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A responsabilidade civil contratual médica é um tema aliciante, que toca a vida das pessoas84, a todos interessa, mesmo para além das comunidades académica, médica e jurídica85. O assunto apresenta, ainda, entre nós, uma atualidade acrescida, atenta a

pelo princípio primun nil nocere; (iii) o médico estar na posição de garante e ter o dever de evitar ou diminuir a produção de danos à saúde do paciente. Cfr. PEREIRA, O consentimento informado na

relação médico-paciente. Estudo de direito civil, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, 438.

84 É um tema “próximo dos interesses da sociedade”, na expressão constante do preâmbulo do Dec.-Lei nº

42/2005, de 22 de Fevereiro, que aprovou os princípios reguladores de instrumentos para a criação do espaço europeu de ensino superior. Dessa forma se faz, portanto, a ligação entre a investigação académica e a melhoria da vida em sociedade. Cfr. ALEXANDRA ARAGÃO, Breves reflexões em torno da

investigação jurídica, BFDUC, vol. LXXXV, 2009, 764-793, 773. A propósito da matéria que constitui

objeto de estudo, são bem conhecidas as palavras críticas de IVAN ILLICH, falando de “uma nova epidemia que resiste à medicina”: “Infelizmente, a inutilidade dos cuidados médicos é o menor dos males que uma organização médica proliferante pode infligir à sociedade. O impacte negativo da organização médica constitui uma das epidemias mais invasoras do nosso tempo. A dor, as disfunções, a invalidez e a angústia resultantes das atuações médicas rivalizam agora com a morbilidade causada pela circulação automóvel, pelo trabalho e mesmo pelas operações militares. Apenas a malnutrição moderna, outra doença da civilização, pode causar maiores males”. Cfr. IVAN ILLICH, Limites para a medicina. A

expropriação da saúde, tradução, Lisboa: Sá da Costa, 1975, 23.

85 Têm obtido bom acolhimento as histórias e as reflexões publicadas pelos profissionais da medicina,

certamente porque res medica res homini. V., na atualidade, de JOÃO LOBO ANTUNES, para além do já citado O eco silencioso, Um modo de ser, 10ª ed., Lisboa: Gradiva, 1999, Memória de Nova Iorque e

outros ensaios, 2ª ed., Lisboa: Gradiva, 2002, Sobre a mão e outros ensaios, 2ª ed., Lisboa: Gradiva,

2005, e Inquietação interminável. Ensaios sobre ética das ciências da vida, 2ª ed., Lisboa: Gradiva, 2010. V. também: EDUARDO BARROSO, Coragem, Eduardo, 4ª ed., Lisboa: Oficina do Livro, 2000, e Sem

receita, 2ª ed., Lisboa: Oficina do Livro, 2005; J. M. RAMOS DE ALMEIDA, Do sótão das memórias,

“fuga” de médicos para o setor privado, motivada pelas restrições orçamentais que vêm fustigando a medicina pública.

Mas é também um domínio vasto e complexo, porque cada um dos pressupostos da referida responsabilidade daria, ele próprio, para uma investigação autónoma - basta pensar, por exemplo, na complexidade que, nesta sede, assumem o nexo de causalidade e o próprio conceito de dano86.

Aproveita-se para, desde já, esclarecer que quando, no presente trabalho, se refere o médico, essa menção engloba também a clínica ou o hospital privados, ou qualquer outra forma de organização privada, independentemente da natureza do vínculo que os une ao profissional, matéria que não será aqui aprofundada87. O prestador de serviços será, portanto, uma pessoa de direito privado, singular ou coletiva.

O tema é, ainda, difícil, pois não existe no nosso país um complexo jurídico de normas que dele trate especificamente88, obrigando o intérprete a aplicar regras que não foram diretamente pensadas para o setor, e também devido ao facto de a doutrina jurídica nacional ter dedicado mais atenção à responsabilidade extracontratual89.

A propósito da elaboração de uma tese, UMBERTO ECO ensina que uma descoberta científica, em ciências humanas, pode consistir num novo modo de compreender um determinado assunto, e distingue entre a tese de investigação, com

86 V., por exemplo, JÚLIO GOMES, Em torno do dano da perda de chance - algumas reflexões, in Ars

Iudicandi. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, vol. II: direito privado, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, 289-327, e VERA LÚCIA RAPOSO, Em busca da chance perdida. O

dano da perda de chance, em especial na responsabilidade médica, RMP, nº 138, Abril/Junho 2014, 9-

61. Recentemente, LUÍS MENEZES LEITÃO veio recordar que a indemnização do dano relativo à “perda de oportunidade” já tinha sido defendida, entre nós, por JAIME DE GOUVEIA. Cfr. LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das obrigações, vol. I, 15ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, 307.

