóstico e explicados os benefícios e riscos da mesma em comparação com outras vias de tratamento, tendo o autor consentido na sua realização, apesar de se provar, também, que dois dias depois, por apresentar cefaleias o autor deu entrada no Centro de Saúde de Paredes de Coura e, face ao agravamento do seu estado clínico, deu entrada no Centro Hospitalar do Alto Minho, onde lhe foi diagnosticada meningite por serratia, isso é manifestamente insuficiente para concluir que esta grave doença decorreu da atuação do réu sobre o autor”.

Seguidamente, temos o Ac. STJ 15-Mai.-2013 (SALAZAR CASANOVA) (Proc. nº 6297/06.5TVLSB.L1.S1): a doente foi sujeita a uma intervenção laparoscópica à vesícula biliar, a qual podia também ter sido feita pela via aberta. Existia efetivamente a possibilidade da laparotomia, cirurgia por via tradicional, embora a intervenção realizada fosse adequada ao quadro clínico e, na excisão da litíase vesicular, o método preferencialmente usado seja o laparoscópico. A via laparoscópica exige especiais cuidados e uma particular experiência e destreza, pois o médico “está limitado, no seu raio de ação, a agir por via da manipulação dos instrumentos cirúrgicos a partir de imagens monitorizadas que lhe são transmitidas num ecrã e que circunscreve o campo de visão à área reduzida da intervenção cirúrgica”. Durante a intervenção, o cirurgião perfurou o canal biliar da doente, causando uma interrupção da via biliar principal e uma lesão a montante do canal hepático. Essa lesão não foi detetada no decurso da operação e, se o tivesse sido, teria levado a uma reconversão imediata em laparotomia. A doente, como consequência da lesão, sofreu dores intensas, mas não foram realizados quaisquer exames complementares de diagnóstico, não obstante as suas queixas. Também não foi colocado qualquer dreno. Só numa segunda intervenção cirúrgica, motivada pelo agravamento do quadro clínico, o médico evacuou o biloma e detetou a peritonite biliar. Mais tarde, a paciente foi submetida a uma cirurgia reconstitutiva, destinada a solucionar a estenose (estreitamento, obstrução) da via biliar, decorrente das intervenções anteriores. A perfuração do canal biliar não foi considerada um risco normal da intervenção, mas sim um risco excecional. Por outro lado, “considerando que o erro constitui um risco inerente a uma atividade humana como é a intervenção cirúrgica mas também porque a responsabilidade em causa não é uma responsabilidade

objetiva”), o STJ entendeu que era necessário ponderar todo o processo, não apenas o ato operatório (“fases pré e pós operatória visto que a atuação do médico cirurgião não se subsume a um ato isolado, mas a uma cadeia ou complexo de atos”). No caso, segundo o Acórdão, nem era preciso recorrer à presunção legal de culpa, pois, para além da demonstração do ato danoso, a doente provara factos integrativos da culpa do médico. Com efeito: a intervenção havia sido demasiado longa, fora do normal para aquele tipo de cirurgia; apesar das dificuldades verificadas, o cirurgião não a converteu numa laparotomia, o que teria permitido a sutura e o tamponamento adequado da perfuração ocorrida; e, por último, perante as intensas dores da doente, na zona intervencionada, logo que cessaram os efeitos da anestesia, o médico não determinou nenhum exame complementar de diagnóstico, a fim de detetar a existência de algum problema, antes concedeu alta à sua doente. Foram arbitrados, com base na equidade, cem mil euros, por danos morais.

Já em 2014, a Relação de Coimbra foi chamada a decidir um caso de responsabilidade civil médica, por alegada violação das “legis artis”, que teve na sua origem uma intervenção cirúrgica lombar, realizada por um neurocirurgião, concretamente uma extirpação de hérnia, a que se seguiu, devido a uma fibrose pós- operatória, uma nova intervenção. Concluiu que o referido neurocirurgião era “um profissional competente, agiu com as melhores técnicas do estado da arte, segundo o protocolo médico, consensualmente aceite”. Não houve erro médico e as dores que o paciente continuou a sentir podiam “ter como causa as lesões degenerativas da coluna lombar que o Autor já apresentava anteriormente, para além de haver sofrido uma queda na garagem (após a primeira intervenção) que constitui causa suficiente de agravamento de sintomas dolorosos relativos às lesões degenerativas”. Este Acórdão será retomado em sede de responsabilidade pela informação, pois foi esse o outro fundamento em que assentou a ação e, sobretudo, aquele que acabou por ser problematizado no recurso309.

Síntese conclusiva: (i) a questão do tratamento fútil; (ii) o problema da liberdade de decisão clínica; (iii) a importância dos meios auxiliares de diagnóstico; (iv) o risco

309 Cfr. Ac. RCb 11-Nov.-2014 (JORGE ARCANJO) (Proc. nº 308/09.0TBCBR.C1). O caso foi

definitivamente decidido pelo Ac. STJ 16-Jun.-2015 (MÁRIO MENDES) (Proc. nº 308/09.0TBCBR.C1.S1), referenciado no Anexo C. O STJ negou a revista.

normal de uma intervenção. Eis algumas das questões abordadas pela casuística da cirurgia geral.