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III O CISHETEROSSEXO COMO VARIÁVEL NA RAZÃO DE ESTADO LIBERAL: O BRASIL MODERNO/COLONIAL DE 1964 A

Como Michel Foucault vai reiterar em toda a sua obra, as sexualidades historicamente foram objetos privilegiados do investimento por parte da economia das relações de poder nas sociedades modernas ocidentais. Nota o autor que, desde a captura pelas diversas discursividades até a elaboração de um dispositivo de controle de

produção de sexualidades, a delimitação, nomeação e estabilização dos sexos perpassam as práticas governamentais.

Quando questionado sobre o lugar do sexo nos regimes autoritários, Foucault responde que não se pode dizer que o exercício do poder se dava através da sexualidade. Contudo, seria possível afirmar que, nas sociedades modernas ocidentais “(...) a sexualidade é um comutador que nenhum sistema moderno de poder pode dispensar”. E continua, ao reiterar sua já conhecida perspectiva sobre o aspecto produtivo do poder, afirmando que a censura e a interdição não passam de “formas frustradas ou extremas” (FOUCAULT, 2018, p. 354) do exercício do poder, não compondo suas estruturas essenciais.

A partir do instante em que a população, com os processos de urbanização e industrialização das metrópoles, se torna alvo dos cálculos por detrás da governamentalidade, seus hábitos, sua circulação, as formas de investimento da sua energia, os vínculos sociais e políticos que se formavam passaram a ser variáveis relevantes nos cálculos organizadores da economia do poder. A necessidade de se disciplinar os corpos e fixá-los na linha de produção alinhou-se com a necessidade de se organizar os fluxos populacionais em sentidos permeáveis às novas necessidades econômicas das grandes cidades.

No caso brasileiro, como afirma Renan Quinalha, o comportamento sexual esteve presente no jogo de deslocamentos causados pela governamentalidade. Pela nova moralidade autoritária que encobria as experiências nacionais com um manto de ignorância, os corpos e as sexualidades, deveriam agir dentro dos esquemas sociais estabilizados dentre o grande plano de utopia autoritária. Sobre tal perspectiva afirma o professor: “(...) as questões comportamentais tornaram-se objeto também da razão do Estado. A sexualidade passou a ser tema de segurança nacional para os militares”. E continua, trazendo como os dispositivos disciplinares preocuparam-se também com as afetividades sociais: “Os desejos e afetos foram alvo do peso de um regime autoritário com pretensão de sanear moralmente a sociedade e criar uma nova subjetividade (QUINALHA, 2018, p. 31).

Ressalta-se que a sexualidade como variável da razão de Estado não aparece exclusivamente nesse período na história brasileira. A inclusão dos sexos no plano governamental dos Estados é histórica. Contudo, é possível perceber que durante o regime civil-militar brasileiro, de 1964 a 1985, tal categoria, conjuntamente àquelas que lhes foram associadas, foram estrategicamente mais deslocadas no jogo político a fim de

manter uma gestão assustadoramente próxima da atividade sexual. O golpe de 1964 se deu sob uma retórica de depuração moral tanto intra-institucional como na relação com os cidadãos. Esquemas que reificavam determinados comportamentos como palatáveis ao capitalismo, ao trabalho, ao regime sobrepunham àqueles outros inaptos ao reconhecimento social. Dentre tais valores, a coerência entre sexo, sexualidade, desejo e gênero caminhavam por reforçar, por meio de políticas públicas, os termos do pacto cisheterossocial.

A forma como a identidade nacional na ditadura civil-militar foi elaborada produziu uma cidadania eivada de inúmeras normatividades, dentre elas a cisgeneridade, a heteronormatividade, a branquitude, dentre inúmeras outras. Por tal razão, Quinalha afirma que se pode nomear a ditadura como uma “ditadura hetero- militar” em que se constata a ocorrência de uma “política sexual oficializada e institucionalizada para controlar manifestações tidas como ‘perversões’ ou ‘desvios’, tais como o erotismo, a pornografia, as homossexualidades e as transgeneridades” (QUINALHA, 2018, p. 31). O que se compreende da fala do professor é que existiu um investimento governamental no controle das sexualidades, tanto na esfera individual quanto na esfera coletiva.