87

A ideia tradicional de que o denominado contrato dividido - com a prestação, entre outros, de serviços de alojamento e refeições, pela clínica, e de serviços médicos, pelo profissional - dava lugar a uma cisão de responsabilidades já está a ser abandonada em Itália.

88 Cfr., quanto à responsabilidade dos profissionais liberais, em geral, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A

responsabilidade dos profissionais liberais, in, do A., Estudos sobre direito civil e processo civil,

Coimbra: Coimbra Editora, 2002, 819-826, 819. Sobre a tentativa de harmonização, ao nível comunitário, no início dos anos noventa do século passado, da responsabilidade civil dos prestadores de serviços - Proposta de Diretiva sobre responsabilidade do prestador de serviços -, v. os vários contributos reunidos em Haftung der Dienstleistungsberufe: natürliche Vielfalt und europäische Vereinheitlichung (Hrsg. Erwin Deutsch/Jochen Taupitz), Heidelberg: C. F. Müller, 1993.

89 A responsabilidade extracontratual tem habitualmente um tratamento mais desenvolvido nos nossos

manuais de direito das obrigações do que a responsabilidade contratual, assim como vem sendo objeto de um maior número de monografias.

maior risco, e a tese de compilação, de análise crítica de toda a literatura existente sobre o tema90. Irá aqui procurar fazer-se um pouco das duas.

Quanto à última vertente, este trabalho é, por definição, tributário daqueles que o antecederam91. Ele assenta, assim, nos contributos doutrinários e jurisprudenciais que já foram dados. Como, aliás, é habitual fazer-se em textos desta natureza, dado que quer a doutrina quer a jurisprudência, cada uma com as suas particularidades e o seu papel dentro do nosso ordenamento jurídico, estão ao serviço da aplicação e do desenvolvimento do direito.

No que se refere à parte da inovação, os referidos elementos serão depois objeto da competente apreciação crítica e, nessa altura, procurar-se-á acrescentar alguns contributos pessoais, explorando a vertente da partilha da informação.

Em termos práticos, trata-se de identificar as questões que têm surgido em sede de responsabilidade civil contratual do médico, dar uma ideia do seu significado e contribuir para a sua resolução.

No plano teórico, não se irá esquecer o devido enquadramento dogmático. Com efeito, saber se a responsabilidade civil contratual médica permite defender a existência, ou não, de uma solução específica e inovatória para a resolução dos problemas que se lhe colocam é provavelmente a principal questão a responder no âmbito da matéria em causa92.

90

Cfr. UMBERTO ECO, Como se faz uma tese em ciências humanas, tradução, 7ª ed., Lisboa: Presença, 1998.

91 Não se ignora que, num trabalho desta índole, se deve organizar a exposição por ideias e não

individualmente por autores. No entanto, mais do que confrontar opiniões doutrinárias, elencando os respetivos argumentos e, depois, tomando posição, a segunda parte do presente estudo visa, sobretudo, referenciar aquilo que entre nós já foi escrito sobre o tema da tese ou com relevância para o mesmo, pelo que acabou por se seguir a via da menção quase sempre individualizada da obra dos diferentes autores, quer no âmbito da doutrina jurídica, quer no da doutrina médica.

92

Sobre o caráter unitário, com análise dos regimes de várias profissões, e a autonomia dogmática da responsabilidade profissional, HERIBERT HIRTE, Berufshaftung, Munique: Beck, 1996. Entre nós, a propósito da autonomia do direito da saúde, a qual defendem com base em razões científicas, pragmáticas e pedagógicas, MARIA JOÃO ESTORNINHO/TIAGO MACIEIRINHA afirmam que “a responsabilidade civil por erro médico coloca desafios fundamentais aos quadros tradicionais da responsabilidade civil; o contrato de prestação de serviços médicos está longe de ser assimilável ao desenho conceptual tradicional do direito civil, assente na autonomia da vontade, na igualdade das partes e na liberdade de estipulação”. Cfr. MARIA JOÃO ESTORNINHO/TIAGO MACIEIRINHA, Direito da

Síntese conclusiva: (i) o problema foram os cada vez em maior número casos de responsabilidade civil contratual médica e a resposta que lhes é dada pelo ordenamento jurídico português; (ii) a hipótese consistiu em pensar que se trata de um domínio onde se justificam e são dogmaticamente possíveis soluções diferenciadas, nomeadamente com base na doutrina do consentimento informado, fora, portanto, dos quadros e do regime comum da responsabilidade civil contratual.