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1. A doutrina

1.2. A doutrina médica

1.2.1.4. O risco e a incerteza

Vai-se seguidamente dar nota individualizada das posições de quem mais se tem, entre nós, debruçado sobre os problemas do risco e da incerteza na decisão médica: VAZ CARNEIRO e JOSÉ FRAGATA.

1.2.1.4.1. Vaz Carneiro

“Há 50 anos, a prática clínica era considerada eficaz, simples e relativamente segura. Afinal, tudo o que o médico precisava de saber cabia dentro de uma maleta … Não havia dúvidas sobre o que os médicos tinham de fazer e como o deviam fazer e os doentes pouco contribuíam para os seus cuidados. Mas os tempos mudaram e, com o

261

Cfr. FRAGATA/MARTINS, ob. e loc. cits., 61.

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desenvolvimento exponencial da medicina, a prática clínica começou a complicar-se: o que dantes era claro passou a ser mais difícil de ver”263.

Depois de ter referenciado a complexidade da prática clínica, na atualidade, VAZ CARNEIRO abordou a matéria do risco. Segundo afirmou, a decisão clínica era marcada por um risco elevado, o qual definiu como “a probabilidade que o acaso cause um qualquer dano ao doente”. Um dos principais problemas era saber como comunicar esse risco ao doente264.

Por outro lado, o conceito de risco surgia ligado à noção de incerteza, que também marcava a decisão clínica. As estimativas de risco, na medida em que constituíam expressões de incerteza, melhoravam com o aumento do conhecimento. Quando se sumarizava um risco, a sua estimativa não era uma quantidade definida, mas sim um conjunto de noções probabilísticas de que algo pudesse acontecer (“podemos por exemplo afirmar que o risco de morte por cancro durante a nossa vida é de 15%. Com isto, estamos a dizer que cerca de 15% de todas as pessoas vêm simultaneamente a ter um cancro e a morrer devido a ele (está claro que nem toda a gente que tem cancro morre dele)”. Em relação aos contextos de incerteza clínica, os mesmos eram globais e estendiam-se a todos os contextos da prática clínica: definição da doença, processo de diagnóstico, seleção de tratamento e até correta interpretação das preferências dos doentes265.

1.2.1.4.2. José Fragata

Para JOSÉ FRAGATA, o risco correspondia à “probabilidade da ocorrência de um qualquer evento adverso”. Por evento adverso, o A. entendia qualquer ocorrência

263 Cfr. VAZ CARNEIRO, A complexidade da prática clínica: análise baseada no risco e na incerteza,

BOA, nº 29, Novembro/Dezembro 2003, 57-60, 57. Sobre a incerteza e a importância da sua redução, ANA CRISTINA DE BRITO ALMEIDA SAMPAIO CRUZ, Revisões sistemáticas: um instrumento de

redução da incerteza nas decisões em terapêutica. Sumário da lição de síntese elaborada para provas de habilitação ao título de Professor Agregado da Faculdade de Medicina de Lisboa, 2003.

264 Cfr. VAZ CARNEIRO, A complexidade …, loc. cit., 58. 265

negativa surgida para além da vontade e como consequência do tratamento, não da doença que lhe deu origem, causando algum tipo de dano266.

A possibilidade de ocorrência de um incidente (“num acidente o resultado final ficará comprometido, enquanto num incidente haverá demoras, alterações ou recurso a alternativas, mas sem que se comprometa o resultado final do tratamento planeado”) ou acidente resultava da complexidade da doença e/ou do tratamento inerente, da atuação dos intervenientes (operadores e organização) e, provavelmente, também do acaso. Por exemplo, operar doentes idosos, com diversas co-morbilidades associadas, apresentava um risco maior, mesmo para intervenções simples, do que operar adultos jovens e, de resto, saudáveis. Os resultados deviam, assim, ser sempre associados ao risco. Disso se ocupava a definição de performance267.

Segundo o A., eram múltiplas as determinantes do risco: “por um lado, a complexidade dos casos tratados e o tipo de intervenção terapêutica - variáveis intrínsecas -, e, por outro, a performance mais ou menos adequada de quem trata - variável condicionante. Para um dado desempenho ou performance contribuem “fatores humanos”, “fatores da equipa”, “fatores técnicos”, “fatores organizacionais” e “fatores de acaso”, a chamada complexa variação espontânea”268.

Por último, a estratificação de risco em medicina consistia na ordenação dos doentes de acordo com a gravidade da respetiva doença principal e das doenças associadas. O objetivo era conseguir prever um resultado na sequência de uma determinada intervenção para o tratamento de uma doença existente. As estratificações de risco em uso, de acordo com JOSÉ FRAGATA, assumiam como únicos determinantes de resultado o risco intrínseco à doença existente (natureza e estado clínico), o risco denominado de incremental, que era devido às co-morbilidades associadas e, em menor percentagem, à natureza do procedimento médico ou cirúrgico.

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Cfr. FRAGATA, Risco clínico, in, do A., Risco clínico. Complexidade e performance, cit., 39-78, 41. Sobre o registo de incidentes e eventos adversos: entre nós, PAULA BRUNO, Registo de incidentes e

eventos adversos: implicações jurídicas da implementação em Portugal. Erro em medicina, Coimbra:

Coimbra Editora, 2010; na doutrina alemã, NOËLLY ZINK, Medizinische Fehlermeldesysteme.

Einführungspflicht, haftungsrechtliche Konsequenzen und Vorschläge zur gesetzlichen Regelung, Baden-

Baden: Nomos, 2010.

267 Cfr. FRAGATA, Risco clínico, loc. cit., 39.

268 Cfr. FRAGATA, Determinantes da performance, in, do A., Risco clínico. Complexidade e

Ficavam normalmente de fora aspetos fundamentais como a dificuldade técnica devida, por exemplo, à variação anatómica, à performance do operador ou do hospital, assim como fatores complexos de interação incerta e, mesmo, o acaso269.

Síntese conclusiva: (i) o sublinhar das especificidades da atividade médica e, por essa via, da existência de uma responsabilidade própria e adequada à mesma, situada mais no plano moral do que jurídico, tem sido um tema recorrente na doutrina médica, incluindo nos dias de hoje, apesar de num Estado de direito ser inquestionável a possibilidade de sindicação judicial do exercício da medicina; (ii) a referida doutrina médica, entre nós, tem dado importantes contributos para a matéria da responsabilidade civil, nomeadamente através da definição e do aprofundamento de um conjunto de figuras e de conceitos; (iii) assim, por exemplo, a estruturação do ato médico em três elementos fundamentais: o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico; (iv) mas também: o erro médico, nas suas diferentes modalidades, a imperícia, os problemas do risco e da incerteza, nomeadamente o incidente e o acidente, os efeitos adversos e, ainda, a urgência médica; (v) cabe à ciência jurídica proceder ao respetivo enquadramento no arsenal das suas categorias (ex. ilicitude, culpa e risco).