Não se pode dizer que existiu uma lei ou ato normativo explicitamente determinando a postura estatal em relação às sexodissidências. Pode-se afirma isso em relação a alguns estados como São Paulo e Rio de Janeiro. Mas em Belo Horizonte, a política sexual da ditadura civil-militar pode ser percebida como atuante muito mais poder dispositivos disciplinares e articulações biopolíticas do que pela atuação explícita do Direito e da Lei. O que se pode afirmar, com base em Quinalha, é que conceitos abertos foram utilizados no jogo discursivo do regime para, por meio do medo, investir em outras formas de ser, de estar, de conhecer. Uma ligação recorrente aos desvios sexuais era a de que estes estariam apostos para realizar a “corrupção das instituições familiares”. No jogo discursivo da política de medo anticomunista, esvaziava-se o sentido das vidas, experiências, sociabilidades e perspectivas das vidas desviantes “reduzindo-as a uma estratégia perversa e despudorada do movimento comunista internacional” (QUINALHA, 2018, p. 32). Uma vez mais, o sexo era peça sem a qual não se poderiam realizar os objetivos governamentais das redes de saber-poder.

A própria inserção da homossexualidade como tática da guerra revolucionária por parte dos ideólogos conservadores permitia uma mobilização da categoria como justificativa para governar as vidas por razões de segurança, uma segurança voltada a

defesa da hegemonização capitalista. Discursos criminalizantes, patologizantes e biopolíticos produziram, na ditadura, a identidade homossexual como subversão política e, por tal razão, as institucionalidades encontraram retórica viável à sua expansão por searas e territórios que antes não se justificavam. Como afirma Benjamin Cowan, “essa noção de homossexualidade como ameaça à segurança nacional já fora elaborada por intelectuais militares e conservadores civis que apoiaram o regime” (2015, p. 33) como se o Brasil, além de estar sob ameaça dos comunistas-enquanto-inimigos-sociais, estivesse também sob o perigo de uma “homossexualidade planetária”.

A produção da homossexualidade como marca dos inimigos sociais constituiu uma importante técnica biopolítica de governo da ditadura, uma vez que, por meio desta tecnologia “(...) à medida que a vida, sua garantia e seu aperfeiçoamento tornam-se matéria das autoridades políticas, eles [a população] são ameaçados por potenciais técnicos e políticos de extermínio até então inimagináveis” (LEMKE, 2018, p. 61), como é o caso do que ocorreu nas investidas pré-invasão da América Latina, com o estimulo salvacionista quanto aos indígenas e sua simultânea produção discursiva como antropófagos, e os regimes nazi-fascistas com a reafirmação da identidade ariana em detrimento de todas as outras degeneradas e que, portanto, deveriam ser incluídas pelo trabalho forçado nos campos de concentração.

A lógica da política sexual da ditadura em Belo Horizonte dá indícios de uma atuação mais próxima das formas de atuação dos dispositivos securitário-disciplinares que subjazem ao Direito e que reproduzem, para além da Lei, a Norma. Sobre essa nova normatividade autoritária a governamentalidade se conduzirá e se sustentará pela produção de condicionantes de inteligibilidade social e reconhecimento jurídico.

A instrumentalização de discursos criminológicos, psiquiátricos, médicos para tratar das sexodissidências foi prática recorrente. O produto, e talvez o próprio meio para realização destas funções, foi a investida deslegitimadora e desqualificadora dessas experiências queers que prepararam o terreno a administração biopolítica do aparecimento em público. Da produção das sexodissidências a partir da diferença, da categorização, do estigma, se incluiu mais um código que deveria ser traduzido para um corpo ou subjetividade acessar a cidadania, logo, o espaço público. Enquanto política estatal, a governamentalidade das sexualidades utilizou-se de diversos meios, ou técnicas de governo, para manter-se e reproduzir-se:

Interditar certas práticas, expulsar dos espaços públicos certos corpos, impedir o fluxo de afetos e desejos, modular discursos de estigmatização, foram ações bem combinadas do aparelho repressivo, sobretudo nos campos da censura, das informações e das polícias. (QUINALHA, 2018, p. 33)

Diversos autores afirmar que, nessa intensa busca por conhecer, apreender e limitar as sexualidades, a ditadura civil-militar atrasou a aprendizagem social ao tentar incessantemente regular experiências irreguláveis. O sexo, a sexualidade e o desejo são expressões que escapam qualquer forma de racionalidade e, tentar apreendê-los para contê-los, a partir da hipótese repressiva foucaultiana, só viabilizou mais formas de exercê-lo de forma anormal, ou seja, fora da norma. Nota-se que o processo de recrudescimento conservador durante a ditadura teve seu ápice após o AI-5, em 1968. Ao mesmo tempo, acontecia a efervescência político-sexual de 68 ao redor do mundo, experiência esta que o Brasil se viu impossibilitado de gozar devido aos aparelhos de vigilância que buscava cada vez mais assimilar o sexo como algo governamentalizável.

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